ABRUPTO

5.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (3ª série)


Arcimboldo

Nasci e cresci numa casa de cujo jardim se avistavam as palmeiras do jardim traseiro da Biblioteca [Pública Municipal do Porto]. A casa lá permanece (a minha mãe ainda lá vive) mas a maior parte das árvores imponentes já não existe, o jardim foi destruído há já alguns anos sob um pretexto qualquer. Também frequentei com muita assiduidade a sala de leitura e lembro-me bem do professor Cruz Malpique lá sentado, rodeado de livros e de fichas. Embora nunca tivesse sido sua aluna, também o conhecia bem do Alexandre Herculano, onde era uma das vinte ou trinta "meninas" destinadas às Letras e ao Direito, que por lá passaram no fim dos anos cinquenta por falta de espaço nos liceus femininos.
Cedo adquiri o hábito de ir para lá estudar ou requisitar livros para leitura domiciliária, pois o hábito manteve-se depois do fim do liceu, quando já era estudante em Coimbra.

Os claustros que era preciso contornar, ventosos e gelados no Inverno e frescos no Verão, onde se esquecia o barulho da rua e só se ouvia o arrulhar dos pombos, antes de se ganhar o acesso por uma escada de pedra de degraus muito gastos. A sala de leitura, como é retratada na fotografia enviada , era à direita, ao cimo das escadas, à esquerda ficava o mistério dos arquivos, onde os funcionários por vezes se deslocavam à procura dos livros.

(Maria Emília Malta)

*

Como tive a sorte de nascer numa casa cheia de livros - os meus pais derretiam as poupanças de empregados de escritório nos alfarrabistas -, só no então Liceu Normal de Pedro Nunes tive oportunidade de viver a aventura de explorar uma biblioteca bem organizada.
E tive outra sorte, quando isto aconteceu, que foi a de a referida biblioteca ser dirigida pelo prof. Rómulo de Carvalho, que nos fazia o favor de ser na sua outra vida, como sabe, o António Gedeão. Muito antipático, nas aulas, nos intervalos, na direcção de ciclo e nos cruzamentos com alunos no Jardim da Estrela, perfeitamente integrado na disciplina vigente do come e cala, magister dixit, o poeta-profe era outro, dentro da biblioteca do Pedro Nunes, mesmo que mantivesse vestida a ameaçadora bata branca das fisico-químicas: afável, solícito, quase amigo. Deixava as preocupações do regime a cargo da sinistra D. Teresa, a contínua-vigilante, e mergulhava nos livros.
Ao longo dos três anos em que contactámos, orientou as minhas leituras com esperteza e sensibilidade, apresentou-me a ficção científica, que substituiu os Cinco e o Verne, e até "discutiu" comigo O Mundo dos Outros do José Gomes Ferreira, que foi meu livro de cabeceira num ano qualquer da adolescência.
Dentro da biblioteca, só regressou à sua concha de professor metodólogo do sistema educativo da ditadura em duas ocasiões: uma, quando eu, espertinho, tentei requisitar a Dolicocéfala Loira de Pitigrilli, que os meus pais, em casa, tinham retirado da circulação ("Tenha juízo e ponha-se lá fora"); outra, quando Manuel Freire cantou no Zip Zip a "Pedra Filosofal" e eu, pretendendo criar uma ponte, outra vez espertinho, fui requisitar a Poesia Completa do sôtor Gedeão, mesmo tendo o livro à disposição em casa ("Se pretende bajular-me, olhe que eu sou pouco permeável a graxa").
O resto é só boas recordações.

(ACS)

*


Foto de Margarida Monteiro tirada no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, "que visitei em 2003".

*

Em minha casa tenho a biblioteca dividida em três áreas: ficção, não ficção e banda desenhada. Estão todas razoavelmente organizadas, com as duas primeiras ordenadas por autor. A de banda desenhada é diferente, porque mais complicada de estruturar: optei por ‘personagens’, ‘colecções’ e ‘autores’.
A minha paixão por esta área começou porque me tentaram proibir de ler “quadradinhos”. Pelo lado da minha mãe, sou filho e neto de professores primários, daqueles que, normalmente, se rotulam de “clássicos”. Para o meu avô, a BD era vista como “fonte do mal” porque não estimulava o leitor no desenvolvimento da escrita, nomeadamente no que às descrições dizia respeito. Paradoxalmente, comecei a ler BD por influência dele. É que, para entreter a minha mãe, o meu avô recortava as diversas histórias publicadas no lendário suplemento juvenil dominical do Primeiro de Janeiro, e compilava-as em “livro”. Pouco depois, descobri que uns vizinhos tinham a colecção completa da revista ‘Tintin’, devidamente encadernada. Esse Verão, o de 1978, foi fantástico...
O primeiro álbum que adquiri foi do Michel Vaillant, “Os Cavaleiros de Koenigsfeld”, de Jean Graton. Comprei-o numa livraria, cheia de pó, que existia mesmo ao lado da entrada do cinema Trindade, no Porto, onde o meu pai comprava os livros jurídicos que hoje tenho no meu escritório. A partir daí nunca mais parei. Tenho milhares de livros de BD, de todas as proveniências, cobrindo todas as "escolas" e tendências, mas, como não há amor como o primeiro, continuo fiel à área franco-belga.
Hoje, claro, debato-me com a inevitável falta de espaço. Mas já vislumbro a solução. Tenho um tio, professor na Universidade do Minho, que fez uma coisa fantástica: debatendo-se com falta de espaço, comprou um apartamento. Mandou retirar a cozinha pré-instalada e apenas colocou luz, uma mesa, uma cadeira e desumidificadores. As paredes, essas, estão completamente forradas de livros. Tem 70 anos e, eu, metade. Estou certo que chegarei ao "Paraíso" mais depressa do que ele.


