ABRUPTO

7.7.03


TEXTOS PRÉ-BLOGUE

Ter um blogue, já o disse, era uma coisa que eu queria ter no meu liceu. A expressão “no meu liceu” mostra já como é história antiga e o Liceu foi o Alexandre Herculano no Porto. No meu liceu havia um jornal , que formalmente pertencia à Mocidade Portuguesa (não podia haver quaisquer publicações que não fossem da Mocidade) e que tinha pretensões literárias, o Prelúdio. Régio tinha escrito um elogio do jornal e um dos seus directores antes de mim fora o Manuel Alberto Valente que agora também tem um blogue. .

Quando eu fui director do Prelúdio aconteceram as mais bizarras conversas de censura feitas pelo reitor. O reitor era um professor de alemão que estudara na Alemanha nazi, e digo isto sem estar a sugerir que era pior ou melhor do que qualquer reitor de um liceu importante da época - o Alexandre Herculano era um liceu importante. Vistas bem as coisas, tendo em conta o que pude fazer, o homem até devia ser muito liberal. Na altura não achava nada disso, a personagem era tenebrosa e quando me “chamava” à reitoria e tinha que atravessar os corredores onde era proibido um aluno passar, para entrar para a sala por baixo das instalações onde ele vivia – o reitor vivia no Liceu com a família - não achava graça nenhuma.

Esses incidentes com a censura do reitor são hoje inimagináveis para qualquer pessoa nascida depois da década de setenta. Recordo-me de três.

O primeiro era habitual e comum: publicara no Prelúdio uma “Homenagem a Lopes Graça” e o reitor protestou porque Lopes Graça era comunista e não se lhe podiam fazer “homenagens”.

A segunda já era mais interessante e reveladora. Publicara uma reprodução de um quadro do período azul de Picasso que tem um rapaz nu e um cavalo. O reitor explicou-me que isso era inadmíssivel porque o jornal também era lido pelas meninas do Liceu Rainha Santa, que era ao lado, e isso era “indecente”. Eu fiz que não percebia e perguntei-lhe se era porque o cavalo estava nu. Pôs-me na rua com ameaça de uma suspensão, que felizmente não se concretizou.

A terceira é ainda mais interessante porque tinha a ver com a experiência alemã do reitor e na altura não a percebi. Tinha publicado uma página um pouco pedante com “prosopoemas” , alguns dos quais só em minúsculas , à e. e. cummings , percebem ? O reitor disse-me que isso também não era possível porque “desrespeitar as regras que obrigam às maiúsculas era uma manobra dos comunistas” . Eu sabia que os “comunistas” faziam coisas inomináveis, como comer criancinhas, mas comer maiúsculas desconhecia.
Só muitos anos depois vim a perceber o que ele estava a dizer. O reitor estivera na Alemanha na altura do ataque nazi contra a “cultura degenerada” e um dos alvos foi a Bauhaus. Um dos aspectos do grafismo da Bauhaus, repetido em muitas revistas literárias e mesmo políticas da época, era o uso de minúsculas. O bom povo alemão que estima os seus nomes próprios e que escreve alto os seus substantivos estava a ser atacado pelos “degenerados” das minúsculas.

Era por estas e por outras que eu gostava de ter tido um blogue, preparei-me toda a vida para ter um blogue, mesmo quando eles não existiam e trago essa ancestral vontade intacta, sem um desvio de um milímetro. Por isso vão saber o que significa persistência, teimosia, purpose. Quem quer lê, quem não quer não lê. É a beleza da coisa.

(Este texto introduz uma selecção esporádica de textos que publicarei no Abrupto e que foram escritos para um blogue imaginário, alguns já publicados, outros não. Como este monstro está sempre com fome, alguns alimentarão a fome quando o autor estiver na vagabundagem por cima das nuvens. )


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© José Pacheco Pereira
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