ABRUPTO

3.7.03


CARTA DE TIMOR

Uma amiga minha, a "Z." , foi para Timor e lá leu o Abrupto. Os cliques vem de lá, no pequeno espaço asiático do contador, e, conhecendo a "Z.", devem ser suficientes para elevar o longínquo pico. De Timor, escreveu-me uma carta com o olhar das inglesas na Índia, da Passage to India , medido pela distância de ser portuguesa e não inglesa. Mas é um olhar "colonial" muito especial, que talvez só agora os portugueses possam começar a ter. Aqui ficam, dos antípodas, as palavras:

"Estou em Timor. Nem me lembro se houve alguma razão que me fez escolher Timor para os próximos anos. Nem demorou mais do que se tivesse feito rodar um globo e apontado com um dedo de olhos fechados, para onde imaginei acertar nos trópicos. Abruptamente...
(...)
A Ásia é fabulosa. Size matters. Mais um planeta. Uma sensação de que vivo mais uma vida do que aquela a que tenho direito.
Eu estou nas sete quintas... Nada funciona numa lógica linear de maneira que estou no meu habitat preferido. É tão fácil viver aqui. Um imenso calor dia e noite, uma humidade acima dos 85%, o som dos helicópteros que chegam directamente de Hanói e esta coerência arquitectónica neo-realista tipo Beirute em 1985. E nem tenho que pagar o preço de um "cenário de guerra". Parece um dos lugares mais seguros do mundo. Ando aqui de um lado para o outro a qualquer hora sem problema nenhum. Até a guerra no Iraque ficou lá para outro planeta onde ainda há guerras e para outro tempo que não aquele em que vivemos aqui.
As notícias que acompanhei em directo na BBC e na CCN mais pareceram documentários do que noticiários.
Só cheguei em Janeiro de forma a que o 4 de Dezembro para mim nunca aconteceu. Apesar de bastar uma pequena faísca para isto virar um enorme fogo de artifício (que é o que vai acontecer no segundo imediatamente seguinte à retirada dos militares) parece quase impossível que esta gente se transforme tão facilmente em monstros furiosos. Mas isso seria compreender a própria Ásia, que é tão fabulosa. Tão diferente de tudo. Size matters.
Pois é, seja a nostalgia que me fazem os helicopteros Puma, o peso do calor dos trópicos, ou o simples facto de não estar em Portugal ou na Europa, a verdade é que daqui só saio por motivos de força maior. E mesmo assim…
Neste momento estou cá sózinha, mas a situação corriqueira é com parte da família que agora está aí de férias. (...) Também temos Bridge e gin tónico. (...) Até tenho cães! Três cães. Isto deve soar à India do tempo colonial...
Pouca coisa me liga ao nosso país. Ainda me ligo a pessoas. (,,,)
Nos últimos seis meses estive tão actualizada sobre os debates do estado da nação, os disparates dos do costume ou sobre o que vai sair nos jornais do dia seguinte, como quando estava em Lisboa. É igual conversar ao telefone de Lisboa para Lisboa ou entre Berlim e o Suai.
Impressionante as linhas que ainda dedico a este tema, não é?
Farto-me de viajar. Por aqui. Pela minha área. Para a semana vou para Java. Espero apanhar um banho de verdadeiro caos em Jacarta. Imagino que incompreensível para si.
Quando me perguntaram em miúda qual era a colecção que eu fazia, eu respondi de monstros. Perguntaram-me de seguida se eu tinha pesadelos, disse que não. Mas que os meus monstros tinham muitos pesadelos...
Em relação aos lugares, provavelmente, também me apaixono pelos seus defeitos. Ou pelo contraste dos dois lados da mesma moeda, isto é, do mesmo objecto."

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© José Pacheco Pereira
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