ABRUPTO

31.3.05
 


NO MEIO

de milhares de quilómetros de mar para todo o lado, em cima de uma rocha de lava, aberto a um vento pouco ameno, é nestes dias escrito o Abrupto. Amanhã descerei a uma cratera, depois de amanhã sentirei o enxofre noutra, depois de depois de amanhã apanharei uma pedrinha de basalto como sinal de que não me esqueço. A obra ao negro.

29.3.05
 


AR PURO


C. Monet
 


EARLY MORNING BLOGS 461

Brumes et pluies

Ô fins d'automne, hivers, printemps trempés de boue,
Endormeuses saisons ! je vous aime et vous loue
D'envelopper ainsi mon coeur et mon cerveau
D'un linceul vaporeux et d'un vague tombeau.

Dans cette grande plaine où l'autan froid se joue,
Où par les longues nuits la girouette s'enroue,
Mon âme mieux qu'au temps du tiède renouveau
Ouvrira largement ses ailes de corbeau.

Rien n'est plus doux au coeur plein de choses funèbres,
Et sur qui dès longtemps descendent les frimas,
Ô blafardes saisons, reines de nos climats,

Que l'aspect permanent de vos pâles ténèbres,
- Si ce n'est, par un soir sans lune, deux à deux,
D'endormir la douleur sur un lit hasardeux.

(Baudelaire)

*

Bom dia!

28.3.05
 


PREPARANDO-ME DE NOVO

para os caminhos de basalto, para onde o ar, a terra e o mar são turbulentos, fervem por dentro, crescem e baixam, porque a terra é viva. Cada um escolhe a chuva com que se molha. Haverá notícias vulcânicas, em breve.
 


AR PURO


C. Monet
 


EARLY MORNING BLOGS 460


Ma chaumière


Ma chaumière aurait, l'été, la feuillée des bois pour
parasol, et l'automne, pour jardin, au bord de la fenêtre,
quelque mousse qui enchâsse les perles de la pluie, et
quelque giroflée qui fleure l'amande.

Mais l'hiver, - quel plaisir, quand le matin aurait secoué
ses bouquets de givre sur mes vitres gelées, d'apercevoir
bien loin, à la lisière de la forêt, un voyageur qui va
toujours s'amoindrissant, lui et sa monture, dans la neige
et la brume !

Quel plaisir, le soir, de feuilleter, sous le manteau de
la cheminée flambante et parfumée d'une bourrée de geniè-
vre, les preux et les moines des chroniques, si merveil-
leusement portraits qu'ils semblent, les uns jouter, les
autres prier encore !

Et quel plaisir, la nuit, à l'heure douteuse et pâle, qui
précède le point du jour, d'entendre mon coq s'égosiller
dans le gelinier et le coq d'une ferme lui répondre faible-
ment, sentinelle juchée aux avant-postes du village endormi.,

Ah ! si le roi nous lisait dans son Louvre, - ô ma muse
inabritée contre les orages de la vie ! - le seigneur
suzerain de tant de fiefs qu'il ignore le nombre de ses
châteaux ne nous marchanderait pas une chaumine !


(Aloysius Bertrand)


*

Bom dia!
 


UMA FORMA PARTICULAR DE DESERTO

cresce nestes dias. A normalidade? O fim dos problemas? O governo finalmente ideal? A graça do estado de graça? Os noticiários televisivos dedicam-se às doenças, entre o alarmismo e o caso humano. Uma lontra nasce em directo. Volta-se ao circo, agora a sério, pelo pitoresco. Os ecologistas assumem o primeiro plano dos grandes problemas nacionais: os animais do circo são maltratados? Três golfinhos apareceram mortos numa praia. Crime ou petróleo? Lá para o Norte fazem-se os folares, lá para o Sul a chuva acabou com a seca. O futebol continua sempre com o mesmo interesse, parece que também normalizado.

Pobres daqueles que duvidam de tanta fartura. Deviam era estar contentes e fazer férias longe, esquecer o fim do Pacto de Estabilidade, esquecer a "tenebrosa" directiva Bolkestein, esquecer as estranhas manobras à volta da Alta Autoridade para a Comunicação Social acerca da compra do grupo Lusomundo, entregar o país ao humor e às “celebridades”. O reino do bem voltou. Mostrem-se agradecidos e dediquem-se às lontras bebés.

27.3.05
 


COISAS SIMPLES


Kuzma Petrov-Vodkin
 


EARLY MORNING BLOGS 459

E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!


(Alexandre Herculano)

*

Bom dia!

26.3.05
 


INTENDÊNCIA

Continuo com a minha saga bibliográfica nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO, onde continua a polémica sobre o lado mítico de Catarina Eufémia a que Helena Matos faz hoje referência no seu artigo do Público.

Coloquei também nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO uma carta inédita que o dirigente do PCP nos anos trinta Cansado Gonçalves, já falecido, me escreveu em 1983, relatando um episódio envolvendo o jovem Cunhal.
 


COISAS SIMPLES


Matisse
 


EARLY MORNING BLOGS 458

The Middle Age


Between TV and computer screens
counterfeiting a dragon glow in our mouths agog
and fundamentalists dreaming up real
fire and smoke to transmogrify the U.S.A.,

we may be on our way to something else,
as people in the Middle Ages sensed the decay
of the feudal system. Little orange mushrooms
sprouted from castle mortar and lilies

festered, till BOOM, the Gutenberg Bible
blew the roof off the church. The big party
(individualism) began, and the bare naked
rodeo we now call the Renaissance

gave us—let's face it—the best art ever;
In 1620 F. Bacon posited three
inventions as the high tech hocus-pocus
behind society's sea change: printing, gunpowder,

and the magnet. That's right, the magnet.
Used in compasses, it made heavenly bodies
obsolete, thus exploration of the New
World easy as pie. I mention in passing

Columbus's packs of mastiffs and greyhounds
trained on human flesh (brown), but the main
needle that guides my life is the needle
of debt. True North: My Mortgage. I find myself

thinking of Las Vegas, where I might
bathe in lilac neon and wander
palaces, tickled by the bickering
roulette wheels and the final clicks.

And get free drinks. And catch a lion act.
And I would turn my back on all that,
sagely, and walk out in the desert,
letting my crow's feet crinkle ironically.

Out in the desert at sunset
the wind must sequin up a sandgrain
or two, and the prodigal prune-face moon
appear above a dune. Beautiful.

Poignant as hell. And I bet you can hear,
far-off, barking Lotto numbers
the Beast of the Apocalypse. Yes, yes,
a Vegas vacation might be just the thing. Yes,

but I recall my childhood most keenly:
Hansel and Gretel's predicament: luminous
breadcrumbs one by one blinking out, a bird
too dark to be seen.



(Roger Fanning)

*

Bom dia!

25.3.05
 


INTENDÊNCIA


Continua a actualização da bibliografia dos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO. Fazer uma bibliografia deve ser o equivalente à renda de Bilros. Em pior, porque nunca mais acaba.
 


ACORDE O VELHO TELEGRAFISTA QUE HÁ EM SI

Parte da minha correspondência tem sido em Morse, por culpa de Janus o bifronte que produziu aquela que deverá ser a primeira nota escrita num blogue nos pontos e tracinhos do código, o que, convenhamos, não é muito habitual. Velhos capitães da Marinha, gente das cifras, e outros nostálgicos do rádio amadorismo, escreveram para o Abrupto usando Morse. Outros, mais expeditos nestas coisas da rede, usando o Java Code Morse Translator. Ainda bem .- ... ... .. -- / --- / -- --- .-. ... . / -. --- / ..-. .. -.-. .- / ... --- / .--. .- .-. .- / .- / .- .-. --.- ..- . --- .-.. --- --. .. .- --..-- / -- .- ... / .--. --- -.. . / ... . -- .--. .-. . / ... . .-. ...- .. .-. / .--. .- .-. .- / .--. . -.. .. .-. / ... --- -.-. --- .-. .-. --- / -. --- ... / .-. --- -- .- -. -.-. . ... / .--. --- .-.. .. -.-. .. .- .. ... / . / --..-- / - .- .-.. ...- . --.. --..-- / -. .- / ...- .. -.. .- / .-. . .- .-.. .-.-.-
porque, para além do mais, sempre pode ouvir esta nota do Abrupto.
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: "ADMOVERE OCULIS DISTANTIA SIDERA NOSTRIS"



Esta é uma fotografia da lente do telescópio que Huygens utilizou para descobrir as luas de Saturno. Na lente está escrito um verso de Ovídio que contém um anagrama anunciando a descoberta de Titã. Toda a história desta lente aqui.
 


EARLY MORNING BLOGS 457

Himno (I) (A la luz)


Oh la hermosura de la luz,
que habla
sin palabras, y toca
sin llegarse, y nos sabe
aromar sin ser jara ni de rosa
forma o tinta mostrar. Oh la frescura
de la luz, río ancho,
lago profundo, alta
cascada, arroyo armónico
de sombra y de trinos
de hojas verdes
y alguna que se cae
marchita. Oh la ternura
de la luz que, pudiendo
cegarnos, sus profundos
ojos anida entre su propia alada
cabellera inmortal, que nuestro paso
aligera, pudiéndonos dejar
marchitos en el valle, que nos cura
los recuerdos más próximos
para que la podamos saludar
junto ala muro caído. Oh la cordura
de la luz, que nos deja desvariar
mientras ella sonríe
en el verde del junco, de la avena
en el ramo inclinado, y llora un poco
en la plata que arrastra
la brisa; que prefiere
repartirse en lo claro de lo oscuro
de la sazón. Oh la dulzura
de la luz que se aparta
al paso de la muerte
y, al punto, es más sustento
y más sabor –abeja
intangible y discreta
que de sí hace su miel-. Oh la figura
invisible y cambiante
de la luz, vista siempre
hacerse más y más
hermosura, más luz entre su luz.

(Angel Crespo)


*

Bom dia!

24.3.05
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: JANUS FALANDO EM MORSE - TRAÇO, PONTO, TRAÇO



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INTENDÊNCIA

Continua a actualização da bibliografia dos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.Já vai em mais de 150 páginas de texto e está longe do fim.

No mesmo sítio há também uma polémica interessante, com gente que sabe do que está a falar, sobre Catarina Eufémia, a história e o mito.
 


COISAS SIMPLES


Félix Valloton
 


EARLY MORNING BLOGS 456

Retrato



Esta es mi cara y ésta es mi alma: leed.
Unos ojos de hastío y una boca de sed...
Lo demás, nada... Vida... Cosas... Lo que se sabe...
Calaveradas, amoríos... Nada grave,
Un poco de locura, un algo de poesía,
una gota del vino de la melancolía...
¿Vicios? Todos. Ninguno... Jugador, no lo he sido;
ni gozo lo ganado, ni siento lo perdido.
Bebo, por no negar mi tierra de Sevilla,
media docena de cañas de manzanilla.
Las mujeres... -sin ser un tenorio, ¡eso no!-,
tengo una que me quiere y otra a quien quiero yo.

Me acuso de no amar sino muy vagamente
una porción de cosas que encantan a la gente...
La agilidad, el tino, la gracia, la destreza,
más que la voluntad, la fuerza, la grandeza...
Mi elegancia es buscada, rebuscada. Prefiero,
a olor helénico y puro, lo chic y lo torero.
Un destello de sol y una risa oportuna
amo más que las languideces de la luna
Medio gitano y medio parisién -dice el vulgo-,
Con Montmartre y con la Macarena comulgo...
Y antes que un tal poeta, mi deseo primero
hubiera sido ser un buen banderillero.
Es tarde... Voy de prisa por la vida. Y mi risa
es alegre, aunque no niego que llevo prisa.



(Manuel Machado)

*

Bom dia!

23.3.05
 


DE REGRESSO

pouco a pouco. Até breve.

22.3.05
 


AR PURO


Constantin Somov
 


EARLY MORNING BLOGS 455

Litany


This is a litany of lost things,
a canon of possessions dispossessed,
a photograph, an old address, a key.
It is a list of words to memorize
or to forget–of amo, amas, amat,
the conjugations of a dead tongue
in which the final sentence has been spoken.

This is the liturgy of rain,
falling on mountain, field, and ocean–
indifferent, anonymous, complete–
of water infinitesimally slow,
sifting through rock, pooling in darkness,
gathering in springs, then rising without our agency,
only to dissolve in mist or cloud or dew.

This is a prayer to unbelief,
to candles guttering and darkness undivided,
to incense drifting into emptiness.
It is the smile of a stone Madonna
and the silent fury of the consecrated wine,
a benediction on the death of a young god,
brave and beautiful, rotting on a tree.

This is a litany to earth and ashes,
to the dust of roads and vacant rooms,
to the fine silt circling in a shaft of sun,
settling indifferently on books and beds.
This is a prayer to praise what we become,
"Dust thou art, to dust thou shalt return."
Savor its taste–the bitterness of earth and ashes.

This is a prayer, inchoate and unfinished,
for you, my love, my loss, my lesion,
a rosary of words to count out time's
illusions, all the minutes, hours, days
the calendar compounds as if the past
existed somewhere–like an inheritance
still waiting to be claimed.

Until at last it is our litany, mon vieux,
my reader, my voyeur, as if the mist
steaming from the gorge, this pure paradox,
the shattered river rising as it falls–
splintering the light, swirling it skyward,
neither transparent nor opaque but luminous,
even as it vanishes–were not our life.


(Dana Gioia)

*

Bom dia!

21.3.05
 


AR PURO / ÁGUA PURA


Constantin Somov
 


A LER / A VER


No Público , Parte 3 de Fernando Ilharco, pensando na Bombardier, e como o "choque tecnológico" e a "estratégia de Lisboa" são maneiras de não ver o que se passa à nossa volta, estratégias de resistência e de recuo, de velhas sociedades perdidas no seu conforto imediato e incapazes de assegurar a reprodução desse conforto.

E na SIC a notável reportagem, de alta craveira em todo o mundo, de Henrique Cymerman sobre os "homens-bomba" de Bit Furik. A registar os notáveis comentários paralelos vindos da academia israelita e do imã do Hamas na mesquita de Bit Furik, sobre o "paraíso" dos muçulmanos, falando daquilo que, por detrás do nosso ecrã "politicamente correcto", não queremos ver: o papel do sexo e da masculinidade no mundo árabe e, por reverso, o papel da mulher como património sexual do homem.
 


