ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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31.8.03
COSA MENTALE
Este quadro é de um pintor do início do século XVII, Pieter Saenredam e retrata o interior da igreja de S. Lourenço em Alkmaar. Está no Museu Boymans-van Beuningen em Roterdão. Saenredam especializou-se em pintar o interior das igrejas holandesas “reformadas”. Estas eram despidas do peso dos ornamentos, das imagens, dos santos, das esculturas que preenchiam todo o espaço interior das igrejas cristãs antes da Reforma. Se há quadro que representa a ideia que a pintura é cosa mentale é este. O que fascina o pintor é um objecto imenso, uma parede maciça na qual se abre uma porta que abre para outra porta e que abre para um claustro, onde um arco é uma outra espécie de porta. Lá, ao fundo, percebe-se um espaço tão interior como o da igreja, porque não há variação na luz, o mesmo amarelo esbranquiçado. Os homens, melhor os homúnculos, estão lá num canto, pequenas figuras a preto, sem qualquer papel que não seja dar dimensão à coluna e à porta gigantesca que se abre. Se o quadro fosse feito para os homens por que razão a porta teria cinco vezes a sua altura? Nada de humano justifica esta dimensão. Os ornamentos que sobram não são também para os olhos humanos. Quem conseguiria ver o que está pintado no losango, tão alto ele está? Este quadro não está feito para glorificar nem os homens, nem a obra dos homens (este espaço é inumano), nem a igreja, nem Deus. Não há nesta igreja nada que aproxime de Deus, nada que aponte para o sagrado, nenhum símbolo religioso identificável. Percebe-se que é uma igreja pela altura do edifício, mas o espaço que se observa nem sequer é o da nave principal, mas de um corredor acessório. Podia ser um edifício público, uma Rathaus, uma casa de corporações. É verdade que uma igreja holandesa é também um edifício cívico, mas não há aqui sombra de uma comunidade para o ocupar. Os burgueses que se percebem como uma mancha negra, com um papel muito parecido com as moscas numa natureza morta filosófica, não estão a rezar, estão a conversar. É um quadro metafísico. A sua construção não é muito distinta da de alguns quadros chineses influenciados pelo budismo zen, ou mesmo de muita da pintura moderna abstracta. O risco do drapejado acompanhando a coluna, o quadro em formato de um losango dependurado, são elementos que reforçam o carácter geométrico da pintura. O que está pintado nesta pintura? Duas coisas. Uma, o despojamento, uma ideia moderna mais próxima do design do que da pintura tradicional, e que é comum encontrar no Norte da Europa, a procura de uma sólida simplicidade. Outra, a de que isso se faz num mundo que nos ultrapassa. A arquitectura da igreja destina-se a mostrar-nos isso, vive-se num espaço que não é nosso, que nos ultrapassa. Entre a vida sólida e a angústia de estar abandonado por Deus no mundo, este é um dilema protestante e não católico. Saenredam pintou pois uma coisa mental, uma ideia. (url)
© José Pacheco Pereira
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