ABRUPTO

28.7.04


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: “A different kind of life? I didn’t know life came in kinds.”

"Quando Coetzee ganhou o Nobel e vi as notícias desencadeadas pela atribuição do prémio, mais do que o que li escrito sobre ele e por ele, gostei do que as suas fotografias me revelavam. Uma cara de traços equilibrados e finos, um ar elegante, quase seco e ascético. Fiquei com vontade de conhecer a sua obra e por diversas vezes os seus livros me saltaram para a mão, mas acabei sempre por sacudi-los por tanto me incomodar a capa de “Disgrace” com aquele cão faminto e sarnento no meio de “nada”, ou melhor de lixo parco, metálico, seco e desolado.

(…)Aderi de imediato à escrita de frases curtas e depuradas de Coetzee que, apesar da elegância e subtileza, não deixa de ser acutilante e por vezes quase cirúrgica tom que lhe é dado pela sensação de distância, alguma ironia e por vezes algum humor quase negro: frisando a ambivalência da palavra “negro” no contexto deste romance. Os diálogos são espelho desta linguagem e transmitem de forma clara, na minha opinião, mais do que a “condição humana” em abstracto a condição do “ser homem”, “ser divorciado”, “ter sido marido”, “ser sul-africano”, “ser “branco-sul-africano”, “ser pai”, “ser filha”, “ser branca no meio de negros”, e todos os outros “ser isto ou aquilo”. As personagens através do diálogo (“Disgrace” é um romance pouco descritivo) mostram sem contemplações ou convenientes compromissos a essência deles mesmos e das suas opções, algumas delas ditadas por um “fado” ao qual não escapam e que é indissociável do “ser…”.

Retomaria o adjectivo metálico ao qual juntaria o estéril para qualificar muito mais no livro: as relações entre as personagens, o tipo de interacções sexuais no romance mesmo quando aparentemente existe desejo ele aparece sempre com não correspondido; uma pequena excepção: a recordação sensual dos primeiros tempos com Rosalind. Também a paisagem rural tem esse cunho estéril do metal, tal como a presença constante como pano de fundo dos cães. A marca do “estéril” está presente até na criatividade fecunda (a “ópera”, por exemplo, que nunca evolui) e tem apenas uma excepção marcada pela violência do destino.

A desolação da desagradável capa do cão é um bom indício do que espera o leitor ao abrir o romance; mas a beleza da linguagem, a riqueza das personagens e o absurdo dos seus dilemas, dificilmente se adivinharia."

(JPC)


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© José Pacheco Pereira
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