ABRUPTO

1.3.05


MEMÓRIAS DA BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL DO PORTO (Actualizadas)

O livro proibido que estava nos “reservados” e que era mais popular na leitura era a Vida Sexual de Egas Moniz.

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Havia dois ou três permanentes na sala da Hemeroteca, no rés-do-chão, que tinham uma pilha de livros e revistas guardada religiosamente na sua mesa. No seu caso, os livros não eram “devolvidos”. Faziam quase parte da mobília e sentavam-se horas a fio a tomar notas em papelinhos, vestindo antes umas mangas-de-alpaca para não sujar o casaco ou a camisa. Um destes permanentes foi o meu professor de filosofia no Liceu Alexandre Herculano, Cruz Malpique. O dr. Malpique fazia livros em série, numa produção gigantesca, escrevendo em papel recuperado de outros usos, cortado à faca ou à tesoura, e junto em macinhos que ele enchia sem hesitações na sua letra perfeita. Entre as folhas que ele recuperava estavam as de antigas provas doutros livros. Escrevia livros sobre livros.

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Entre estes permanentes avultavam os autores de monografias locais, normalmente velhos reformados que se percebia não viverem muito bem, dedicados à sua terra e, na verdade, todos um pouco loucos na sua avidez de coleccionadores de efemérides.

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As requisições da Biblioteca foram as minhas primeiras fichas. Como as fichas verdadeiras eram caras e difíceis de encontrar (lembro-me de atravessar a cidade para ir comprar para a biblioteca do meu pai uns verbetes que só havia na Tipografia Maranus na Praça da República, que era da família de Teixeira de Pascoaes, entretanto desaparecida), eu tirava molhos destas “fichas” para fazer anotações, tendo o cuidado de escondê-las dos funcionários. Ainda hoje tenho centenas que escaparam do assalto da PIDE a minha casa. Nunca as deitei fora, como esta de 23 de Junho, depois reciclada para 24 de Junho de 1965, porque toda a gente era muito poupada e não havia esbanjamentos.

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Sem me aperceber, noto agora que várias destas notas retratam um mundo de maior escassez, onde se era naturalmente mais poupado.

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Um dia descobri que havia um jornal chamado O Comunista, órgão do PCP, na hemeroteca com grande surpresa minha. Hoje pode parecer normal, tanto mais que se tratava de um jornal publicado nos anos vinte, quando o partido era legal. Mas no mundo rigorosamente vigiado, censurado e policiado do Portugal de Salazar era uma descoberta excepcional e surpreendente. A biblioteca tinha sido sujeita a várias purgas e embora pense que nunca nenhum livro ou jornal fora destruído, a verdade é que não constavam dos catálogos e não podiam ser consultados.

Precisava de consultar o jornal várias vezes, o que envolvia perigos para mim e para o jornal. A biblioteca tinha funcionários suspeitos de serem informadores (não sei se era verdade ou mentira, mas a suspeita tinha sentido tendo em conta como eram escolhidos) e o jornal podia ser retirado da leitura. A minha sorte é que o jornal fazia parte de uma “miscelânea”, um grupo de jornais com poucos exemplares que tinham sido encadernados em conjunto. Passei por isso a requisita-lo usando o título de um pacifico jornal regional que também lá estava. Apesar da PIDE se ter mais tarde interessado pelo jornal, quando o citei no meu primeiro livro sobre a greve geral de 1918, apreendido pela polícia e que me motivou um processo, nunca o descobriu na biblioteca e assim chegou ao 25 de Abril.

(Continua)

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© José Pacheco Pereira
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