ABRUPTO

26.12.03


CABEDELO, FOZ DO DOURO, 25 DE DEZEMBRO, 9 HORAS

O Douro é o meu rio, e uma vez por ano aqui venho ganhar força moral. Nem pensamentos, nem sensações, nem “viagens interiores”, força moral, se é que eu sei o que isso é. Olha-se o rio, no fim do seu curso turbulento, a acabar aqui, como quem não quer a coisa, e enche-se o corpo de determinações, deveres, obrigações. Cruel, não é, este Douro?

Este é o meu rio. Devia ir ver o Eugénio, mas não fui.

Está uma luz imensa, o brilho do inverno brilhando sem limites, transportado pelo frio. A maré está muito baixa, acho até que nunca a vi tão baixa. As pedras traiçoeiras, que mataram muita gente na barra do Porto, estão à vista com o seu dorso negro. Não há uma gota de vento, se o vento fosse água estava todo bem dentro do rio. No céu, um enorme X feito pelos aviões, um dos braços perdia-se para o lado das Américas. É o braço do desejo.

As pessoas são as mesmas de sempre, os fiéis do Cabedelo. Um pai, passeando muito devagar com um filho, tentando que o olhar dele passe pela mão para o corpo pequeno que disciplinadamente alinha o passo com o corpo grande. Depois, o povo das casas pequenas, o povo envelhecido do Douro Faina Fluvial, que ainda se encontra nos cafés da Foz, empurrado pelos condomínios de luxo que, de cima, da colina, vão pouco a pouco tomando conta de tudo. Pescadores de fim de semana que vão para o molhe, os velhos pescadores da Foz do Douro, os antigos carpinteiros e calafates do pequeno estaleiro que havia junto ao rio. Não há mulheres no Cabedelo, e os homens do sítio conhecem-se à distância pela cara e pelas mãos: cara cortada pelo vento, nariz corroído pelo álcool, mãos que já pegaram em tudo.

Hoje, quem vê este rio, calmo, pequeno pela maré baixa, não diz nada do que ele vale. Rio sinistro, rio profundo, rio mortal, rio primordial. Para o ano, se houver rio, voltarei.

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© José Pacheco Pereira
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