ABRUPTO

30.12.03


EARLY MORNING BLOGS 107

Por lembrança do Vasco Graça Moura, aqui ficam os galos, os mesmos galos que ouço pela manhã. Olhando para baixo, depois de um campo que se transforma em lago no inverno, vejo a terra de Rui Belo, cortada por uma estrada mortífera, a que vêm dar as colinas que cerram o vale. Como todas as estradas portuguesas, vai-se pouco a pouco enchendo de restaurantes, parques de automóveis à venda (uma novidade dos últimos anos), a ocasional fábrica de concentrado de tomate (espanhola), que trabalha só sazonalmente. Os restos apodrecem como o menino de sua mãe: lagares, adegas abandonadas, quintas antigas entregues ao mato, ruínas do tempo em que o vinho era o senhor do Ribatejo. Velharias é o que mais há e os antiquários passam, predando os montes de cadeiras partidas, pias de pedra, ânforas, arcas, os mil e um objectos já sem função, pesos, medidas, gigantescos funis, alguidares, alambiques. Aqui e ali, roseiras esplêndidas sobrevivem.

OS GALOS

Já os galos tilintam na manhã
numa múltipla voz aonde vibra a voz de dedos em cristais
mais que dedais de dedos na mais fina porcelana
Já os galos tilintam na manhã
há já pão mole e lombo assado nas primeiras lojas
se voltamos dos touros e sentimos fome
e mais que o pão nos sabe o pão quebrar nos dentes
em vendas novas era ainda vivo o Carlos
vivo agora na voz que a madrugada envia
às dunas deste dia mais que o tempo se escondia nos revela
talvez timidamente mas decerto sabiamente
Já os galos à beira do mais puro amanhecer
que touca o céu da mais fina das fímbrias
pouco antes de acender os máximos o sol
esse infractor do código da estrada que nem mesuro em cima
de nós procede à mutação da luz
já os galos que são o símbolo da voz
que abre e logo quebra numa abóbada de ânfora
moem os nós da voz na fímbria da manhã
A esta hora de equilíbrio luminar
os galos são os rígidos e estritos observantes
do ritual restrito da destruição
quando de crista erguida uns aos outros passam
a vida única vítima afinal a imolar
Só quando se consome a vida se mantém
e sei agora como o sabem bem
esses tenores sapientes saborosos exigentes
que têm na garganta a música difícil
que precede o abrir do novo dia
Madrugai galos madrigais de madrugadas
Ó galos ó manhã ó vida ó nada


(Rui Belo)

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© José Pacheco Pereira
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