ABRUPTO

5.7.03


DECÊNCIA


O Abrupto incita-me a continuar. Fala-me do macro e tem razão em falar dele, do macro. Infelizmente para mim – e para lhe responder tenho de pessoalizar – este país que temos e fazemos, dá cabo de mim todos os dias, encarrega-se sempre de me fazer amochar. Cá, o comportamento responsável é um comportamento freak. (….) Percebe, não percebe?
(…)
A discussão que tenho comigo mesmo é sobre a educação que devo dar aos meus filhos. Devem eles ser educados segundo o princípio do respeito ao outro e das regras mais elementares da civilização, ou, devem eles aproveitar a maneira portuguesa de fazer as coisas e estacionar no lugar dos deficientes se é só para ir comprar fiambre?
(…)
Mas não deixo de me perguntar se este macro vale a pena. Quer dizer, eu sei que não vale a pena, o que quero mesmo saber é bem mais simples. A saber, se alguma vez o meu modus vivendi será caucionado pelas circunstâncias como mais correcto. Duvido e aguardo que, pelo menos, os meus filhos saiam mais à mãe, igualmente exigente, mas bem menos angustiada
.”


Caro ignoto amigo do Guerra e Pas como eu o percebo.

Nestas coisas só se pode responder em bens, em cash como agora se usa. Aqui vai o meu único cash, palavras, sob a forma de um fragmento de um texto que já escrevi há uns anos, antes de me meter numa daquelas actividades que já se sabe irem correr mal, em que se despendem inúmeros esforços que se antevê inúteis, para tentar fazer as coisas bem e ninguém absolutamente quer saber se as coisas se fazem bem ou como de costume., mal.

São dez horas da manhã do dia de Natal . Escrevo este texto no Porto, frente à Foz do Douro , numa cidade fechada e deserta . Não há vivalma nas ruas. Está um dia cinzento e chove aquela chuva que no Norte até à Corunha se chama morrinha. A morriña da nossa irmã galega Rosalia .
Para quem conhece o sítio , a Foz do Douro é um local trágico , local de mortes , suicídios e naufrágios . Basta olhar , como estou agora a olhar , para as vagas cinzentas que se abatem sobre a margem , sobre o molhe e que entram rio adentro . Aqui as vagas puxadas pelo vento rebentam contra o rio , como se o rio fosse sólido , feito de rocha , como aliás suspeito há muito que o Douro é . Os pescadores da Afurada tem muito medo desta barra e , lá longe do outro lado , escondem-se também em casa , deixando os barcos em terra . No meio da espuma e da rebentação, oscila perdida um boia vermelha marcando o estreito canal entre a margem do Douro e o Cabedelo . No Cabedelo matou-se pelo fogo um companheiro meu dos anos 60 que não sabia viver nos anos 80 .
Na margem de cá , sobrevivem pescadores , gente dos estaleiros com profissões que estão a morrer : carpinteiros de navios , conhecedores do cavername do “N. S. da Agonia” , do “Maria Luisa” , do “Cravos de Abril” . À noite há aqui namorados , carros de namorados onde o rio também roubou algumas vidas . E, se é verdade que os pardais são psicopompos , transportadores das almas dos mortos , também há aqui pardais , à chuva , pousados na erva a comer abstractos insectos , enquanto por cima voam baixas as gaivotas . Está tudo demasiado certo, parece ficção , mas é assim que está . A natureza porta-se bem de mais quando resolve fazer paisagens para o espírito.
Mas é o mar e o rio que aqui mandam tudo . Não há mar como este e este é o “meu” mar, o resto é um lago onde se toma banho lá no fundo do país. É o mar dos pescadores, que acontece na Nazaré, na Ericeira , em Peniche , em Sesimbra , o mar cão , o mar maldito , o mar que há-de “comer” Espinho , o único mar que é como o Mar do Norte . Que é o mar do Norte. É com este mar que sempre me aconselhei, falho de querer dos homens respostas que o mar dá com mais dureza, cruel como um cristal, certo como tudo está agora . Com ele me aconselho para saber que espécie de hubris transviada me faz fazer o que eu faço , neste mundo do poder desprovido de qualquer milk of human kindness , feito do pior da pequenez , sem grandeza nem dimensão , poeira da poeira , mas que é o da imperfeição da democracia sem o qual – eu sei – os homens seriam servos .
Não , meus caros críticos , pela inteligência que essa me aconselharia prudência . Não é pela prudência, que essa me aconselharia distância. Não é pela emoção que essa me aconselharia recato. Não é pelos proveitos que esses aconselhariam melhor uso dos recursos. Não é pela fama que essa eu sei ser fácil e de pouca valia. Não pelo poder, que esse eu sei ser vão , pequeno e fugaz . Não é pela grande moral , que essa eu sei ser intima , indizível e imponderável . Não é pelo que se ganha, porque não vale o que se perde.
Mas continuarei. Porque é pela decência, pela simples moralidade dos homens comuns, pela moralidade que nasce da intima convicção de que há coisas certas e outras erradas . Eu sei que isto hoje parece arrogância, autismo , intolerância , mas isso é fruto dos tempos que os homens estão a habituar mal
.”

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© José Pacheco Pereira
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