EARLY MORNING BLOGS 454

Hatteras Calling


Southeast, and storm, and every weathervane
shivers and moans upon its dripping pin,
ragged on chimneys the cloud whips, the rain
howls at the flues and windows to get in,

the golden rooster claps his golden wings
and from the Baptist Chapel shrieks no more,
the golden arrow into the southeast sings
and hears on the roof the Atlantic Ocean roar.

Waves among wires, sea scudding over poles,
down every alley the magnificence of rain,
dead gutters live once more, the deep manholes
hollo in triumph a passage to the main.

Umbrellas, and in the Gardens one old man
hurries away along a dancing path,
listens to music on a watering-can,
observes among the tulips the sudden wrath,

pale willows thrashing to the needled lake,
and dinghies filled with water; while the sky
smashes the lilacs, swoops to shake and break,
till shattered branches shriek and railings cry.

Speak, Hatteras, your language of the sea:
scour with kelp and spindrift the stale street:
that man in terror may learn once more to be
child of that hour when rock and ocean meet.


(Conrad Aiken)

*

Bom dia!

20.3.05
 


OUVINDO O ROBIM DOS BOSQUES


A música de Korngold para o "Robin Hood" com Errol Flynn, um dos melhores "Robin" de sempre. As fanfarras do filme parecem saídas da Guerra das Estrelas. Tudo salta à minha volta. Excelente para fazer bibliografias.
 


EARLY MORNING BLOGS 453


Chansons Innocentes: I


in Just-
spring when the world is mud-
luscious the little
lame balloonman

whistles far and wee

and eddieandbill come
running from marbles and
piracies and it's
spring

when the world is puddle-wonderful

the queer
old balloonman whistles
far and wee
and bettyandisbel come dancing

from hop-scotch and jump-rope and

it's
spring
and
the
goat-footed

balloonMan whistles
far
and
wee



(E. E. Cummings)

*

Bom dia!

19.3.05
 


AR PURO


Repin
 


EARLY MORNING BLOGS 452

The Czar's Last Christmas Letter: A Barn in the Urals



You were never told, Mother, how old Illya was drunk
That last holiday, for five days and nights

He stumbled through Petersburg forming
A choir of mutes, he dressed them in pink ascension gowns

And, then, sold Father's Tirietz stallion so to rent
A hall for his Christmas recital: the audience

Was rowdy but Illya in his black robes turned on them
And gave them that look of his; the hall fell silent

And violently he threw his hair to the side and up
Went the baton, the recital ended exactly one hour

Later when Illya suddenly turned and bowed
And his mutes bowed, and what applause and hollering

Followed.
All of his cronies were there!

Illya told us later that he thought the voices
Of mutes combine in a sound

Like wind passing through big, winter pines.
Mother, if for no other reason I regret the war

With Japan for, you must now be told,
It took the servant, Illya, from us. It was confirmed.

He would sit on the rocks by the water and with his stiletto
Open clams and pop the raw meats into his mouth

And drool and laugh at us children.
We hear guns often, now, down near the village.

Don't think me a coward, Mother, but it is comfortable
Now that I am no longer Czar. I can take pleasure

From just a cup of clear water. I hear Illya's choir often.
I teach the children about decreasing fractions, that is

A lesson best taught by the father.
Alexandra conducts the French and singing lessons.

Mother, we are again a physical couple.
I brush out her hair for her at night.

She thinks that we'll be rowing outside Geneva
By the spring. I hope she won't be disappointed.

Yesterday morning while bread was frying
In one corner, she in another washed all of her legs

Right in front of the children. I think
We became sad at her beauty. She has a purple bruise

On an ankle.
Like Illya I made her chew on mint.

Our Christmas will be in this excellent barn.
The guards flirt with your granddaughters and I see...

I see nothing wrong with it. Your little one, who is
Now a woman, made one soldier pose for her, she did

Him in charcoal, but as a bold nude. He was
Such an obvious virgin about it; he was wonderful!

Today, that same young man found us an enormous azure
And pearl samovar. Once, he called me Great Father

And got confused.
He refused to let me touch him.

I know they keep your letters from us. But, Mother,
The day they finally put them in my hands

I'll know that possessing them I am condemned
And possibly even my wife, and my children.

We will drink mint tea this evening.
Will each of us be increased by death?

With fractions as the bottom integer gets bigger, Mother, it
Represents less. That's the feeling I have about

This letter. I am at your request, The Czar.
And I am Nicholas.


(Norman Dubie)

*

Bom dia!
 


MEMÓRIA CURTA

A facilidade com que o “pack journalism” funciona só pode surpreender os incautos. A rapidez com que se tiram conclusões de fundo de meia dúzia de sinais ainda incipientes e pouco testados é notável. É o caso da ideia de que o “comportamento de Sócrates é comparável ao de Cavaco Silva” (presente no Expresso da Meia Noite da SIC Notícias, no Público de hoje e em meia dúzia de comentários avulsos sobre a gestão do silêncio).

É um estilo? Talvez seja e se o for é positivo. No entanto, tanto louvor só pode vir da diferença com o passado imediato e não de uma qualquer memória sólida que permita tirar conclusões para além de ontem. Entre ontem e hoje, estou de acordo, a diferença é significativa. Mas quanto a anteontem?

Acaso já se está esquecido de que o mesmo louvor se passou com outros governos como o de Guterres e Barroso e, pasme-se, com o de Santana. Se não tivéssemos uma memória pública que nem um mês mantém presente na cabeça, lembraríamos que a formação do governo de Santana foi elogiada também por não ter sido feita na praça pública…

É evidente que vindo depois de quem vem, tudo em Sócrates parece discrição, recato, rigor e dedicação. Não admira que a mera normalidade seja um enorme alívio depois da perturbação sôfrega de todos os dias. Mas não é prudente ir para além disso, porque ainda não se sabe se é um estilo consolidado e sustentado – são as dificuldades a prova dos nove e ainda não houve nenhuma, tem sido tudo um mar de rosas – e acima de tudo, um estilo não é um política, e de política sabemos muito pouco ou de menos.

18.3.05
 


OUVINDO AS VÉSPERAS


de Veneza. Um Sol débil parte a meio a Praça, e os canais estão mais cinzentos do que o costume.
 


EARLY MORNING BLOGS 451


Of Politics, & Art


--for Allen

Here, on the farthest point of the peninsula
The winter storm
Off the Atlantic shook the schoolhouse.
Mrs. Whitimore, dying
Of tuberculosis, said it would be after dark
Before the snowplow and bus would reach us.

She read to us from Melville.

How in an almost calamitous moment
Of sea hunting
Some men in an open boat suddenly found themselves
At the still and protected center
Of a great herd of whales
Where all the females floated on their sides
While their young nursed there. The cold frightened whalers
Just stared into what they allowed
Was the ecstatic lapidary pond of a nursing cow's
One visible eyeball.
And they were at peace with themselves.

Today I listened to a woman say
That Melville might
Be taught in the next decade. Another woman asked, "And why not?"
The first responded, "Because there are
No women in his one novel."

And Mrs. Whitimore was now reading from the Psalms.
Coughing into her handkerchief. Snow above the windows.
There was a blue light on her face, breasts and arms.
Sometimes a whole civilization can be dying
Peacefully in one young woman, in a small heated room
With thirty children
Rapt, confident and listening to the pure
God rendering voice of a storm.


(Norman Dubie)

*

Bom dia!

17.3.05
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (9ª série)



(Jan Lievens)

Ao ler episódios das Memórias das Bibliotecas veio-me a ligação com as Cooperativas Livreiras de Estudantes que nasceram entre nós nos anos 60. A LIVRELCO, em Lisboa, a UNICEPE, no Porto e a UNITAS em Coimbra.
Para além de algum papel que desempenharam na resistência contra a ditadura, foram âncoras importantes no desenvolvimento cultural e até profissional dos jovens de várias gerações.
Comungando dos ideais do "velho" cooperativismo de Rochedale, eram geridas pelos estudantes, procurando-se fugir aos circuitos comerciais tradicionais e assim fazer contribuir para que o livro pudesse ser uma mercadoria mais acessível a camadas com reduzido poder de compra.
Para além de que, correndo inevitáveis e óbvios riscos, furar o cerco da censura e da figura do "livro fora do mercado" era possível nesses redutos tolerados pelo regime de então, mas sempre vigiados e perseguidos.

Fui dirigente da UNICEPE durante alguns anos (creio que a cooperativa ainda que penosamente, subsiste). O Pacheco Pereira era sócio e por lá o via com alguma frequência. E outros, como o Vasco Graça Moura, o Armando de Castro, o Mário Viegas, para só falar de alguns que me vieram de imediato à memória. Eram tempos de algum idealismo e porventura de alguma utopia. Mas eram também tempos de inconformismo e de afirmação.

(António Moreira)


*

A mim poucas memórias emergem das bibliotecas. Filho de pais humildes, a quem os livros de estudo eram inclusivamente oferecidos por alguém que conhecia editores, só já espigadote comecei a frequentar a biblioteca da mui nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto (longe realmente vão os tempos que deram origem a estes epítetos...). No entanto nunca me esquecerei dos longos momentos que gastei a ler nos emergentes supermercados da altura (já lá vão trinta e muitos anos e estas unidades de comércio já faziam furor). Sem ter dinheiro para comprar esses criadores de sonhos, aproveitava a "impessoalidade" desses estabelecimentos comerciais, como felizmente ainda hoje frequentemente encontro algumas crianças, para instalado num canto qualquer me deliciar e me ausentar deste mundo ao entrar por exemplo no mundo delicioso e de aventura de Enid Blyton; e se alguém me oferecia um livrito (o que raramente acontecia) e se gostava dele, lá ficava eu a lê-lo até às tantas, com a luz do quarto apagado (já que a energia eléctrica, apesar de bem apregoado e facilitado o seu uso pelo Dr. Salazar, era cara) e uma lanternita acesa debaixo dos lençóis. Para meu castigo tenho um filhote, que apesar de muito estimulado, a leitura parece ser tortura de Guantanamo. Como é injusta a vida.

(Abel Gomes)

*

A propósito do deslumbramento confessado por Amf perante um milhão de volumes ao alcance físico da sua mão das 7h às 24h, na biblioteca de uma universidade americana, lembro a extrema necessidade de repensar os horários das nossas bibliotecas, a começar pela Biblioteca Nacional. Frequentadora regular da BN nos últimos anos, senti muitas vezes a dificuldade de conjugar a investigação que realizava para o doutoramento com o meu horário de trabalho na escola onde sou professora. Tive mais sorte na preparação do mestrado, beneficiando de inúmeros serões e fins de semana passados na belíssima biblioteca da Universidade de Hong Kong, onde até as diversas máquinas fotocopiadoras espalhadas pelas salas de leitura funcionavam com o cartão que servia de passe para o metro e autocarro.

(Helena Rodrigues)

*

Este texto foi feito a pedido do “Jornal de Coimbra” para a rubrica: O LIVRO QUE NÃO EMPRESTO

Não consigo imaginar-me a recusar emprestar um livro. Não me é fácil, sequer, pensar nessa possibilidade pois, embora me veja a mim mesma como uma leitora compulsiva, nunca fetichizei os livros ou a sua posse. Se, como toda a gente, prefiro ler um livro novo a um muito usado, são-me, contudo, bastante indiferentes os aspectos exteriores ao próprio conteúdo do livro, o que talvez se explique pelo modo como principiou, o que não posso deixar de considerar, como a minha frutuosa carreira de leitora.
Corria o ano de 1958, andava eu na 2ª classe, quando a Fundação Calouste Gulbenkian pôs a funcionar o seu plano de bibliotecas itinerantes. A família acorreu a inscrever-se (pai, mãe, avô, tia e eu, com a toda a importância de uma recém letrada - com cartão e tudo). Durante muitos anos lá ia eu à biblioteca, todas as semanas, levantar os "meus" cinco livros, o número máximo que permitia o estimado professor Armindo Pega. Não foi preciso passar muito tempo para que eu e as minhas duas irmãs lêssemos, cada uma, 15 livros por semana! Ali-Bábá não entrava na sua caverna, cheia de tesouros, e não a olhava com mais êxtase do que nós ao subir para aquela carrinha, cheia de livros usados, prontos a serem emprestados.
As minhas prendas de criança foram sempre livros. Tive esse privilégio, o de ter nascido numa família onde não passava pela cabeça de ninguém que livros não fossem o melhor presente a dar "às miúdas". Devo ao meu Tio Abel livros como "O Feiticeiro de Oz", refulgente nas suas duras e grandes capas amarelas ou "Os Cinco na Ilha do Tesouro", de Enid Blyton, o qual inaugurou, uma sucessão de naufrágios que tornaram o mar da minha infância particularmente enxameado de piratas.
Um dos meus preferidos era a "Ilha do Tesouro" de Robert Louis Stevenson, mas também "Dois Anos de Férias", "Os Filhos do Capitão Grant" ou a "Ilha Misteriosa" de Júlio Verne. A este grupo juntava-se ainda o "Robinson Crusoe" de Daniel Defoe, "Um Robinson Suíço" e os "Robinsons dos Galápagos". Apelando fortemente para a imaginação, com ou sem naufrágio, com ou sem piratas, nestes livros, as personagens são sempre confrontadas com os mil perigos e todos os riscos de meios desconhecidos e adversos e, numa altura em que os programas de física e química ensinavam a fazer sabão, pólvora ou vidro (tudo coisas úteis, especialmente numa ilha deserta) eu passava horas a ficcionar as minhas lutas, vitoriosas (está bem de ver!), contra todas as ciladas que a natureza ou os homens pudessem armar...
A fase dos piratas e das aventuras, desenvolveu-se em paralelo com clássicos da literatura infantil e juvenil. Nomes como Louise May Alcott (Mulherzinhas), Frances Burnett (O Jardim Misterioso), Elizabeth George Speare (A Feiticeira de Blackbird Pond) ou Selma Lagërlof (A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson) constituem, ainda hoje, referências que tenho tentado passar às minhas filhas. O período que imediatamente se segue é marcado não só por autores como Charles Dickens (quilos!), Walter Scott (ainda mais quilos!), Jorge Amado, ou John Steinbeck, mas muito especialmente por Jane Austen e Charlotte Brontë a que sucede, já estudante universitária, o deslumbramento com os "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Marquez ou "L'écume des Jours" de Boris Vian.
Ainda do tempo do liceu, Miguel Torga, cujos livros de contos li pelos quatorze, quinze anos e, antes deste, logo pelos dez, doze anos, o queridíssimo Júlio Diniz. Associarei sempre aos anos 70 autores como Nuno Bragança, Herberto Helder, Jorge Luís Borges, Aquilino Ribeiro, Carlos de Oliveira, José Régio, Ferreira de Castro. Houve autores que li, de rajada, tudo o que deles consegui encontrar como foi o caso de Jorge de Sena, Eça de Queiroz ou o caso mais recente de Philip Roth. Outros que vou acompanhando ao ritmo das suas publicações: Agustina Bessa Luís, António Lobo Antunes, José Saramago e, até há pouco, José Cardoso Pires e Sofia de Melo Breyner.
Tal como ao entrar em certos cafés, em Coimbra, me lembro das "cadeiras" que aí "fiz", quando olho para a minha vida vejo-a sempre pontuada por livros e autores, numa associação automática e imediata. E se dá perversidades como ligar Marguerite Yourcenar e as suas "Memórias de Adriano" à Praia da Rocha, também faz de 1964 o ano de "Servidão Humana" e "O Fio da Navalha" de Somerset Maugham, de 1971 o ano de "Exercícios de Estilo" de Luís Pacheco, de 1972 o ano de "Novas Cartas Portuguesas", de 1973 o ano de "A La Recherche du Temps Perdu", de Proust, ou de 2004 o ano de “A arte de viajar” de Alain de Botton
Poderia continuar a falar de livros ou de autores por muito mais tempo, um prazer que as presentes limitações de espaço não permitem. Um livro não se esgota na sua leitura, permenece, a vibrar, em nós e nas relações que estabelecemos com os outros. Tenho a sorte de partilhar este gosto com muitos amigos e pessoas de família, como a minha Mãe, com os quais participo numa rede informal de empréstimos. É com esse apoio que me mantenho no meu estado habitual de "empresto-dependência" assumido, e que continuo (quase) à altura das minhas médias de criança.
Qual o livro que não empresto? Provavelmente, só mesmo o que estou a ler no momento (no caso presente "A noite do oráculo" de Paul Auster).

