ABRUPTO

19.8.03


NOTAS CHEKOVIANAS 2

Há um momento na literatura russa, entre o fim do século XIX e o início do século XX , em que escritores como Tolstoy e Chekov encontraram um olhar único, que não sei descrever melhor do que usando as palavras de outro, o olhar do “milk of human kindness” shakespereano.

Entre as razões que estiveram na origem desse olhar estão razões que hoje, que estamos em tempos de retorno ao esteticismo, não nos pareceriam suficientemente “literárias”. Fizeram-no por preocupações sociais. Um e outro disseram-no de forma explícita.

Esse olhar, esse toque a que chamo chekoviano, não se concentrou na fractura da diferenciação social (como o fizeram outros escritores, Tolstoy em parte, Gorki), foi para além dela para ver a miséria humana, o sofrimento das pessoas comuns, a névoa de tristeza das vidas mal vividas, seja a que nível social for.

Chekov percebeu a intensidade do sofrimento das pessoas comuns, e a maioria das pessoas comuns eram, na Rússia, camponeses vivendo na miséria, mas manteve a continuidade do olhar, mesmo subindo na escala social. Muitos contos de Chekov passam-se nos meios “pequeno - burgueses”, pequenas vidas, pequenos sonhos, pequenas riquezas, férias em Yalta, cidades provincianas, funcionários e oficiais de baixa patente, embora não ficasse por aí. Mas o toque é o mesmo, toca num pequeno mosteiro pobre, num casa camponesa, numa prisão de deportados, ou num clube de oficiais sem nada para fazer, e encontra o mesmo abismo entre a vida que se desejava viver e a que se vive. O maior abismo que há.


NOTAS CHEKOVIANAS 3

O toque chekoviano foi o encontrar um modo muito simples de falar desta tristeza, sem mais do que a enunciar, pequenos traços sobre pequenos traços, muitas vezes interrompendo uma sequência narrativa que o leitor esperava ver concluída. Não há em Chekov grandes amores, grandes paixões, actos nobres, nenhuma espécie de grandiloquência nem afectiva, nem qualquer outra. Há uma voz mínima que perpassa entre as personagens, todas um pouco perdidas entre o aborrecimento e a tristeza, entre a dor sentida e a percepção da dor dos outros.

Esta falta de grandiloquência, não diminui em nada a força dos sentimentos. Talvez mais do que em qualquer outro escritor, há uma enorme integridade pessoal nas personagens chekovianas, fiéis a um destino que não controlam, mas tendendo, a, no momento certo, fazerem as coisas certas sem qualquer sentimento de arrogância moral. Estas “coisas certas” em Chekov também não são decisões dilacerantes, mas pequenos actos que se esgotam mal se realizam.

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© José Pacheco Pereira
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