ABRUPTO

4.3.05


BIBLIOFILIA: EFÉMERA DOS TEMPOS DA PESTE



Num arquivo, que recentemente obtive, estão um conjunto de documentos, jornais, panfletos, fotos, cartazes e livros muito interessantes, todos eles retratando a tumultuosa vida da Península Ibérica no século XX. Um deles é esta edição falsa do Avante! feita pela PIDE ou pela Legião em 1962 e destinada a caluniar Delgado e a usar o seu passado anti-comunista contra o PCP. Conhecem-se vários casos de números falsos do Avante!, mas este é mais perfeito na sua cópia do grafismo do jornal verdadeiro.


No arquivo está também uma série de fotografias mostrando uma realidade mais trágica. É um conjunto de fotos tiradas durante a guerra civil espanhola e que desconheço se são total ou parcialmente inéditas pelo menos em Portugal. Todas retratam cenas de violência e morte, fuzilamentos, cadáveres no chão, campos e ruas com mortos. Algumas estão legendadas à mão em português, como esta série que retrata a prisão interrogatório e fuzilamento de "comunistas" em Llerena, na Estremadura, na circunscrição de Badajoz. Sabe-se que Llerena foi tomada pelos nacionalistas em princípios de Agosto de 1936 e que logo a seguir houve centenas de fuzilamentos. É provável que estas fotos testemunhem esses fuzilamentos de 5 e 6 de Agosto. Como neste mesmo período de tempo, o jornalista português Mário Neves se encontrava na região e foi uma das raras testemunhas do chamado "massacre de Badajoz", é provável que estas fotografias tenham sido por ele tiradas ou trazidas.

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A propósito das fotos dos fuzilamentos em Badajoz, lembrei-me de uma história contada por um tio-avô, que foi testemunha desse trágico momento. Naqueles anos 30, a guerra civil espanhola era seguida com toda a atenção, e após a queda de Badajoz, organizaram-se excursões para assistir a esses fuzilamentos naquela cidade.

Presumo que a maioria das pessoas que estava nessas excursões alinhava pelas ideias do Estado Novo. O objectivo da viagem era assistir à punição dos agressores da sociedade, daqueles que atentavam contra o nosso modo de vida, a "tranquilidade social" defendida pelo antigo regime. A viagem a Badajoz era uma manifestação da solidariedade aos franquistas e uma afirmação da ideologia política de cada um dos excursionistas.

Numa dessas excursões, os anfitriões espanhóis cederam uns lugares especiais aos convidados portugueses para que pudessem apreciar todos os pormenores das execuções. Aconteceu que os homens que iam ser fuzilados pararam por uns instantes em frente aos convidados portugueses.

Um desses homens percebeu que estavam ali estrangeiros para assistir à sua morte. Olhou alguns deles nos olhos e perguntou-lhes "Sois portugueses, verdade?" Alguns responderam que sim. "É um grande espectáculo assistir à morte de um homem, verdade?" perguntou-lhes o condenado.

Esta pergunta deixou profundamente transtornados vários portugueses. Alguns perceberam imediatamente que tinham levado o seu combate político longe demais. Sentiram-se profundamente envergonhados por presenciar aquele “espectáculo”; apenas queriam sair dali o mais rapidamente possível. Aquela pergunta de um homem condenado à morte fê-los perceber que nenhum combate político podia justificar a morte de uma pessoa. Passadas algumas décadas, alguns ainda recordavam o rosto e a expressão daquele homem ao dirigir-lhes aquelas últimas palavras.

(Marco Oliveira)

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© José Pacheco Pereira
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