(Ana Pires)
 


OUVINDO FRANK SINATRA JAZZ!!!

 


EARLY MORNING BLOGS 450

ROMANCE DEL REY DON SANCHO


-¡Rey don Sancho, rey don Sancho!, no digas que no te aviso,
que de dentro de Zamora un alevoso ha salido;
llámase Vellido Dolfos, hijo de Dolfos Vellido,
cuatro traiciones ha hecho, y con esta serán cinco.
Si gran traidor fue el padre, mayor traidor es el hijo.
Gritos dan en el real: -¡A don Sancho han mal herido!
Muerto le ha Vellido Dolfos, ¡gran traición ha cometido!
Desque le tuviera muerto, metiose por un postigo,
por las calle de Zamora va dando voces y gritos:
-Tiempo era, doña Urraca, de cumplir lo prometido.


*

Bom dia!
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: NO FIO DA NAVALHA


onde estão suspensas as pequenas luas de Saturno.

16.3.05
 


A LER

De Pedro Caeiro, A "NOVA" DIREITA no Mar Salgado.

15.3.05
 


COISAS SIMPLES / SCRITTI VENETI


J. Singer Sargent
 


EARLY MORNING BLOGS 449

Semântica Electrónica


Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim --- o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
--- Mas --- diz-me a ordenança ---
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens...
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!


(Vitorino Nemésio)

*

Bom dia!

14.3.05
 


FALTA DE …., OLHEM, FALTA DE TUDO

de sentido de estado, de boa educação, de respeito mínimo por todos.
É o que significa esta história da Câmara de Lisboa.
 


ESTRANHO

O momento e o lugar e o livro e a música. Junto a um cemitério de aldeia, alto, escuro do granito, espraiado por um pequeno planalto, sem casas perto. O livro ocasional, o Post Office do Bukowski. A música ocasional, Charles Ives. Nada que especialmente me interessasse, comprados por excesso: o livro por curiosidade, porque não gosto muito do autor; a música por curiosidade, porque o disco recebera um prémio da Grammophon e eu não conhecia a peça (engano, afinal já a tinha ouvido, um pouco Promm…). Quem juntou esta improvável mistura, por si só bizarra, excessivamente intelectual, foi a Grande Ceifeira, a que cria o inesperado, e que me apanhou entre um morto, um disco adiado e um livro improvável. Tudo o que tinha , na altura, por acaso, no momento que não se espera. Não soprava vento nenhum. Nada batia certo e na cabeça sempre este Eliot, também improvável:

LET us go then, you and I,
When the evening is spread out against the sky
Like a patient etherised upon a table;
Let us go, through certain half-deserted streets,
The muttering retreats
Of restless nights in one-night cheap hotels
And sawdust restaurants with oyster-shells:
Streets that follow like a tedious argument
Of insidious intent
To lead you to an overwhelming question …
Oh, do not ask, “What is it?”
Let us go and make our visit.


Os intelectuais são insuportáveis. Não têm inocência, arrastam coisas a mais.
 


INTENDÊNCIA

Continua a actualização da bibliografia dos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO. Já foi colocado o equivalente a cerca de 80 páginas de texto, o que obrigou à sua divisão em duas entradas, Prevejo que, no final, terá o dobro do tamanho actual, ficando a ser a mais completa bibliografia sobre este assunto jamais feita.

Actualizada a nota O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: A PRESENÇA DO FARMACÊUTICO.
 


AR PURO


Renoir
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: A PRESENÇA DO FARMACÊUTICO

(...) volto a escrever-lhe sobre o assunto após o discurso do PM na tomada de posse do Governo. Ou eu não ouvi bem ou as televisões e as rádios não prestaram muita atenção ao que disse o PM. Até o Professor Marcelo que costuma estar tão atento não tocou na questão fundamental. José Socrates disse que uma das primeiras medidas do Governo seria colocar os medicamentos, para os quais não é necessária receita médica, à venda em outros estabelecimentos comerciais que não apenas as farmácias. Mas não disse apenas isto como querem fazer querer as notícias que depois vieram a público sobre o assunto. O PM disse explicitamente que essa medida incluía a presença de um farmacêutico no ponto de venda. E é neste ponto que a medida se torna absurda. Das duas uma, ou os medicamentos chamados de venda livre são vendidos nos hipermercados, ponto final. Ou se está lá um farmacêutico, porque é que os outros medicamentos não podem ser vendidos também? Por alguma razão o local de venda tem influência sobre a competência técnica do farmacêutico?

Além disso, se tivermos em atenção o país para além de Lisboa e Porto, onde, insisto, não há um verdadeiro problema de acessibilidade, que supermercados vão suportar o custo de um farmacêutico para vender apenas alguns medicamentos? No fundo, para o Portugal mais pobre, a medida corre sérios riscos de se tornar inócua. Há duas coisas neste caso que me incomodam. A primeira e mais grave é a falta de preparação e estudo na tomada de certas medidas. O falar antes de pensar e reflectir sobre todos os aspectos que envolvem determinadas decisões, o que me preocupa sobretudo para o futuro do país. A segunda que me chateia mas não me surpreende é a falta de rigor com que os meios de comunicação tratam estas questões.

(Ricardo Sousa)

*
É a primeira vez que lhe escrevo, mas perante um post colocado no seu blogue, e conhecendo o seu discurso em relação à deturpação noticiosa, que eu subscrevo totalmente, não consegui ficar "calado". Diz o leitor Ricardo Sousa que, "O PM disse explicitamente que essa medida incluía a presença de um farmacêutico no ponto de venda". Eu ouvi o discurso e não me pareceu que ele tivesse dito tal.
Consegui no sítio da TSF uma transcrição do discurso que refere, em relação à venda de medicamentos em outros locais que não as farmácias: «Desde que reunam as condições técnicas exigíveis de qualidade e segurança, nomeadamente o controlo técnico por um farmacêutico, nada justifica que esta situação se mantenha a não ser numa legislação obsoleta» Isto é substancialmente diferente. Não faz referência a que o farmaceutico tenha que estar no local de venda, o que seria um absurdo, mas refere-se ao controlo técnico, que, obviamente, não exige uma permanência constante e efectiva no local de venda. Já chega de inventar, pondo na boca das pessoas aquilo que elas não disseram.
(Paulo Viegas)

*
Eu sei que o Abrupto não é um fórum. Mas o que significa controle técnico de um farmacêutico? Não é com certeza a verificação da composição quimica do medicamento, pois isso é feito nos locais de produção e não de venda. O controle técnico de um farmacêutico quer dizer obviamente a sua presença no local para aconselhar o consumidor e prestar esclarecimentos a quem compra.
(Ricardo Sousa)

*
Escrevo este texto preocupado com as recentes declarações do actual primeiro ministro José Sócrates sobre a possível liberalização da disponibilização de medicamentos de venda livre em superfícies comerciais.

Quando nos referimos à presença técnica de um farmacêutico, tal não implica que este se encontra no local de venda ao público para acoonselhar e controlar a venda dos referidos medicamentos. Segundo legislação comunitária existente sobre o medicamento e a actividade farmacêutica, a presença «técnica» de um licenciado em ciências farmacêutica deve ser levada a cabo na produção, distribuição, armazenamento, acondicionamento e cedência ao público do medicamento; assim, o discurso de José Sócrates acaba por não ser esclarecedor ao não referir como o farmacêutico exercerá o seu papel de agente de saúde pública no processo de venda de medicamentos de venda livre nas grandes superfícies.
Não vejo qual o problema de se vender um Betadine, um Halibut ou um antiácido num supermercado; contudo, existem medicamentos de venda livre que devido às suas graves contra-indicações e às suas reacções intermedicamentosas não devem ser vendidos como se vende uma peça de fruta; neste âmbito, referi-mo por exemplo à vulgar Aspirina, que não pode ser ingerida por indivíduos com problemas gástricos ou que estejam a ser tratados com anticoagulantes.
A função de agente de saúde pública do farmacêutico não tem sido reconhecida pela sociedade nas últimas décadas, desde que as farmácias perderam a sua função oficinal, sendo este vistos frequentemente como um comerciante. Contudo, o farmacêtico é sempre o primeiro ou o último elo de ligação entre o médico e o doente, pelo que o seu papel enquanto especialista do medicamento no aconselhamento e controlo é fundamental.
Não vejo quaisquer benefícios na medida anunciada pelo Primeiro- Ministro, e passo a justificar a minha opinião: os preços dos medicamentos de venda livre são muito regulados pelo que não irão baixar significativamente; no interior é mais fácil aceder a uma farmácia do que a uma superfície comercial, e nas grandes cidades o número de farmácias é elevado, pelo que não acredito que o acesso ao medicamento seja facilitado; esta medida constitui mais um golpe num dos sectores do comércio tradicional português.
Se há quem olhe para a Associação Nacional de Farmácias como um lobby, então que dizer dos grandes grupos económicos que estão a exercer uma enorme pressão para a liberalização total das farmácias? Se essa mesma liberalização ocorresse, só sairiam beneficiados uns escassos grupos económicos ligados às grandes superfícies comerciais, prejudicando centenas, senão milhares, de proprietários de farmácias e entregando a um trabalho com condições mais precárias centenas de farmacêuticos.
Nos países onde ocorre a venda de medicamentos de venda livre nas grandes superfícies, segundo referiu o Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, o número de intoxicações por via medicamentosa tem aumentado, bem como a automedicação, pelo que numa população iletarata e com graves carências de conhecimentos científicos a imitação do modelo norte-americano e britânico seria um acto de grande irresponsabilidade. A própria venda de vitaminas, que já ocorre em estabelcimentos que não farmácias, levanta sérias questões de saúde pública, pois podem ocorrer intoxicações de consequeências graves pela ingestão excessiva de certas vitaminas e sais minerais.
Se o nosso Primeiro-Ministro quer demonstrar que sabe combater os interesses instalados então tome medidas como a alteração do modelo de financiamento das autarquias (em 2001 segundo o Eurostat eramos o país da UE com maior percentagem de área urbanizada) ou a alteração da lei que se refere ao sigilo bancário, mas não tome medidas que se não forem bem estudadas podem conduzir a problemas graves, silenciosos e ocultos.
(Luís Frederico Gonçalves Rosa, Estudante de Ciências Farmacêuticas, Representante de Portugal no Forum da Ciênca de Londres em 2002 e 2005)

*
Nos EUA os medicamentos, ditos de venda livre, são na verdade vendidos em supermercados, estando expostos em prateleiras como qualquer outro produto. O seu preço entre supermercados varia conforme as leis da concorrência directa, chegando a haver promoções.Se em Portugal não houver concorrência no preço, não vejo qual a vantagem de comprar os referidos medicamentos em lojas que não Farmácias.
Quanto ao perigo de sobredosagem, se a sua compra não fôr feita na Farmácia, é daquelas coisas que só lembrará a quem vê os seus interesses postos em causa.
Para terminar, os farmacêuticos teriam toda a razão se vendessem só medicamentos, agora vendendo perfumes,cosméticos, sapatos, almofadas, colchões, etc, creio que perdem a razão para manter o seu monopólio.
(Pedro Diniz)


*
Controlo de medicamentos não prescritos

É abusivo afirmar que das declarações do PM JS se possa inferir a exigência de um farmacêutico por prateleira.

Controlo técnico pode significar:


* A compra, preparação, armazenamento e supervisão da venda de medicamentos atentos os princípios técnicos inerentes ao consumo de medicamentos.

* Garantir o correcto funcionamento do sector , nomeadamente no que diz respeito à gestão dos medicamentos: distribuição , prazos de validade, condições de armazenamento, encomendas, concursos de aquisição, gestão de stocks, etc.

· Assegurar a segurança da exposição dos produtos face ao consumidor.

