ABRUPTO

17.8.03


UMA PROCISSÃO POPULAR

Daquelas genuínas, só para as pessoas de uma pequena aldeia, sem ninguém de fora, desconhecida, não especial por coisa nenhuma. Um acto social puro de uma pequeníssima comunidade.

Sai da igreja após uma formatura complicada pela desorganização geral. Mas, pouco a pouco, a experiência de anos e anos sobrepõe-se, e a fila organiza-se. Uma procissão é uma fila.

À frente, três homens cobertos com uma capa branca. A seguir o presidente da colectividade organizadora das festas deste ano (revezam-se) com fato domingueiro, com um pendão antigo bordado com o santo padroeiro e o nome da terra. O escuro do fato contrasta com as capas brancas esvoaçantes que são a regra nos homens e mulheres que transportam os andores e que constituem o corpo avançado da procissão. O mesmo pendão já tinha servido para encabeçar a banda no peditório anual pelas ruas. Funciona como a bandeira não oficial da aldeia.

Seguem-se os andores, muito pequenos, porque os santos são os da igreja, apeados dos altares e tem tamanhos variáveis, uns maiores outros, mais pequenos, mas como a terra é pobre tendem para o muito pequeno. Os andores são padiolas onde assenta o santo e à sua volta explodem flores. Uma das riquezas da
procissão são as flores vivíssimas dos andores, vermelhas, amarelas, brancas. No dia anterior, os andores foram montados no interior da igreja, tarefa que exige muito trabalho e dedicação. É um grupo de mulheres que prepara os andores.

Há qualquer coisa de parada militar na procissão, a ordem interior, a marcha cadenciada, a rígida hierarquia. Quando passa a banda nota-se mais este aspecto militar. A banda é precedida pela bandeira da banda e a seguir o maestro, imponente de autoridade e de gravidade, fato escuro, tendo ao lado uma rapariguinha muito pequena que marcha ao seu lado com evidente prazer (filha? Alguém que pediu para ir ali?). Depois segue o corpo da banda, fardado, com enorme disparidade de idades, muito velhos e crianças, tocando instrumentos na maioria de sopro e madeiras. O som da marcha marca a cadência do passo.

O padre, um jovem padre que se ocupa de várias paróquias na região, vem vestido de branco, com ar frágil, rodeado de jovens. Enquanto o presidente da colectividade caminha sozinho com a sua bandeira, o padre está no centro de um pequeno grupo. A Igreja como comunidade? A colectividade como hierarquia?

Embora haja pessoas a ver ao lado, nos passeios, persignando-se quando passa o andor de N. S. da Assunção, ou o padre, a esmagadora maioria vai integrada na própria procissão, no fim. É aí que vai a comunidade, uma pequena mole de cem, cento e cinquenta pessoas, compacta, as mulheres às vezes de braço dado, um pequeno número de casais, algumas crianças pela mão. O grupo final é a aldeia, ou melhor, a parte feminina da aldeia. O número de homens é pequeno.

Apesar do som da banda, o silêncio predomina. Famílias que só se reúnem uma vez por ano estão cá, famílias que só vêm à terra uma vez por ano, cá estão, uma terra com muito pouca gente, quadruplicou – há crianças a correr por todo o lado, raparigas e rapazes a passar ruidosos na sua adolescência a anunciar por todo o lado, telemóveis tocam à esquerda e à direita, as notícias de compras e vendas, sucessos e insucessos, funerais, casamentos, namoros e divórcios são postas em dia.

A comunidade reconstitui-se por um dia à volta da procissão e dispersar-se-á no dia seguinte. Até ao ano. Há uma força interior invisível no meio deste corso-ricorso, uma pertença.

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© José Pacheco Pereira
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