(Pedro Brás Marques)


*

(...) não resisto a falar-lhe de uma biblioteca que, não sendo particularmente rica, preencheu, no entanto, muitas tardes e muitos invernos da minha juventude. Refiro-me à Biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Situada em pleno parque, num jardim magnífico, verde e húmido, que eu era obrigado a atravessar de cada vez que lá ia. Logo no percurso me cruzava com os patos e as aves residentes que por ali deambulavam e chilreavam indiferentes à minha passagem, sentindo o cheiro dos pinheiros e de alguns eucaliptos.
Conheci-a por recomendação de um dos meus professores, quando em determinada altura necessitei de realizar um pequeno trabalho- Rapidamente me tornei seu leitor assíduo.
Era uma casinha pequena, um anexo do palácio, com uma sala aconchegante, com duas mesas, havendo quatro lugares em cada uma delas e mais dois pequenos sofás junto a uma lareira onde durante todo o Inverno o fogo crepitava. O pessoal era extremamente atencioso e logo à segunda ou terceira visita, assim que me tornei familiar, deixou-me à vontade. Passei então a circular livremente pelo meio das estantes, a sentir o cheiro do papel velho misturado com o dos pinheiros e da humidade, agarrando em todos os livros e mais alguns, devorando uns a seguir aos outros. De Eça a Camilo, de Baudelaire a Balzac, de Maupassant a Malraux, tudo me interessava. Ao fim do dia requisitava dois ou três livros para levar para casa, livros que religiosamente devolvia dois ou três dias depois. Cada um desses livros tinha uma ficha na contracapa onde a funcionária de serviço anotava o dia em que o livro era entregue e a data prevista para a devolução. Ali passei muitas tardes de Inverno (eu tinha aulas de manhã) e muitos dias de Verão quando o calor apertava e a praia se tornava insuportável devido aos magotes de gente que a enchiam. Nesse tempo só podia ir ao Guincho, a minha praia de eleição, quando alguém me dava boleia. Não tinha idade para ter carta de condução, não tinha carro nem mota e detestava ir sozinho no autocarro que saía da estação de Cascais. A biblioteca foi muitas vezes o refúgio das minha paixões juvenis quando eu, desesperado, procurava nos livros as respostas que não encontrava nas minhas amadas. A liberdade e o conforto que gozava dentro daquela bilbioteca e a inexistência de qualquer burocracia na requisição dos livros faziam daquele espaço um oásis.
Aquilo que eu ali não tinha - burocracia - passei a ter quando entrei para a Faculdade e comecei a frequentar outras bibliotecas. As idas à Biblioteca Nacional, à Gulbenkian ou mesmo à biblioteca da minha faculdade tornavam-se um suplício. Não sei porquê mas tinha a sensação de que chegava sempre na hora de fechar tal a desconfiança com que me olhavam. O cerimonial do preenchimento da requisição, a distância entre mim e os funcionários, a necessidade da exibição do bilhete de identidade, do cartão de estudante, o tempo de espera até que o livro chegasse, sentado no meu lugar, olhando o tempo a passar enquanto o livro não chegava, vagaroso, no carrinho da distribuição. O que mais me aborrecia então era ter de me limitar a procurar os livros, que eu muitas vezes nem sabia que existiam, nas fichas, sem poder manuseá-los antes de os requisitar. E quantas vezes, no fim, chegava a desilusão. Não era nada daquilo que eu queria. O título não tinha correspondência com o texto, a ficha estava mal preenchida, o autor era afinal o editor. Uma tristeza. Tanto tempo a preencher a requisição e à espera do livro para passados cinco minutos já estar a devolvê-lo e a preencher nova requisição, logo seguida de nova espera.
Talvez tenha sido tudo isso que mais tarde me fez detestar Lisboa. Sentia tudo aquilo muito distante, demasiado rígido para o meu gosto. Para quem se tinha habituado a frequentar a Biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, com todas as suas limitações, era muito difícil aceitar as regras das outras bilbiotecas. Ainda fui algumas vezes a uma biblioteca municipal, creio eu, ali para os lados do Campo Pequeno, mas já não havia nada a fazer.
Algumas anos volvidos voltei a encontrar duas bibliotecas muito agradáveis, já não em Portugal, mas em Macau. A velhinha bilbioteca do Leal Senado de Macau e a pequena bilbioteca chinesa, junto ao Clube Militar. Mas o tempo já era outro, eu já não era o mesmo e os meus interesses também tinham mudado.
Durante o meu mestrado frequentei com indiscritível prazer as bibliotecas do ICS e do ISCTE. Só que mudando as preocupações e os interesses também mudam os livros. De todas elas guardo boas recordações, pese embora o barulho da última, mas até hoje nunca encontrei outra biblioteca como a do Museu dos Condes de Castro Guimarães. Não sei como ela está nos dias que correm, mas espero que continuem a cuidar dela, com o mesmo pessoal atento e simpático que me transportou para uma outra dimensão do prazer da leitura e do convívio com os livros. Foi um tempo doce e sereno o que passei nessa bilbioteca, tempo que hoje recordo com uma imensa saudade.

(Sérgio de Almeida Correia)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]