· Supervisionar a informação mínima dos assistentes do sector.

...

Por acaso o actual Director Técnico das farmácias aconselha ? Será que as farmácias em relação a medicamentos não prescritos já não funcionam como supermercados ?
(JBM)
 


EARLY MORNING BLOGS 448

At Melville's Tomb


Often beneath the wave, wide from this ledge
The dice of drowned men's bones he saw bequeath
An embassy. Their numbers as he watched,
Beat on the dusty shore and were obscured.

And wrecks passed without sound of bells,
The calyx of death's bounty giving back
A scattered chapter, livid hieroglyph,
The portent wound in corridors of shells.

Then in the circuit calm of one vast coil,
Its lashings charmed and malice reconciled,
Frosted eyes there were that lifted altars;
And silent answers crept across the stars.

Compass, quadrant and sextant contrive
No farther tides . . . High in the azure steeps
Monody shall not wake the mariner.
This fabulous shadow only the sea keeps.


(Hart Crane)

*

Bom dia!

11.3.05
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (8ª série)



Alguma da liberdade que conquistei ao longo da vida veio dos livros que li.
Ainda hoje, e com muita regularidade, exilo-me em páginas onde o pensamento ou a realidade descrita superam o espaço onde me movo, seja no meio dos outros ou quando estou simplesmente comigo mesmo.
Existem quatro bibliotecas de referência na minha vida: a extinta biblioteca Calouste Gulbenkian de Fafe, lugar onde na infância ia buscar os livros que me obrigavam ler, pois não me conseguia relacionar com objectos que não me pertencessem e, nisso, os livros não eram excepção. Nessa idade apenas gostava dos livros que comprava ou que me ofereciam, os que eram só meus e que se não devolviam.

A biblioteca municipal do Porto, em frente ao jardim de São Lázaro, onde tardes sem conta me dediquei à escrita e à leitura de poesia para fugir a um enfadonho curso de Direito que então frequentava, aprofundando o amor que ganhei às palavras de Eugénio e de Al Berto.

A Biblioteca da Fundação Gulbenkian em Lisboa, onde conheci um dos melhores significados da leitura e do silêncio, da pacificação e do misticismo do tempo, por ser um local belíssimo, calmo, onde a leitura se espraiava para lá da sala de leitura com vista para os jardins. Na Gulbenkian, as coisas aconteciam-me em catadupa: a leitura livre e quase casual dos livros, as sucessivas visitas aos quadros de Eloy e de Almada, pelo menos uma vez por mês, tal e qual como se fossem gente, e o almoço encantador na cantina da Fundação em horas mortas para que as poucas pessoas que restavam na sala pudessem significar.

A Biblioteca Nacional, contudo, teve e tem um enorme fascínio. A Nacional é o meu espaço de uma leitura de confronto, de aprendizagem, de estatuto. Quando leio lá o que quer que seja, tenho a sensação de estar a fazer algo de extraordinária importância, fruto do trabalho e da dedicação seríssima, não só do autor, mas de toda aquela gente que guarda religiosamente o espólio impresso da nação.
Fiz-me sociólogo na Biblioteca Nacional. Saía dos Barcos do Barreiro às 7 da manhã para, às 9, estar de café tomado e alma pronta, na porta da B.N.. Há uns meses regressei lá para pesquisar uma bibliografia sobre as Rodas dos Expostos e tive que me reinscrever como leitor. Foram à minha ficha e perguntaram-me se eu era estudante de Sociologia, se morava no Barreiro, etc. Confesso que foi um choque bom ouvir falar outra vez de tudo aquilo. Eu que já sou professor de sociologia, que entretanto já morei uns anos em Lisboa e que há mais anos ainda regressei a Fafe; Eu que já perdi cerca de um terço do cabelo que tinha na fotografia da primeira inscrição e que devo pesar uns quinze quilos a mais. Eu que já sou pai de dois filhos, um dos quais já quase lê. Mas sobretudo o eu que queimou as fitas todas que tinha para queimar e que olha para aquela casa com uma saudade tremenda de quando lá passava as manhãs ou as tardes, de quando esperava ansiosamente por saber que raio de homem seria no futuro, enfim, um eu tão perdidamente apaixonado pelos dias que se preenchiam com a atribulada vida de estudante entre a leitura, a aprendizagem e a convivência sem horas, nem receios ou limitações. Voltar à sala de leitura e aos ficheiros da Biblioteca Nacional é voltar a uma parte de mim que não morre, que se não deteriora, uma parte tão bem guardada como os livros que lá li e, sobre os quais, outros farão o mesmo vida adiante, muito depois de nós, da nossa vida, da nossa única e magnífica vida por esses lugares!

(Pompeu Martins)

*

Nascido em casa sem livros, a minha dívida perante as carrinhas da FG é enorme e gostaria também de a deixar aqui registada.

Aproveito para deixar nota da total disfuncionalidade da biblioteca do Iscef em que me formei, na segunda metade dos anos sessenta, mau grado a simpatia eficaz do velho Senhor Estêvão.

E, já agora, para registar a boa surpresa , para não dizer o choque ( não tecnológico) que experimentei, poucos anos volvidos na Universidade americana em que fiz o MBA e constatei que a biblioteca era o edifício mais imponente de todo o campus. Já deslumbrado com quase um milhão de volumes ao alcance físico da minha mão, das 7 às 24h, obtive a informação de que na outra Universidade da cidade, o número se aproximava dos dois milhões e funcionava 24horas por dia. E que estava também à nossa disposição, porque, sendo do Estado, estava à disposição de toda a Comunidade…

(Amf)

*

Fascinada. Fascinada, é a palavra que transmite todo este encantamento na leitura das viagens pela bibliotecas. E que me fez partir à descoberta da resposta para esta interrogação, colocada interiormente: Como é que nasceu a minha viagem?
E dei comigo, pequenita e interrogativa a olhar para as lombadas dos livros do meu pai, livros alinhados nas estantes sem ordem nem sequência, livros que já eram velhos era eu ainda tão novinha, livros que na altura só falavam comigo pelo cheiro do papel e pelas cores dos titulos....E dei ainda comigo e ainda pequenita a soletrar esses títulos, sem saber ainda, que pouco mais tarde os devoraria numa velocidade vertiginosa de leitura, às escondidas porque o pai não deixava que eu lesse O Menino de Engenho, Usina, Capitães de Areia...à mistura, já mais velha, com Pitigrilli que por lá também andava. E dei comigo, já com sorrisos na alma, a lembrar-me das horas que passei, sentada no chão, a ver, fascículo a fascículo, A Selva, do Ferreira de Castro e a ficar chocada, sem perceber porquê, porque a minha mãe destacava esta e aquela gravura e mandava emoldurar para pendurar nas paredes do corredor. E, ao correr desta escrita, ainda dou comigo a recordar os folhetins literários que eram publicados diariamente no Diário de Notícias, jornal lá de casa, onde a aventura e os romances se misturavam aos folhetins de cordel, dramalhões de faca na liga e lágrimas abundantes, que nos eram colocados por baixo da porta das traseiras uma vez por semana, por um preço que já em le lembro....
Ainda conservo a quase totalidade da biblioteca do meu pai, com livros incompletos que o tempo lhes levou as folhas...Juntei-lhes, qual sal e pimenta da minha vida, os que encontro nos alfarrabistas daqui e dali e dos que vou comprando pelas livrarias, apesar de terem preços pecaminosos...

(Fernanda Maria Gouveia)
 


INTENDÊNCIA

Continua o preenchimento da bibliografia dos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO, que vai demorar séculos, mas anda...
 


EARLY MORNING BLOGS 447

A DON LUIS DE GÓNGORA


¿Qué firme arquitectura se levanta
del paisaje, si urgente de belleza,
ordenada, y penetra en la certeza
del aire, sin furor y la suplanta?

Las líneas graves van. Mas de su planta
brota la curva, comba su justeza
en la cima, y respeta la corteza
intacta, cárcel para pompa tanta.

El alto cielo luces meditadas
reparte en ritmos de ponientes cultos,
que sumos logran su mandato recto.

Sus matices sin iris las moradas
del aire rinden al vibrar, ocultos,
y el acorde total clama perfecto.


(Vicente Aleixandre)

*

Bom dia!
 


SINAIS

Vai ser interessante ver como o governo do PS vai organizar a sua “central de comunicação” e tentar alargar o seu espaço de tranquilidade na comunicação social. Alguns preliminares já são visíveis para quem esteja atento aos sinais.

A ofensiva contra os comentadores políticos que lhes podem ser hostis ou criar problemas já está em curso, só que não é feita da forma grosseira como o governo Santana a fez, mas sim mais sofisticada, baseada em critérios “jornalísticos” ou “institucionais”. Já se nota poder novo no ar...

10.3.05
 


BIBLIOGRAFIA SISTEMÁTICA SOBRE O PCP, OS MOVIMENTOS COMUNISTAS E RADICAIS E A OPOSIÇÃO POLÍTICA E SOCIAL ATÉ 25 DE ABRIL DE 1974 (Em organização)

nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO

Ainda de uma forma experimental vou começar a organizar uma bibliografia sistemática sobre o PCP, o movimento comunista e radical (incluindo a extrema-esquerda), e a oposição política e social à ditadura. Trata-se de ir progressivamente actualizando todo um trabalho bibliográfico que foi iniciado nos Estudos sobre o Comunismo (em papel), na Análise Social e no Boletim de Estudos Operários, e depois retomado nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO. Dado que se trata de lidar com centenas de referências bibliográficas e para não privar os interessados de tudo aquilo que possa de imediato ser inserido nesta bibliografia, ela será continuamente alimentada por módulos.

São bem-vindas todas as colaborações para este trabalho, pela sua própria natureza muito complexo.
 


INTENDÊNCIA

Actualizados os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.

Como as primeiras discussões sobre o novo governo se vão concentrar na política externa, coloquei um artigo publicado no Público, em Novembro de 2002, intitulado "Os "conselhos" europeus aos EUA" no VERITAS FILIA TEMPORIS. O artigo foi escrito a pensar em posições como as de Mário Soares e de Freitas do Amaral.
 


A QUADRATURA DO CÍRCULO

O programa mais conservador desta nossa terra, que não quer mudar, nem quer ter novidades, mas não pode infelizmente impedir a terra de mudar à sua volta nem o PS de ter ido para o governo. E lá se vai o José Magalhães para uma pasta incompatível com a discussão. Boa sorte! Virá o Jorge Coelho na sua vez para quatro anos de inferno, mas ele aguenta bem. Seja bem-vindo!
 


COISAS SIMPLES


Kuzma Petrov-Vodkin
 


EARLY MORNING BLOGS 446

ROMANCE DE DOÑA ALDA


En París está doña Alda, la esposa de don Roldán,
trescientas damas con ella para bien la acompañar:
todas visten un vestido, todas calzan un calzar,
todas comen a una mesa, todas comían de un pan.
Las ciento hilaban el oro, las ciento tejen cendal,
ciento tañen instrumentos para a doña Alda alegrar.
Al son de los instrumentos doña Alda adormido se ha;
ensoñado había un sueño, un sueño de gran pesar.
Despertó despavorida con un dolor sin igual,
los gritos daba tan grandes se oían en la ciudad.
—¿Qué es aquesto, mi señora qué es el que os hizo mal?
—Un sueño soñé, doncellas, que me ha dado gran pesar:
que me veía en un monte en un desierto lugar:
y de so los montes altos un azor vide volar;
tras dél viene una aguililla que lo ahincaba muy mal.
El azor con grande cuita metióse so mi brial,
el águila con gran ira de allí lo iba a sacar;
con las uñas lo despluma, con el pico lo deshace.
Allí habló su camarera, bien oiréis lo que dirá:
—Aquese sueño, señora, bien os lo entiendo soltar:
el azor es vuestro esposo que de España viene ya,
el águila sedes vos, con la cual ha de casar,
y aquel monte era la iglesia, donde os han de velar.
—Si es así, mi camarera, bien te lo entiendo pagar.
Otro día de mañana cartas de lejos le traen:
tintas venían de fuera, de dentro escritas con sangre,
que su Roldán era muerto en la caza de Roncesvalles.
Cuando tal oyó doña Alda muerta en el suelo se cae.

*

Bom dia!

9.3.05
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (7ª série)

Ao ver uma imagem de uma carrinha das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian no seu blogue, explodi em memórias e, ao correr da tecla, quero declarar que muito de quem sou culturalmente, o devo a essa lata com rodas que ia visitar a minha terra, uma pequena vila sem direito a concelho a dez quilómetros de Coimbra, onde nos anos sessenta tive o direito a formar-me, graças aos conselhos de um notável bibliotecário-motorista, cujo nome não registei, mas que pegando num miúdo de dez anos me orientou bibliograficamente até à minha entrada na Universidade. Graças a ele, formei-me em marxismo quase clandestinamente logo aos catorze anos, o que foi uma adequada vacina, e talvez uma desilusão para o formador, mas agradeço, sobretudo, a perspectiva estética que me deu, sobretudo o Arrabal e a fundura daquele magnífico boletim inspirado por António Quadros que me trouxe a filosofia portuguesa, o Leonardo Coimbra, o Álvaro Ribeiro e o Agostinho da Silva. E eis como o meu bibliotecário, misto de surrealista e marxista, produziu em mim uma complexidade formativa deslumbrante, bem como o acesso a um mundo de sociedade aberta que as janelas e as portas fechadas do salazarismo elevavam à esquizofrenia. Bendita biblioteca que a tantos fez este bem de nos dar a liberdade de escolher. Bem gostaria de saber o nome de tal benfeitor, para o homenagear. Se alguém me souber dizer quem era esse empregado da Gulbenkian que percorria a zona rural de Coimbra nos anos sessenta, agradecia.

(José Adelino Maltez)

*

Não feche o assunto “bibliotecas” sem lembrar as bibliotecas de associações culturais e recreativas do Barreiro nos anos 40: “Franceses”, Penicheiros” e “ Fut. Clube Barreirense”.

