ABRUPTO

5.8.03


S. BERNARDO E A ARTE COMO DISTRACÇÃO DE DEUS

Uma das alegrias de quem é curioso, na definição antiga do curioso, amador, coleccionador, é estar a sempre a encontrar palavras, objectos, imagens, na espantosa variedade do mundo, e dos livros. Enquanto o mundo for assim, como é possível haver aborrecimento? Como é possível não haver nada para fazer?

Vejam-se estas palavras, enviadas por V., uma amiga que gosta de Bernardo, S. Bernardo de Claraval, sobre o que os monges podiam ver, olhando em volta numa capela já antiga para o seu século. Bernardo pergunta “para que serve”, ele que achava que a arte era uma “distracção”:

«De resto, para que serve, nos claustros, onde os frades lêem o Ofício, aquela ridícula monstruosidade, aquela espécie de estranha formosidade disforme e disformidade formosa? O que estão ali a fazer os imundos símios? Ou os ferozes leões? ou os monstruosos centauros? Ou os semi-homens? Ou os tigres manchados? Ou os soldados na batalha? Ou os caçadores com as trombetas? Podem ver-se muitos corpos sob uma única cabeça e vice-versa: muitas cabeças sobre um único corpo. De um lado,avista-se um quadrúpede com cauda de serpente, do outro, um peixe com cabeça de quadrúpede. Ali um animal tem o aspecto dum cavalo e arrasta atrás de si uma metade de cabra, aqui um animal cornudo tem o traseiro de cavalo. Enfim, por todo o lado aparece uma estranha e grande variedade de formas heterogéneas, para que se tenha mais prazer em ler os mármores do que os códigos, para que se ocupe o dia inteiro a admirar, uma a uma, estas imagens em vez de se meditar na lei de Deus. Oh Senhor, já que não nos envergonhamos destas criancices, porque não lamentamos, ao menos, os dispêndios?»

Tudo é interessante neste texto. A força das frases, com o fôlego do contemplativo que vê mais que os outros, a descrição magnifica do que um homem do século XII podia ver numa capela românica, e o argumento final, a que hoje chamaríamos “economicista”, dos “dispêndios”. O verdadeiro “dispêndio” era naturalmente o corpo:

Se desejardes viver nesta casa, é necessário deixar fora os corpos que trazeis do mundo; porque só as almas são admitidas nestes lugares, e a carne não serve para nada”.

Essa veemência contra o corpo, que o levou a atirar-se para dentro de uma tanque de água fria quando viu uma rapariga, ou a dominar o sabor para não ter gosto na comida, ou a não querer dormir para não perder o controle de si, é , como nós sempre suspeitamos, pura sensualidade. Por isso nos seus textos há das melhores descrições da beleza, das “carícias do corpo” , em nome da negação da própria beleza, uma “distracção” que nos afasta de Deus:

«Nós, monges, que já nos isolámos do povo, nós que, por Cristo, abandonámos todas as coisas preciosas e formosas do mundo, nós que para merecer Cristo consideramos como esterco todas as coisas que resplandecem de beleza, que acariciam o ouvido com a doçura dos sons, que lançam odores suaves, que têm um gosto doce, que agradam ao tacto, e o que, em suma, acaricia o corpo...»

Bernardo sabia que a arte nascia do corpo, mesmo quando era cosa mentale.

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© José Pacheco Pereira
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