ABRUPTO

7.7.03


ENGANO



Este é um quadro antigo e não moderno . Foi pintado no século XVII por Cornelius Norbertus Gijsbrechts , especialista em trompe d’oeil, ou naquilo que se chamava “betriegertje “, os pequenos truques para o olho. O quadro não foi feito para estar dependurado numa parede, mas sim deixado ao acaso num mesmo sítio onde um quadro de costas poderia ser deixado. O quadro apela a uma função – enganar. A pintura “realiza-se” quando alguém a vira por engano e descobre que a verdadeiro reverso está do outro lado.

Como se vê nos dias de hoje, o olhar é o sentido em que mais confiamos. Acreditamos no que vemos, como S. Tomé, e é por isso que a televisão nos engana tão facilmente. É também por isso que um mundo assente na imagem, na imagem a três dimensões movimentando-se na quarta, dentro do nosso cérebro ou nas paredes da nossa casa, produzida por devices cada vez mais próximos da nossa biologia, põe seriamente em risco a individualidade, a possibilidade da individualidade. Este mundo, num futuro muito próximo, estará na nossa casa, no nosso corpo quando as televisões forem as paredes da casa, os telemóveis estiverem no nosso ouvido ou colados aos nossos olhos, ou recebamos imagens directamente no cérebro. Tudo tecnologias actuais, só ainda não comercializadas.

O nosso olhar é construído pelo que vemos, pelo que sabemos e pelo que desejamos ter. O nosso olhar depende vitalmente da nossa experiência e das nossas literacias. Quando olhamos para o quadro de Gijsbrechts e o vemos como moderno, nesse olhar está, por exemplo, Magritte, os hiper-realistas, uma parte da história da pintura dos nossos dias que lhe dá “modernidade”. Para o seu autor podia ser uma brincadeira, um virtuosismo elegante e engraçado, para nós é uma metáfora sobre a realidade, é mais sério. Provavelmente para Gijsbrechts também o era, dado que ele, como os seus contemporâneos, usava as naturezas mortas para prefigurar a ilusão do mundo e da vida. Um tema recorrente era o da Vanitas, o da decadência de todas as coisas por detrás do engano da eternidade. No meio das mais opulentas imagens de frutas, cálices de cristal, caça, pão, colocavam, meia escondida, uma mosca. Para compreendermos.

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© José Pacheco Pereira
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