Repositórios públicos de livros de fronteira, entre o que era permissível ler e o que era proibido, cheios de “coleção azul”, de Blasco Ybanez, Emílio Salgari, mas também detentores de livros guardados, que só eram acessiveis a poucos “iniciados” ; estantes secretas (o meu tio Armando, bibliotecário dos “Franceses” e serralheiro extraordinário, tinha feiro uma dupla, com rolamentos, que podia abrir-se e tinha, no “lado falso”, Marx, Lenine, Engels, Jorge Amado – “Os subterrâneos da Liberdade” – John dos Passos, Bakunine, os que mais vêm à memória).

Nessas bibliotecas, o “proletariado” discutia, lia, conspirava.

Foi na do Barreirense que conheci Julio Verne; foi na dos “Franceses” que li “Estes dias tumultuosos”, do Pierre Van der Passen (onde paras, livro?!) e “O Processo Histórico” e a História Universal do César Cantu em 20 volumes, que haveria de adquirir em Cascais, num alfarrabista, há 15 anos, por 8 contos!

Eram salas grandes, com mesas e cadeiras de madeira envernizada, incómodas e ingénuas como nós.Que saudades!

Parafraseando Eça “Eramos assim, em 1948!”, antes do relatório Kruschev e da repressão na Hungria.

Quantas horas e quantas saudades da emoção, da sinceridade ingénua, da indignação verdadeira, alimentada diariamente pelos desfiles diários da cavalaria da GNR, com o capitão Homero de Matos à frente, de monóculo e “pingalim”… Foi lá que criei este amor perene pelos livros e pela leitura.

(Luis)

*

A minha "biblioteca" era uma livraria na Av. de Roma, em Lisboa, a Livraria Barata. Na altura, era um espaço minúsculo, com uma secção infantil de duas ou três prateleiras, tutelada pelo Sr. Barata e pelo Sr. Afonso.

Lembro-me de aí ter passado incontáveis fins de tarde a ler, acocorada a um canto. Sempre que exagerava no tempo de leitura, o Sr. Afonso vinha "apanhar-me" e pôr-me na rua.

Mais circunspecto e sempre triste, o Sr. Barata fingia não me ver.

Mas nada me intimidava e todos os dias voltava, para continuar a ler o livro na página onde o deixara.

Hoje, já quarentona, sempre que encontro o Sr. Afonso na rua me dá vontade de rir: ele nem sonha, certamente, que foi uma das figuras mais temidas da minha infância.

(GA)
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: PARA TERMINAR COM A LÍNGUA ALEMÃ E EDUARDO PRADO COELHO

Esta indicação de José Carlos Santos do texto The Awful German Language de Mark Twain.

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Hoje deparei com um conjunto de comentários glosando o mérito e o demérito das observações de EPC a propósito da língua alemã. Sem desprimor pela qualidade opinativa dos leitores interrogo-me sobre o interesse do tema e sobre o que a ele se pode acrescentar. Talvez lembrar que sendo a coerência e a permanência da opinião geralmente saudada como traço de carácter, em não menor medida o deve ser a flexibilidade e a capacidade regeneradora daqueles que conservam coragem e fulgor para mudar de opinião quando o erro ou a precariedade se tornam evidentes.

(GC)

*

A língua alemã - que EPC não conhece - não produziu apenas cânticos militares ou vozes de comando. Aliás, quem provar Zarah Leander, não voltará mais às"lamechisses" cançoneteiras das Piaf, dos Aznavour ou dos Lama. A língua francesa é pleno artifício, sacrificando a inteligência e o raciocínio à forma.
O francês compraz-se com a sonoridade, o embelezamento e a graça. É, decididamente, uma excelente língua para salões literários ou convívios de senhoras.
Continuamos ainda a pagar pesada factura da absoluta rendição de sucessivas gerações portuguesas às letras francesas. Um dos mais persistentes problemas da inautencidade e inutilidade da universidade portuguesa será uma das muitas sequelas dessa hegemonia que a cultura francesa deteve. Quem ouve hoje a música francesa, quem conhece os autores franceses vivos, quem vê cinema francês.
Encurralados num autismo lancinante, os francófilos esbracejam pateticamente num mundo dominado pelo inglês e pelo castelhano. Quanto ao alemão, transformou-se em língua incontornável para os estudos filosóficos e politológicos. Longe vai o "século de Sartre", muito mais longe ainda os séculos de Voltaire e Hugo.

(Mig ACBF)
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: ALEXANDRE HERCULANO, O ALEMÃO E O INGLÊS

Vasco Graça Moura recordou-me nas Lendas e Narrativas "as páginas em que o A. Herculano refere as características do inglês, do alemão (1 e 2) e do francês (3 e 4)..." "a propósito de uma viagem de barco, de Jersey a também não sei onde, tem uma página "notável" comparando as belezas do alemão com as perfídias do inglês..."

Aqui fica um pequeno fragmento de "De Jersey a Granville"


 


UMA OBSERVAÇÃO SOBRE A MEMÓRIA DAS BIBLIOTECAS

Ninguém, em tantos textos e memórias, se referiu à Biblioteca Nacional que parece não suscitar a nostalgia biográfica e afectiva de muitas outras bilbiotecas...
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (6ª série)

Ver o comentário de Desidério Murcho a estas "memórias", lembrado por Nuno Coelho.

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Curioso como nos esquecemos de algumas pequenas coisas que nos ajudaram a crescer. Aqui fica um pequeno relato da minha experiência como utente da Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian.

Uma visita por mês era o que a minha vila tinha direito. Para uma miúda da beira interior com uma enorme curiosidade e muita vontade de ler, a carrinha da Gulbenkian era a melhor coisa do mundo!

Às sete da noite lá estava ela, a carrinha Citroën, serie H, cinzenta, de chapa canelada, com taipais. Interessante como a memória funciona, lembro-me perfeitamente da primeira vez que lá fui com a minha mãe, devia ter cinco anos, também ela fora frequentadora assídua da carrinha da Gulbenkian, nos seus tempos de escola.

A carrinha era conduzida por dois senhores, que estacionavam sempre no mesmo sitio, junto ao restaurante 'O Julio', quando chegavam fosse Verão ou Inverno já a canalha se acotevala para ver quem ficava a frente na bicha (era bicha que se dizia!). Pois isso significava ser o primeiro a entrar e a descobrir quais eram os 'novos' livros. O ritual era igual todos os meses, a janela da porta direita abria-se e um dos senhores pedia-nos o cartão e os livros que requisitamos no mês passado. A carrinha no interior estava forrada a livros do chão ao tecto, ao fundo havia uma bancada para se preencher a referência dos livros requisitados no cartãozinho previamente fornecido pelo funcionário da Gulbenkian. Uma vez lá dentro era o ver se te havias, porque não tinha muito tempo para procurar os três livros (máximo possível), e depois havia o condutor/bibliotecário, que mais parecia o polícia das fitas adesivas! Uma das coisas que me irritava era que só podia levar livros com fita adesiva verde, e está claro os de cor laranja ou, pior ainda, vermelha, os das prateleiras de cima eram precisamente os que queria levar. Muitos foram os livros que li durante os 12 anos que religiosamente visitei a carrinha da Gulbenkian.
Recordo-me agora particularmente do livro 'Beatriz e o Plátano' de Ilse Losa.
Os meus pais incutiram-me o gosto pela leitura mas foi definitivamente a carrinha da Gulbenkian que ajudou a cultivá-lo. A carrinha não só abriu as portas para o mundo da leitura mas criou também em mim um sentido de responsabilidade, e civismo e orgulho, pois quando se entregavam os livros a tempo e horas e estimados, podia eventualmete aceder-se aos tão desejados livros 'laranja' e 'vermelhos'.

Mais tarde na minha vida de estudante visitei muitas bibliotecas; a Biblioteca Nacional com o seu hipnotisante painel de Tapeçaria de Portalegre de Guilherme Camarinha, a desactualizada Bibiloteca do Palácio das Galveias, no Campo Pequeno e a mãe de todas as bibliotecas para uma estudante de Arte em Lisboa, a Gulbenkian. Mas o cocktail de sentimentos causado pela carrinha da Gulbenkian, esse até hoje nunca foi superado.
É com nostalgia que do alto dos meus 28 anos penso neste serviço que ajudou a fazer de mim o que sou hoje. Grata ao Sr. Gulbenkian e a quem iniciou e pôs em prática este serviço.

(Sofia Gonçalves)

*

Tive o previlégio de nascer no seio de uma família onde os livros - e a leitura - eram centrais no nosso quotidiano familiar. O meu pai, funcionário publico, de poucas posses, tinha a paixão pelos livros e tudo fez para partilhar esse amor. Quer eu, quer o meu irmão, fomos brindados com livros, desde sempre.
A leitura tem sido sempre marcante na minha vida. Quase morri no preciso momento em que, aos cinco anos, descobri que sabia ler. Nesse dia, acordei com febre e fiquei na cama, com direito a que a minha mãe me lesse e contasse todas as histórias que eu já sabia de cor. Sempre que adoeciamos, era certo que, à hora de almoço, o pai trazia livros novos para nos ajudar a passar o tempo. Com esse entusiasmo, consegui soletrar o titulo de um livro... mas só me restou o tempo eminente para gritar «oh, mãe, eu leio...»! Fiquei roxa e perdi os sentidos. Diziam os meus pais que o médico, chamado à pressa, diagnosticou uma paragem cardíaca, levada pela febre e pela emoção.
Naquela época, lia-se tudo aquilo que nos aparecia à frente. Numa cidade de província, sem meios para partir para férias, o verão transformava-se no território de todos os perigos! No calor da noite, lia-se na cama até nascer o dia. Foi assim que desbravei a biblioteca do pai, sem grandes interdições. No entanto, o peso da época fazia com que eu e o meu irmão fossemos mestres a desenvolver estratégias de clandestinidade, na forma como escondíamos algumas leituras, um do outro e dos próprios pais. Foi assim que, pelos meus treze anos, guardei só para mim, a leitura secreta de «O Amante de Lady Chattterley» de DH Lawrence ou «A Romana» de Morávia.
Outro marco interessante deste percurso foi sem dúvida as caminhadas entusiasmantes para a Biblioteca do Museu Tavares Proença, em Castelo Branco. Lembro sobretudo as vezes que lá fui e que me via forçada a regressar acompanhada da minha mãe, para poder requisitar obras de Camilo ou de Eça. Embora já a frequentar os 3º ou 4º anos do liceu, a minha idade não permitia algumas aventuras.
Não posso ainda deixar de salientar a importância das livrarias, no tempo em que, também elas, tinham umas trazeiras recônditas onde se guardavam os livros proibidos, apenas disponíveis para clientes especiais. Em Castelo Branco, a Livraria do Sr. Feijão era um local de eleição. Devo a essas leituras o bom domínio da língua francesa, dado que muitos desses livros não se publicavam em Portugal.
E que dizer da galáxia de emoções que nos avassalam quando chega o momento de nos confrontarmos com a morte de uma biblioteca! Dois anos após a morte dos pais, tive de desfazer a casa e vi-me assim confrontada com a morte de um entidade única - a biblioteca dá casa de meus pais. Nela residia o designio de uma unicidade afectiva, que respirava um espaço e um tempo irrepetíveis. Uma biblioteca familiar é sempre uma caixa de surpresas e um esconderijo de outras memórias: anotações, papéis com citações, bilhetes de cinema, cartas de amor, postais de viagens, panfletos clandestinos, folhas secas, fotografias. Arrumados em caixotes, todos os livros vieram para a minha casa em Lisboa, onde talvez possam ganhar outra vida. Vive-se e morre-se nestas andanças! Nós somos o que fica das leituras sôfregas desse tempo... sem tempo!

(Júlia Matos Silva)

*

Existem bibliotecas marcantes para qualquer um de nós, no meu caso o mundo das letras abriu-se com a biblioteca municipal de Lagos e com as carrinhas itenerantes de marca – julgo – Citroen que passavam junto á minha casa, naquela que eu chamava a minha rua. A banda desenhada com que aí contactei era fabulosa, muito para além das edições Mirim brasileiras. À medida que o tempo passava fui perdendo os desenhos e conquistando as letras, a tal ponto que fiquei fascinado com a Filosofia. Foi assim que cheguei à Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, e aí á Biblioteca Universal João Paulo II. Esta, apesar de ser fruto, fundamentalmente, das necessidades bibliográficas que as faculdades que a compõem, e dos seus consequentes corpos docentes, faz jus à designação de Biblioteca Universal, especialmente nos domínios da Filosofia, da Teologia e do Direito. É sem dúvida um elemento preponderante para a escolha da instituição de ensino que se pretende frequentar, dadas as magníficas instalações e qualidade do seu conteúdo. É sem dúvida um exemplo que se afirma pela quantidade de investigadores, professores e alunos das mais variadas proveniências, exteriores à Católica, que a ela recorrem.

(Luis Loia)

*

Há referências muito fortes à "lembrança" nos posts dos seus leitores. Lembrança da infância e tentativa de recuperação de memórias idas. Como se hoje a azafama diária não permitisse a frequência de bibliotecas. O António Lobo Antunes agradeçe mesmo o tempo que os leitores lhe dedicam, depois de trabalho, transportes e lida da casa. Embora tal seja mais fazível na adolescência, quando as tardes são livres e se pode contar com os longos meses de férias de verão para se esperar e procurar, vejo que algumas bibliotecas estão repletas de gente aos fins-de-semana. É o caso da belíssima Biblioteca Almeida Garrett sita nos jardins do Palácio de Cristal no Porto. Casa de livros, revistas, filmes e CD's, as duas últimas classes ainda um pouco depauperadas, tem também uma excelente biblioteca para crianças, onde o barulho é permitido e o convívio entre adultos e crianças é estimulado.

Uma nota também para a biblioteca de arte do Museu de Serralves, onde nos perdemos, aprendemos e surpreendemos com livros e paisagem.

(PPM)
 


INTENDÊNCIA

Actualizada a nota O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: A LÍNGUA ALEMÃ E EDUARDO PRADO COELHO.

Actualizados os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.
 


GRANDES NOMES: "O POSSO [sic] INESGOTÁVEL DE PASPALHICES"

Ou seja, eu, segundo um sr. José Da Silva que enviou um comentário ao Correio da Manhã do seguinte teor:

"Este indivíduo excede-se em despautérios e inconsistência. O pior é q de quando em vez, lá temos q ouvi-lo. Qdo, por falta de protagonismo é repelido ao segundo plano, logo temos uma investida, mostrando q é um posso inesgotável de paspalhices. Fazia um grande bem a nação, se se quedasse pelo silêncio."

