ABRUPTO

9.8.03


DOS FRANCESES PARA OS INGLESES (E OS AMERICANOS)

As discussões sobre a Livraria Francesa mostram a hegemonia actual do mundo cultural anglo-saxónico pelo menos nas camadas de consumidores culturais mais jovens. O mundo “francês” resiste em certa crítica literária e de cinema, e no ainda poderoso establishment cultural do Jornal de Letras, muito ligado ao estado pela via de ser subsidiado como um jornal oficioso da literatura portuguesa para os professores do ensino secundário e os leitores nas universidades estrangeiras. A versão televisiva do Jornal de Letras era o Acontece, honra lhe seja feita bastante mais liberal do que o controle ideológico e cultural rígido que José Carlos Vasconcelos mantêm no jornal.

Só de passagem noto que a última coisa que quero dizer é que tudo que é francês é mau e o resto bom. Mas é um facto que o proteccionismo cultural francês, a celebre “excepção cultural”, associada a uma absurda mistura de nostalgia franco - gaulesa e arrogância chauvinista, fechou a cultura francesa numa espécie de “aldeia de Asterix” e estiolou muito da sua criatividade. O peso do estado centralista, que se arroga legislar sobre o que as pessoas podem ou não ver na televisão, que palavras utilizar, etc., associado a um esquerdismo anti-americano, muito patente na edição corrente, fez os franceses implodir. Olhando para dentro não conseguem sair dos seus fantasmas – a guerra da Argélia, a colaboração durante a ocupação alemã, a suspeita de serem anti-semitas, o estalinismo dos intelectuais, etc. Ora sobre quase tudo isto já Camus tinha sido melhor, direi mais, gigantescamente melhor, há cinquenta anos.

Na actual hegemonia anglo-saxónica perde-se pelo menos o mundo alemão, muito próprio, muitas vezes hermético, mas contendo elementos culturais únicos nascidos da peculiar e muito traumática experiência nacional dos últimos duzentos anos. Os espanhóis, por exemplo, tem uma tradição de traduzir do alemão sem paralelo na Europa. Em áreas como o direito, a filosofia , a Kultur (intraduzível) , a política, a história de arte, há livros traduzidos em espanhol que não existem em inglês ou em francês.

Esta mudança de mundo cultural em Portugal começou pelo menos há três décadas e não tem sido estudada. Hoje colocarei nos Estudos sobre Comunismo uma nota sobre um dos primeiros exemplos da ruptura com o mundo francês, o que na prática significava também em Portugal a ruptura com a cultura ideológica do comunismo soviético e com o neo-realismo do PCP, no interior das Associações de Estudantes. É uma parte de um estudo inédito que fiz sobre a génese da extrema-esquerda em Portugal e a sua relação com a mudança do paradigma cultural e nele se analisam os conflitos culturais bastante intensos e, nalguns casos, quase violentos, que marcaram as Secções Culturais das Associações de Estudantes por volta dos anos 1967-8.

Fui testemunha e participante activo desses conflitos, em particular nos que envolveram a Secção Cultural da Associação de Direito, sobre que música passar no sistema sonoro , sobre se se podia (devia) patear os filmes do Cineclube Universitário , sobre o modo de tratar a “condição da mulher” e a sexualidade, sobre o Pierrot le Fou de Godard , etc. Com tempo voltarei a cada uma destas polémicas. Agora fica a nota a colocar nos Estudos sobre “Popologias”, o ciclo de realizações em que, pela primeira vez, uma Associação de Estudantes olhou para a cultura pop, ou seja para o mundo anglo-saxónico, com outro modo de ver.

Só uma observação para terminar: a música popular, os Beatles e o que vinha com eles, foi decisivo.

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© José Pacheco Pereira
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