ABRUPTO

23.12.03


MORRER FORA DA LUZ PÚBLICA

Muitos dos mais originais e interessantes portugueses, loucos ou perseverantes, excêntricos ou normalíssimos, morrem sem sequer nós sabermos que morreram. Fora da luz pública, fora das celebridades de quinze minutos, fora das revistas de todas as modas, em particular das literárias e culturais, vidas inteiras desaparecem num esquecimento, nem sempre desejado. Foi o que aconteceu, perante a ignorância e a indiferença geral, a Orlando Vitorino e ao embaixador Humberto Morgado.

Não conheci o primeiro pessoalmente, mas recordo-me de uma entrevista televisiva em que ele respondia com grande rigor teórico e lexical aos disparates de uma jornalista, com um mau feitio soberbo e magnífico que Vitorino cultivava. A coisa acabou mal, como não podia deixar de ser, com o homem que era uma combinação de reaccionário e anarquista tão radical que dificilmente comunicava com o comum dos mortais. Adepto da “filosofia portuguesa”, acabou candidato à Presidência da República sem honra nem glória. Soube, por um testemunho, que nos seus últimos dias continuava completamente lúcido e articulado, só que o que pensava e dizia nada tinha a ver com qualquer realidade actual, como se tivesse ficado numa espécie de limbo a-histórico por cima de todas as nuvens. Se calhar foi toda a vida assim, só que ninguém deu por ela. Talvez ele.

O embaixador Morgado conheci nos trabalhos para o livro sobre Cunhal, com a fama de “embaixador vermelho”, elegante como só os homens antigos, falando com uma voz suave e senhor de uma memória claríssima. Falava da sua geração, apanhada nos dilemas políticos dos anos trinta, ele que fora membro do Bloco Académico Anti-Fascista, e dos factos de que tinha sido uma rara, senão única, testemunha portuguesa, como a guerra civil chinesa entre comunistas e nacionalistas. Sentia-se nele uma nostalgia muito calma, quase diríamos diplomática, como se negociasse com as suas memórias juvenis um qualquer tratado de apaziguamento, uma mansidão procurada, que prescindia de revolta com a injustiça que sentia no fim prematuro da sua carreira.

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© José Pacheco Pereira
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