8.3.05
 


AR PURO


A. Dürer
 


INTENDÊNCIA

Actualizados os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO e inseridos na VERITAS FILIA TEMPORIS alguns textos da série A Lagartixa e o Jacaré, publicada na Sábado, sobre as eleições, o PP e o BE, a morte da Irmã Lúcia, e o comportamento dos jornais, entre outras coisas.

Entre hoje e amanhã publicarei uma nova série, a última, com novas Memórias de Biliotecas.
 


EARLY MORNING BLOGS 445


¡Cal as nubes no espazo sin límites
errantes voltexan!
Unhas son brancas,
outras son negras;
unhas, pombas sin fel me parecen,
despiden outras
luz de centela...

Sopran ventos contrarios na altura
i á desbandada,
van levándoas sin orden nin tino,
nin en sei pra onde,
nin sei por que causa.

Van levándoas, cal levan os anos
os nosos ensoños
i a nosa esperanza.

(Rosalia de Castro)

*

Bom dia!
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: A LÍNGUA ALEMÃ E EDUARDO PRADO COELHO

Eduardo Prado Coelho, no Clube dos Jornalistas, RTP2, dissertou sobre a língua alemã: língua marcial (sem a graça, a leveza, a elegância do Francês ou do Italiano), ao ouvi-la ouvem-se as botas e os tanques vêm atrás... Como é possível, meu Deus! (em momentos destes, quase nos tornamos crentes), como é possivel que alguém como ele diga tais coisas? Talvez ele não seja como ele... Os Alemães não escrevem cartas de amor? Como se pode pensar que uma língua humana (que, portanto, diz as coisas) não é capaz de exprimir a delicadeza? Que pensar então de Vogelweide, de Goethe, de Heine, Schiller, Lessing, Celan, Thomas Mann, Brecht, etc. Por que escolheu Schubert poemas de Goethe? E Grieg? E aqueles textos que têm a bota em passo-de-ganso, têm os Panzer, a brutalidade germânica, mas como realidades negadas?...

(Carlos David Botelho)

*
Não ouvi a dissertação de E.P.C. sobre a língua alemã mas li o comentário de Carlos Botelho e, a ser verdade, também eu me insurjo veementemente: como é possível alguém com as responsabilidades do dito professor fazer afirmação tão facciosa e esterotipada? Concordo plenamente com os argumentos aduzidos a favor da musicalidade do alemão e penso também que o achar uma língua "bonita" ou "feia" é uma questão de gosto pessoal. O som cantante do italiano, por exemplo, vem-lhe da profusão de vogais, própria das línguas românicas, em contraste com as germânicas, em que abundam as consoantes. Mas o que mais me impressiona é o que a afirmação de E.P.C. revela, o que parece estar subjacente à referència às "botas"e aos "tanques" citados por C.B. E sem querer cair num processo de intenção, veio-me à memória os comentários várias vezes feitos por alunos forçados por razões de currículo escolar a aprender alemão: "é a línguas dos nazis". Será que para E.P.C. o povo alemão ainda é o povo dos nazis?
(Maria Emília Malta)

*
Pode discordar-se do que diz Eduardo Prado Coelho e pode gostar-se imenso da língua alemão, utilizá-la em casa para as canções de embalar que se murmuram enquanto se deitam os bebés ; para dizer coisas dulcíssimas às namoradas, quando estamos deitados na relva dos Jerónimos, à frente do Tejo ; para agradecer com ternura, no final dos almoços de domingo que já não há, às nossas avós que nos prepararam o cozido tradicional ; para saudar, gentilmente, os nossos chefes (para não dizer líderes!), à chegada ao escritório, estremunhados ainda antes do café matinal ; ou simplesmente, como parece implicar Prado Coelho, para dar ordens naquela forma martelada a que nos habituaram os filmes sobre os oficiais alemães. Ou pode não se gostar nada dela, preferir-se a graça musical do italiano, a modularidade cartesiana do francês, a clareza sintética do inglês – e porque não a estranheza gutural do chinês e do japonês ; e já agora a leveza incompreensível do hindu. Pode até gostar-se do catalão ou do basco ; ou preferir-se um dos muitos dialectos que ainda se falam por essa Europa fora: o mirandês que desaparece, o «breton» que quase já desapareceu...

Agora, o que me parece é que estas críticas a Eduardo Prado Coelho, com o tom que têm (Eduardo é faccioso ; Eduardo é destemperado ; Eduardo é estereotipado ; talvez Eduardo não seja como Eduardo – embora eu não perceba bem o que se quer dizer com isto!) esquecem que, mal ou bem, ele tem o direito de não gostar do alemão (que digo eu? ele tem o direito de detestar o alemão) e de ver, por detrás das palavras de amor, as botas e os tanques, como outros têm o direito de ver nessa língua principalmente as palavras de Schiller ou de Rilke

Sempre que nos indignamos com o facto de outrem exprimir uma opinião – o que é diferente de nos indignarmos com as opiniões expressas – restringimos o nosso espaço de liberdade. É a «political correcteness» que desponta por detrás de bem pensantes opiniões.

Isto posto, também eu não concordo com a opinião de Eduardo Prado Coelho a propósito do alemão. Recomendo-lhe, quando à musicalidade, qualquer boa colectânea de «lieder» de Schubert: um qualquer disco com Dietrich-Fischer Dieskau a cantar deve ser suficiente. Mas isso é outro problema.
(José Pedro Pessoa e Costa)

7.3.05
 


BIBLIOFILIA: NÃO HÁ LIVROS PACÍFICOS

Este parece um normal livro sobre campismo, mas as actividades de “ar livre” foram fomentadas e popularizadas em Portugal pelos comunistas e pela oposição que lhe era próxima. Militantes como Joaquim Campino tiveram papel destacado na história associativa do campismo, e os acampamentos eram um local privilegiado para realizar encontros políticos clandestinos.

Este volume da célebre Biblioteca Cosmos, organizada por Bento de Jesus Caraça, é um exemplo dessa influência. Escrito por Mário Mendes de Moura, estudante de agronomia, depois engenheiro, militante do MUDJ, membro da sua Comissão Central, preso em 1948, posteriormente exilado na Venezuela e no Brasil, e actualmente editor, não escondia no seu prefácio a sua preocupação com os “trabalhadores”. O mesmo tipo de interesses era partilhado pelo ilustrador Daniel Morais, ele próprio também membro do MUDJ e preso na mesma altura de Mário Moura, cujas ilustrações “citam” a linguagem gráfica das publicações comunistas.

(Nota mais detalhada sobre o campismo e a oposição está nos ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.)
 


VASCO GRAÇA MOURA: EX-LIBRIS



(apresentação para um livro de depoimentos sobre livros que ainda não saiu e não sei se chegará a sair...)

Em 28 de Agosto de 1819, Keats escrevia a sua irmã Fanny, “dêem-me livros, fruta, vinho francês e bom tempo e uma musiquinha lá fora, tocada por alguém que eu não conheça”... Francamente, eu prefiro este princípio de prazer, ligado ao trato com os livros, a uma série de profundas considerações sobre a sua importância e utilidade, ou à especulação sobre o livro como símbolo onde se inscreve a imagem do mundo, que, da Bíblia a Jorge Luís Borges, passando por Ernst Robert Curtius, determina muita da nossa ontologia na matéria. Que têm a sua importância, sim, mas nós não temos de passar a vida a fazer congeminações simbólicas.
Dêem-me livros, ameixas pretas secas, um vinhito português (do Douro, claro!) e uma musiquinha. Não estou preocupado com o tempo que faz e na música há muitas opções aceitáveis para o meu hedonismo egoísta e concentrado quando pego num livro. Mas é bom que haja uma poltrona para quem lê se espolinhar devidamente. E, no Inverno, uma boa lareira. E, na cama, uma boa almofada e um bom candeeiro.

Há também outros prazeres, tácteis em certas encadernações e qualidades encorpadas das folhas e em certos livros, sobretudo antigos, impressos em papel de linho, cujas páginas parecem crepitar ao serem percorridas nos bordos do corte com um toque do polegar; visuais, ligados ao formato, ao aspecto, à tipografia, à mise-en-page, à ilustração; enfim, intelectuais ligados ao que se tem debaixo dos olhos, a esse pastar da vista, sôfrego ou tranquilo, envolvido ou reflexivo.
Porque não há receitas para pegar num livro ou para amar um livro. Há vícios bem-aventurados. Ler é um deles. Outro, afim, é o dos livros, enquanto livros, daqueles objectos paralelipipédicos que se encostam uns aos outros na estante e começam logo por dar o prazer de serem muitos e ordenáveis de muitas e desvairadas formas, o dos livros como matéria de forro do espaço doméstico, o dos livros que vemos em casa dos amigos, o dos livros como objectos que se encontram nos lugares de peregrinação que são as livrarias e as bibliotecas, o dos livros que se leram de uma assentada, o dos livros que se fecharam para serem retomados mais tarde, até o dos livros que se esqueceram, até o dos livros que são mostrados em revistas de livros ou de decoração, nestas, quando calha haver uma secção dedicada a bibliotecas, sem falar no dos livros que recomendamos e que oferecemos, no dos que lemos nos transportes públicos, e assim por diante.

Há mais um prazer, só possível para quem alguma vez foi editor, embora arremedável por quem adquira um livro para levar para casa: o do exercício do jus primae noctis, o da primeira noite que se passa deitado e deleitado com o primeiro exemplar de um livro acabado de chegar da tipografia...

Já uma vez escrevi, no boletim de informação bibliográfica da Oiro do Dia (e o texto também vai agora arquivado neste conjunto), sobre Aby Warburg, o erudito alemão, fundador da Iconologia como disciplina histórica e interpretativa, que, em finais do século XIX, sendo primogénito de uma família de banqueiros judeus, renunciou à primogenitura por contrato com os irmãos, que ficaram com a administração do banco e se obrigaram a comprar-lhe todos os livros que ele quisesse ao longo da vida. E às vezes, dou comigo a pensar porque é que o meu pai não foi banqueiro, para eu poder saciar a minha fome de livros e para os meus irmãos acabarem a perceber que afinal não teriam feito propriamente um negócio da China com tão volumoso prato de lentilhas... (Era de Warburg a "lei da boa vizinhança" - Gesetz der guten Nachbarkeit - que pode enunciar-se assim: o livro de que precisas não é aquele de que andas à procura, mas sim o que está ao lado dele na estante).

Não, ai de mim, a minha relação com os livros na perspectiva da aquisição deles não tem nada de “warburgiano”: começou ainda no tempo dos calções curtos, comigo a juntar moedas de vinte e cinco tostões da semanada para comprar este ou aquele volume que ia aparecendo no Jomar da Foz, ali à entrada da Rua da Senhora da Luz, a preços entre os dez e os quinze escudos. Antes, era a razoável biblioteca familiar, o ar pausadamente entretido da minha mãe a abrir as folhas de algum volume que chegava, o que ela gostava muito de fazer e eu detesto, e sobretudo o forte estímulo paterno, que me atraía para eles e que muitas vezes citava o Castilho: “há livros que, semelhantes a barquinhas milagrosas, vogando no oceano das ideias”... Nunca tive grande paciência para o Castilho, salvo nas análises sobre “estilo e preconceito” do Fernando Venâncio. Nunca encontrei (nem procurei) a página em que ele diz isso e que, se estou bem lembrado, começava enfaticamente: “A leitura, meus amigos, sabeis vós bem o que é a leitura?...”. Mas devo-lhe, através do meu pai, essa síntese metafórica do livro como barca milagrosa que me tem acompanhado e em que tenho vogado e vagado ao longo da vida. Eram também noites inteiras de leitura devoradora, por vezes clandestina, para que não se pensasse haver prejuízo no levantar cedo para ir para o colégio. Era o que não se percebia à primeira no que se lia, mas depois acabava por se perceber.

O grande problema da minha relação com os livros é o da vertigem de tudo o que nunca li. Não o de tudo o que nunca chegarei a ler, hélas!. Mas o daquilo que sei que ainda hei-de ler e continua a ser uma compulsão, talvez a verdadeira utopia dos amanhãs que cantam na palavra escrita dos livros.

Este volume recolhe textos de índole muito diversa, alguns de autêntica "poética do livro" (por exemplo, Albano Martins, Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Rebordão Navarro), outros mais preocupados com a sua importância para o desenvolvimento do ser humano e das sociedades (por exemplo, Álvaro Cunhal), outros pondo a tónica no testemunho autobiográfico de uma relação com o livro estruturada desde a infância e para toda a vida (por exemplo, Eugénio Lisboa, João Bigotte Chorão, Miguel Veiga, Maria Alzira Seixo), outros dando conta de deambulações, fascinações, vagabundagens e achamentos por alfarrabistas e livreiros, bibliotecas, catálogos e repertórios bibliográficos (por exemplo, Armando Castro, Cunha Freitas, Jacinto Baptista, Rúben de Carvalho, José-Augusto França). Em quase todos, a relação pessoal com o livro, não apenas intelectual, mas também táctil, visual, afectiva, doméstica, terna, poética e até irónica, emaranha-se, organizando um labirinto de percursos que acaba por reconduzir-nos ao arquétipo da biblioteca e um caleidoscópio de impressões que encontra homologia com um célebre filme de Chris Marker sobre Toute la mémoire du monde.
A este conjunto valeria a pena agregar, quanto mais não fosse para fins de contraposição, o soneto um tanto ou quanto pessimista que o venerável António Ferreira escrevia em 1557 e que veio depois a ser incluído por seu filho Miguel Ferreira, em 1598, como primeiro texto dos Poemas Lusitanos:

Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t'impece, a ninguém danas!

Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.

Ah! não te posso ter! deixa ir cumprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.

Dirás que a pesar meu foste fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.


