ABRUPTO

30.8.03


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 21 / LICEU RAINHA SANTA

Para quem é do Porto e fez o liceu no Alexandre Herculano, o encerramento do Rainha Santa é mais uma referência da memória que se vai embora, mais um objecto em extinção. O Rainha Santa ao lado do Alexandre Herculano representava a separação sexual rígida do regime salazarista: o Rainha era para as “meninas” e o Alexandre para os “meninos”. Daí que o grande momento de respiração dos dois liceus era o da saída da uma da tarde, quando a fauna masculina do Alexandre corria pela rua abaixo para se colocar em frente do Rainha e ver a “saída”. Era, mesmo passando-se no meio da rua, fora de portas, uma actividade altamente vigiada. Os “rapazes” não podiam estar no passeio junto dos portões do Rainha, mas apenas no passeio em frente, encostados ao muro. As meninas não podiam atravessar a rua e era suposto só o fazerem muito acima, para os lados do Bonfim, ou mais para baixo, junto da Barão de Nova Sintra. Em frente ao Liceu, era o espectáculo da descida das meninas pela escadaria, observadas por mil e um olhos ávidos, encostados ao muro. Parecia uma encenação de palco.

Uma das minhas maiores vergonhas foi no dia em que a reitora do Rainha me convidou para repetir no liceu feminino uma palestra sobre música que tinha feito no Alexandre e que ela devia achar ser suficientemente “conveniente” para arriscar meter um rapaz dentro do liceu. O interior do liceu, como se percebe, era totalmente off limits para visitas juvenis masculinas. Lá fiz a palestra, só que ela acabou …à uma da tarde. Para sair tinha que descer as tenebrosas escadas acompanhado pela multidão das meninas e diante dos olhos dos meus colegas em frente. Lá desci, desejando a invisibilidade ou o tradicional buraco que nos devia tragar nesses momentos e que nunca se abre quando é preciso. Imaginem os risos e o gozo dos meus colegas e os risinhos das meninas (estão a ver a linguagem sexista, os homens riem, as mulheres tem risinhos…), em todo o meu percurso no palco das escadas e na parte feminina do passeio, até me conseguir misturar anónimo no passeio masculino.

Como é que se pode não ter saudades do Rainha?

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© José Pacheco Pereira
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