Enfim, com tanta variedade de testemunhos como a que se encerra neste livro “sobre os livros”, creio que neles se abordam muitas coisas que eu deixo por abordar para evitar repetições ou até, aqui e ali, dessintonias. Com certeza que há, em muitas outras páginas, um semelhante comprimento de onda. É interessante e importante que os escritores falem sobre a sua relação com os livros que não escreveram, mas que em grande medida determinaram o que eles são. Porque nunca não há nada de verdadeiramente novo, a não ser nos livros que continuam a ler-nos por dentro.

Vasco Graça Moura
 


INTENDÊNCIA

Novas actualizações na nota OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA.

Actualizado os ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO.
 


OUVINDO "O BEIJO E OUTROS MOVIMENTOS"

e
Michael Nyman, The Kiss & Other Movements e as 11 Sonatas para Piano de Haydn por Brendel.
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (5ª série)


Anónimo do século XVII

Não era verdadeiramente uma biblioteca. Era uma parte de casa com ramificações para um sótão onde se amontoavam milhares de livros, revistas, recortes de jornais numa despreocupada desordem sempre justificada pela necessidade de os "ter à mão". A família, sobretudo a minha avó, referia-se aquele local labiríntico como a "ilha", num misto de desdém e de inquietação pelo pó e desarrumação que lá adivinhava. É que ninguém estava autorizado a lá entrar. A não ser eu, a neta mais velha, quando vinham as férias. Cedo tive consciência de que este privilégio para além de representar uma "deferência" especial para com a minha "pessoa" era um caminho, uma passagem, que me transportava para a um outro mundo de dimensões mágicas insuspeitas no resto da casa. Teria 5, 6 anos mas jamais esquecerei as longas horas de puro prazer a observar a intimidade e o infinito cuidado com que meu avô manuseava os livros, a maioria já muito gastos e amarelecidos, e a ouvir as maravilhosa histórias de fadas e duendes que povoaram a minha infância. Guardo com profunda emoção e saudade cada um desses momentos.

(GC)

*

Os livros e jornais estão nas minhas memórias mais antigas. Vivia numa aldeia da Beira Baixa (como se designava antes de nomenclaturas mais "a moda") e lembro-me de me deixarem brincar com uma encadernação de jornais franceses, provindos de um tio avô, com ilustrações, e de ter tido uma fixação deslumbrada e um pouco arrepiada do “Radeau de la Méduse” do Géricault, que retenho ainda hoje na memória, naquele desbotado preto e branco próprio de papel de jornal, e que me conduziu muitos anos mais tarde ao Louvre, para quase me deixar esmagar pela dramática jangada, em tamanho “plus que nature”…

O meu Pai era professor primário e teve desde sempre uma relação com a leitura, ao mesmo tempo profunda, séria e cheia de prazer. Naquele fim de mundo, usava um processo de se manter actualizado, de que vim a reconhecer a dimensão quando ficaram nas minhas mãos as suas infindáveis estantes: mantinha assinaturas de edições por fascículos, que julgo ser hoje um processo em desuso (adoptado e adaptado pela publicação de colecções dos jornais?). Mas lembro-me bem de chegarem regularmente no correio esses fascículos – o Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa de Artur Bívar (desafio qualquer pessoa a procurar uma palavra que lá não encontre…), A Volta ao Mundo do Ferreira de Castro, os da colecção Cosmos, tantos outros. Vim a encontrar um “atado” com fascículos não encadernados, ainda nos seus sobrescritos de correio, com o selo “caravela” de $10 (nem sei como designar este valor - um tostão?…) da edição da Enciclopédia Pedagógica Progredior , fundada pelo Professor Adolfo Lima e publicada pela Livraria Escolar Progredior, do Porto .

E desde antes da escola, os meus livros pessoais - a Alice no País das Maravilhas (que , naturalmente , não acompanhei nas suas deambulações, mas de que muito me seduziam as gravuras) os Contos de António Botto, e mais tarde os da Colecção Azul, e mais, mais tarde, tardes inteiras fechada a percorrer a Enciclopédia Luso Brasileira, até cansar, por caminhos em rede, de um para outro vocábulo, cheios de informação que não me convinha buscar em conversa. ..

E não resisto a trazer aqui também a magia da Biblioteca Nacional, na Rua Ivens, que comecei a frequentar ainda no liceu, para escolher peças de teatro do Camilo para a récita dos finalistas. E aí foi só o começo, porque todo o tempo da Faculdade (de Letras) para lá caminhei no eléctrico 28, mergulhando horas e horas. Mas o que eu queria evocar era aquela figura memorável, que me penitencio por não me lembrar do nome dele, que nos dava acesso às cotas dos livros. Estarei confusa? Mas a minha ideia é que nós não mexíamos nas fichas, manuscritas com aparo, numa ortografia elegantíssima, arrumadas numas caixas de madeira marcada pelo uso, com as fichas num estado vetusto, dobradas, vergadas pelo uso das décadas. Como se chamava esse senhor de cabelos brancos que, afinal, nem precisava de manusear as fichas, porque sabia as cotas todas de cor?

Bem podia desfiar ainda tantas memórias dos próprios livros, lugares das melhores viagens pela condição humana, pelos tempos, pelos lugares mais longe e até, também os de perto. Quem neste mundo pode responder com honestidade à pergunta sobre o livro da sua vida?

Maria José Martins


*

Obrigada por me ter dado a ver a sala de leitura da Biblioteca Municipal do Porto. Não a via há 45 anos. Foi praticamente lá que me fiz leitora. Era, então, estudante do Liceu Rainha Santa Isabel (na transição do velho palacete para o novo edifício). Ia de Ovar para o Porto, diariamente, e a Biblioteca era aminha sala de espera pela hora do comboio. Lembro o frio, mas também o sol que à tarde batia nas janelas (era desse lado que costumava ficar, mas também cheguei a estar na área reservada pelo grosso cordão vermelho - amabilidade do funcionário, quando as mesas do lado de cá estavam totalmente ocupadas). Aí li muito Garrett, muito Herculano, muito Camilo, todo o Júlio Dinis, muito Eça. Hoje sou professora de Português.

(N. Maria Graça)
 


EARLY MORNING BLOGS 444

Requiescat


Direi, pela noite, não ódio que tivesse
Nem detestar vida corpórea e ninhos de manha,
Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá
Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha.

Direi --- não "fora!" ao mundo que me cinge
(Outro onde o sei e como chegaria?),
Mas dos anos de ver, pensar durando
Retiro uma moeda de nada,
Fruto do meu suor, e pago o pão que se me deve,
Compro o silêncio que se me deve
Por ter cumprido a palavra,
Trabalhado nas palavras,
E por elas merecido a terra leve.


(Vitorino Nemésio)

*

Bom dia!

6.3.05
 


INTENDÊNCIA

Actualizada a nota OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA

Em breve serão feitas as colocações de novos textos da série A Lagartixa e o Jacaré no VERITAS FILIA TEMPORIS. Um dos textos, publicado há duas semanas, inclui este fragmento, que queria lembrar aqui à luz da ridícula história do retrato de Freitas do Amaral enviado pelo correio ao PS, verdadeira "garotice" como foi classificado e bem.

BLOCO DE ESQUERDA E PP

são partidos muito mais parecidos do que alguma vez queiram admitir. São miméticos no seu ódio recíproco, como só os pequenos partidos podem odiar-se entre si na sua couraça de radicalidade. Tem ambos dirigentes muito semelhantes: o que é que há de mais parecido a Portas do que Louça e vice-versa? Ambos moralistas, self-righteous até dizer chega, não conseguem abrir a boca sem nos dar uma lição do que se deve ou não deve fazer. Ambos politicamente correctos um na sua missa, outro no seu ocasional e admitido charro, um no seu fato, outro na sua camisa, ambos usando o que vestem como uma farda de serviço, uma extensão do seu manifesto político.
Nestas eleições o BE ganhou ao PP, subiu onde ele desceu, também porque Louça é mais genuíno do que Portas. Portas não consegue esconder a agressividade, que nele assume a forma de arrogância, da pose. Querendo ser inglês, mordaz e cínico, anarco-conservador como vem nos livros e no Spectator, falta-lhe o estofo e o saber, e acaba por ser ultra-montano e beato, e ávido de uma realpolitik no fundo paroquial e provinciana. Louça é o que é há muito tempo, tem muito treino, é um ideólogo frio e capaz, tem o mundo completamente encaixado, sem uma dúvida, auxiliado por uma maior cultura e cosmopolitismo. A sua arrogância, parecida com a de Portas, manifesta-se pelo verbo, mas é menos susceptível de soçobrar no ridículo, até porque protegida por uma comunicação social simpatizante.
Depois o Portugal de Louça cresce e o de Portas encolhe. Os jovens radicais urbanos bem nascidos hão-de sempre ser mais do lado do Bloco, porque o politicamente correcto é a ideologia do nosso ensino, e só uma pequena minoria, não muito diferente na origem social mas de famílias diferentes, engrossa os admiradores do PP. Quem podia fazer crescer o PP, os empresários e a “cultura da iniciativa” desconfiam do radicalismo de Portas e preferem outros, Sócrates neste caso.
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (4ª série)


Hercules Segers

Tive o privilégio de ter nascido e vivido, sempre rodeada de livros. Na minha família acreditava-se no poder e valor da leitura. Desde cedo me tornei uma leitora insaciável: quando visitava as casas de amigas, elas, antes de eu chegar, fechavam os seus livros à chave para que não me pudesse enfronhar neles e afastar-me das brincadeiras que se queriam generalizadas. Apesar de, numa primeira fase, a biblioteca dos meus pais não ser muito grande, a do meu avô – aberta à minha exploração – era interminável. Ou, pelo menos, assim me parecia. A ela recorria quando tinha de estudar, a ela recorri quando quis ler Stephan Zweig, Júlio Verne ou os franceses da viragem do século. Foi lá também que li os números do ABCzinho e descobri as aventuras do Cavaleiro Andante.

Chegada ao Liceu D. Felipa de Lencastre, descobri a biblioteca (tão pouco frequentada no início dos anos 70!) e Júlio Dinis, Eça de Queirós ou Wenceslau de Morais. Cheguei a estar horas sozinha sentada entre as estantes fechadas que uma funcionária abria para retirar os tesouros que ajudaram à minha formação, que acompanharam a minha fantasia e esquecer-me das horas de voltar para as aulas…

Fui para a faculdade e continuei a ler. Não surpreendentemente escolhi Línguas e Literaturas Modernas e, mais tarde, por imperativos de carreira, corri muitas e muitas bibliotecas, da Casa do Infante ao Arquivo Histórico da Educação, da Biblioteca Municipal do Porto (sim, também passei por lá!) às várias Bibliotecas Nacionais ou à biblioteca de Évora, Braga ou Lagos. O perigo que era ir para a biblioteca da Gulbenkian! Aquela janela, os sofás confortáveis, os livros fascinantes… Quem é que nos tirava dali? Bibliotecas tão diferentes entre si, mas todas elas homenagens ao gosto e ao prazer da leitura. Todas elas espaços de convívio com esse ser misterioso que é o livro antes de ser aberto.

Sinto-me bem entre livros. São companheiros, professores amigos. Gosto do seu cheiro quando são velhos, da textura do papel, do grafismo das capas. Como mãe, esforcei-me sempre para que as minhas filhas ganhassem o amor pela leitura, como professora tentei encorajar os meus alunos a lerem para lá do que os curricula obrigavam, como leitora continuo a ler e a procurar que mais gente o faça.

Nunca consegui deitar um livro fora: acho um crime. E agora, que os 15.000 volumes da minha primeira biblioteca, a biblioteca do meu avô, me vieram ter à mão, é com muito prazer e carinho que dou seguimento ao que foi a sua vontade: oferecê-la à Junta de Freguesia da terra onde morava. Para que mais gente possa ter o prazer de descobrir mais uma biblioteca. Para que, daqui a uns anos, num outro blog qualquer, haja gente que continua a escrever sobre o prazer que é entrar numa biblioteca para descobrir o que os livros têm para lhes dizer…

(MJA)

*

Há momentos únicos nas nossas vidas. Por isso, também eu gostaria de falar de uma biblioteca. A minha primeira biblioteca. Diferente. Sem claustros, lareiras ou jardins, mas com rodas. Igualmente digna, a minha primeira biblioteca. Chegava uma vez por mês, lá pelos finais de 60 e início dos 70.
Ainda hoje não consigo decifrar a magia que levava um significativo número de miúdos de uma aldeia dos arredores de Viseu, a percorrer cinco ou seis quilómetros, a pé, para ir trocar os livros que no mês anterior tinham requisitado. Sei apenas que, para muitos, essa foi a semente que fez nascer o gosto e o amor pelo livro e pela magia da leitura. É engraçado que muitos anos e muitas Bibliotecas depois, continuam claramente presentes na minha memória as pequenas estantes apinhadas de livros de aventuras e de mundos desconhecidos.A velha carrinha Citroën (acho que eram dessa marca) deve agora enferrujar no fundo de algum silvado. Fica, no entanto, um perene reconhecimento à Fundação Gulbenkian e ao saudoso David Mourão Ferreira por terem permitido a muitos miúdos olhar para dentro de um livro.

(D.S.)

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Os "apanhados" transcritos no seu Abrupto sobre o amor aos livros de tanta gente, comoveram-me até às lágrimas e fizeram-me pensar.
Da verdadeira dimensão da leitura e da humanidade jacente na história que nos contam, na ideia que transmitem, na possibilidade de parar para pensar, voltar atrás e reflectir.
Só nós e o livro.
Em todas as mensagens existia ternura e instrospecção e todas reflectiam uma paz interior dos seus autores dada, julgo que indiscutívelmente, pelo facto de serem...leitores interessados.

(MGC)

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Com onze anos morava em Vale de Santarém. Curso Comercial só em Lisboa para onde viajava de comboio diariamente.

Comecei pela Escola Eugénio dos Santos em Alvalade e, quando me mostraram a Biblioteca Municipal do Palácio Galveias, fui frequentador habitual durante dois anos. Voltei anos depois para confirmar que o fascínio do ambiente novo e a visão de estantes altíssimas cheias de mistérios, me marcou para sempre.

Por uma porta que lá um dia se entreabriu, consegui ver num relance, outras estantes em corredores obscuros onde, de umas prateleiras para as outras, os livros decerto conversavam entre si.

Frequentei depois a Escola Veiga Beirão no Carmo e, muito perto dali, na rua Ivens, tínhamos a Biblioteca Pública, agora extinta. Pedia para ler o que via pelas montras: Muito Júlio Verne misturado com O Crime do Padre Amaro; o Fel de José Duro e algumas biografias (de Edison, Napoleão, Toulouse-Lautrec...), entremeados com o Amor de Perdição e o Camões dos Sonetos. Aí bebi também as Prosas Bárbaras, e as Lendas e Narrativas bem como o Eurico.

Fui mesmo a tempo de ler na altura certa os clássicos juvenis: Mark Twain, Stevenson, Salgari, Dickens... Mas a verdadeira revelação foi para mim a Biblioteca Nacional, onde ela era e foi: no largo a seguir à rua Ivens logo antes da Victor Cordon: A sala de leitura vasta para os meus olhos, a frequência quase nula, e a toda a volta Enciclopédias e dicionários. Lá me perdi com a Larousse do sec. XIX e a do sec. XX, com a Britânica e o seu extraordinário volume de Atlas. E não me cansei a folhear a Universal (creio que era argentina). Lembro-me também de uma outra, alemã, uma obra em dezenas de volumes de uma grande perfeição tipográfica. Muitas das ilustrações, eram estampas em extra-texto, coladas pelo topo no espaço em branco reservado na página. Dava gosto procurar Lisboa e encontrar “Lissabon”, ou “Portugal” ... Pela primeira vez vi a sanha do vandalismo:
muitas dessas ilustrações, (fotografias, desenhos, reprodução de quadros...) tinham sido arrancadas, e muitas das páginas de suporte estavam danificadas.

Saíamos dali cientes de que o mundo era vasto e que era preciso aprender italiano, alemão ou geometria. No entanto, o mais extraordinário era o enorme móvel de ficheiros ao fundo da sala onde centenas (?) de gavetas mostravam nas fichas, os títulos com algarismos elevados (p.ex. xxxxxxxx
xxx12 ), o que queria dizer que aquele titulo se encontrava em 12º lugar no identificado volume Miscelânea. Os volumes de Miscelâneas eram (são) encadernações de materiais heterogéneos: Buscando um título encontrávamos os mais incríveis assuntos: a separata de uma revista, o catálogo de uma exposição, um discurso, um estudo de criptografia, uma tese...

Desde então, nas bibliotecas desencanto minutos para encontrar o inesperado e apreciar a surpresa possível.

(M.Neves Mendes)

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Recordo as carrinhas da Fundação, que só eram cinzentas na cor, que nos apareciam de vez em quando junto à Escola Primária ou no Parque junto ao rio, em Vila Praia de Âncora. E aí havia "festa na aldeia". Sonhava, não sei se de sonho sonhado ou acordado, que entrava nessas cabanas de quatro rodas e levava todos os livros para casa...Hergé, Conan Doyle, Verne como dieta inicial. Ainda hoje dou comigo, quase com inconsciência, encostado às montras das livrarias a contar aqueles que levaria para o aconchego do lar. Definitivamente, os sonhos podem levar ao crime.

(António Filipe Meira)

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Memórias de Bibliotecas / Memórias de uma menina bem-comportada...

Muito acertadinha, subia duas vezes por semana a rua onde vivia para ir ter aulas particulares de piano no Colégio da Paz, perto do Marquês, no Porto. Naquele tempo, e não foi há tanto assim, ia sozinha, aprendendo a saborear aqueles quinze minutos de independência valiosíssimos para os meus sete ou oito anos de idade. Não me lembro de sentir perigo algum, nem de haver muito trânsito nas ruas, nem de transeuntes ameaçadores, nem mesmo que chovesse ou fizesse muito frio (algo de muito improvável no Porto, o que prova quão selectiva é a nossa memória...): eu lá ia depois do almoço, com a pasta das pautas debaixo do braço. Sentia-me abrigada entre dois portos seguros, o de minha casa e o da pesada porta do Colégio da Paz, que se abria para um convidativo e amplo átrio interior. Acabada a meia hora de aula de piano, havia sempre um sorriso benévolo e meigo de despedida no rosto da freirinha que estivesse à porta. E eu gostava desse ritual, do caminho de ida e volta que se me afigurava longo e interessante. Foi assim que me fui habituando a observar o semblante dos rostos das pessoas por quem passava, a pisar as folhas castanhas e caídas trazidas pelo vento de Outono, a tentar responder por mim às perguntas que iam surgindo a cada nova descoberta. Mas a melhor descoberta de todas foi feita num dia de desacerto de rotina, quando (já não sei por que razão), ao sair do Colégio, virei à esquerda em vez de virar à direita, como era costume, e dei por mim a atravessar o Jardim do Marquês para ir conhecer a pequena biblioteca que lá existia. Lembro-me do edifício, pequeno, claro e envidraçado. Lembro-me de haver mesas e bancos cá fora onde velhos jogavam às cartas e ao dominó. Lembro-me das folhas caídas no chão de Outono, que eu pisava num ritmo de dança só meu e que, ainda hoje, volvidos trinta anos, continuo a ensaiar cada vez que sinto folhas secas debaixo dos pés. Lembro-me, sobretudo, dos livros. Não deviam ser muitos, pois tratava-se de uma pequena biblioteca. Mas um local com livros sempre exerceu em mim um sortilégio especial. E aquele ficava num jardim lindíssimo, com altas e frondosas árvores. Para uma menina que crescia numa cidade, havia algo de mágico naquela casinha rodeada de árvores e arbustos. Nessa primeira tarde, não entrei. Cautelosa como sempre fui, limitei-me a observar de longe. Dois dias depois, voltei. Dessa vez, não consegui conter a minha curiosidade. Entrei, olhei em volta e não consegui resistir. Já não me lembro se algum funcionário que lá estivesse falou comigo, ou se eu me dirigi a alguém. Sei, sim, que foi ali que, a partir daquele momento, li muitos "livros aos quadradinhos", como eu lhes chamava. Como era bom poder rir com as aventuras de Tintim e as façanhas do Astérix depois de exercícios de escalas, solfejo e pequenas peças para piano orientadas por uma professora competente, porém um pouco austera. Se alguma vez cheguei a casa mais tarde do que a hora prevista, nunca ninguém fez qualquer reparo. Não por desleixo, decerto. A minha conduta bem-comportada havia-me granjeado alguma liberdade...

Estudei piano durante doze anos. Aquela foi a minha rotina durante todo esse tempo, pautada pelas inevitáveis mudanças: o caminho a pé feito a pensar nos meus dilemas de adolescente, a descoberta de uma Barcarola de Mendelssohn ou a euforia sentida por conseguir tocar uma valsa de Chopin. Nessa altura, já a biblioteca do Marquês fazia parte da minha memória de infância, a paixão pelos livros e pela Literatura estava bem enraizada em mim... Às vezes, ia até ao jardim para ter a certeza que a biblioteca ali permanecia, com as árvores e os velhos à sua volta. Parecia querer fotografar aquela imagem na minha memória...

Hoje, sei que quando voltar ao Marquês, não mais verei o que se mantém gravado na minha memória. Tenho evitado passar por lá. Quando o fizer, será provavelmente de metro, e, provavelmente, estarei a ler um livro ou a folhear um jornal. Ou, se me lembrar, procurarei ler o poema que estiver escrito no interior da carruagem. Pode ser que seja sobre música ou árvores, ou folhas de Outono. Se assim for, esboçarei um sorriso...

(Marta Correia)

5.3.05
 


A CAMINHO

"A boca de um vulcão. Sim, boca; e língua de lava. Um corpo, um monstruoso corpo com vida, macho e fêmea ao mesmo tempo. expele, ejecta. É também um interior, um abismo. Uma coisa viva, que pode morrer. Algo inerte que de vez em quando se agita. Que apenas existe de modo intermitente. Uma ameaça permanente. Ainda que previsível, geralmente imprevista. Caprichosa, insubmissa, malcheirosa. (...).
Claro que o podemos ver como um grande fogo-de-artifício. É tudo uma questão de meios. Vê-lo de bastante longe. Há belezas que são para admirar apenas de longe, diz o dr. Johnson; não há espectáculo mais grandioso qaue o das chamas. A prudente distância, é o espectáculo supremo, tão instrutivo quanto emocionante. Depois de um repasto na villa de Sir***, vamos para o terraço, armados de telescópios, para observar. Um penacho de fumo branco, o ressoar tantas vezes comparado ao rolar distante dos timbales: abertura. E começa então o colossal espectáculo, o penacho inflama-se, intumesce, eleva-se, uma árvore de cinza que sobe cada vez mais alto até se achatar sob o peso da estratosfera (com alguma sorte veremos como que sulcos de esqui laranja e rubros correr pela encosta abaixo) - horas, dias disto. Depois, calando, acalma. Mas de perto, o medo convulsiona as tripas. Este ruído, um ruído abafado, é uma coisa que nunca poderíamos imaginar, impossível de conceber. Um contínuo fluir de um som áspero, de um estrondear titânico que parece estar sempre a aumentar de volume e no entanto é impossível ser mais ruidoso do que já é; um vómito fragoroso e ensurdecedor que enche o espaço, que nos deixa sem pinga de sangue e nos revira a alma. Mesmo os que se consideram apenas espectadores não conseguem furtar-se à investida de aversão e terror, nunca antes experimentado. Numa aldeia no sopé da montanha - poderemos aventurar-nos até lá -, o que de longe parecia um caudal torrencial revela-se a massa rastejante de escórias viscosas pretas e vermelhas, paredes tenteantes que se sustêm ainda um momento para logo cederem trementes aspiradas com um plop pela frente dessa lama palpitante; forçando, aspirando, devorando, deslassando os átomos das casas, dos carros, vagões, árvores, umas a seguir às outras. É então isto o inexorável.
"

Susan Sontag, O Amante do Vulcão, Lisboa, Quetzal Editores, 1998.
 


OUVINDO LUIGI NONO / GRANDE NOMES : LA LONTANANZA NOSTALGICA UTOPICA FUTURA


La lontananza nostalgica utopica futura, Madrigale per più “caminantes” con Gidon Kremer.

*
Grandes nomes/títulos e grandes obras musicais. O último ciclo de obras de Nono foram motivados por uma inscrição visto pelo compositor numa parede de Toledo, "Caminantes, no hay caminos, hay que caminar", na qual surpreendentemente o compositor não reconheceu o conhecido mote de Antonio Machado, poeta que todavia já tinha abordado em música. O título completo da primeira desta obra é "La lontaneza utopica futura, Madrigale per piú 'caminantes'" e do ciclo fazem parte ainda "Caminantes...Ayacucho" e "No hay caminos hay que caminar ... Andrei Tarkovski", derradeira obra de Nono. Se nestas obras o compositor retomou a errância do Wanderer de Nieztche, toda a sua fase final da sua obra, de alguém que foi também o autor mais politicamente comprometido da geração da "vanguarda" e membro do Comité Central do PC Italiano, sempre muito crítico do sistema soviético, toda essa final é atravessada pelo horizonte do silêncio mas também, creio, por um diálogo com o Anjo da História de Benjamin; daí também "La lontananza nostalgica utopica futura". Outros grandes títulos são "À Pierre, del azurro silenzio, inquietum", dedicado a Pierre Boulez, e o mais importante de todos, a obra crucial da última poética de Nono, "Prometeo, la tragedia dell'ascolto".

(Augusto M. Seabra)

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Há falhas no texto de Augusto M. Seabra que publicou:

1) O título completo da obra é la lontananza nostalgica utopica futura, madrigale per piú caminantes con Gidon Kremer. Ou seja, lontananza e não lontaneza, e falta a A.M.S. as palavras nostalgica e ainda con Gidon Kremer
2) No conjunto de obras mencionadas por A.M.S., falta «Hay que caminar» soñando, para dois violinos, 55ª obra do catálogo do Nono, composta em 1989
3) essa sim, a última obra terminada por Nono, e não No hay caminos, hay que caminar (obra de 1987 e 52ª do catálogo), como afirmou A.M.S.

De um ponto de vista meramente pessoal, permita-me que lhe recomende ...sofferte onde serene... (36ª obra, piano e banda magnética, 1974-1976) bem como Quando stanno morendo, diario polacco nº 2 (41ª obra, 1982).

Permita-me ainda que lhe recomende algo para engordar a sua bibliofilia: Luigi Nono - Écrits, Christian Bourgois Editeur (livro no qual poderá fazer um fact check das correcções que apontei)
(César de Oliveira)
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (3ª série)


Arcimboldo

Nasci e cresci numa casa de cujo jardim se avistavam as palmeiras do jardim traseiro da Biblioteca [Pública Municipal do Porto]. A casa lá permanece (a minha mãe ainda lá vive) mas a maior parte das árvores imponentes já não existe, o jardim foi destruído há já alguns anos sob um pretexto qualquer. Também frequentei com muita assiduidade a sala de leitura e lembro-me bem do professor Cruz Malpique lá sentado, rodeado de livros e de fichas. Embora nunca tivesse sido sua aluna, também o conhecia bem do Alexandre Herculano, onde era uma das vinte ou trinta "meninas" destinadas às Letras e ao Direito, que por lá passaram no fim dos anos cinquenta por falta de espaço nos liceus femininos.
Cedo adquiri o hábito de ir para lá estudar ou requisitar livros para leitura domiciliária, pois o hábito manteve-se depois do fim do liceu, quando já era estudante em Coimbra.

Os claustros que era preciso contornar, ventosos e gelados no Inverno e frescos no Verão, onde se esquecia o barulho da rua e só se ouvia o arrulhar dos pombos, antes de se ganhar o acesso por uma escada de pedra de degraus muito gastos. A sala de leitura, como é retratada na fotografia enviada , era à direita, ao cimo das escadas, à esquerda ficava o mistério dos arquivos, onde os funcionários por vezes se deslocavam à procura dos livros.

(Maria Emília Malta)

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Como tive a sorte de nascer numa casa cheia de livros - os meus pais derretiam as poupanças de empregados de escritório nos alfarrabistas -, só no então Liceu Normal de Pedro Nunes tive oportunidade de viver a aventura de explorar uma biblioteca bem organizada.
E tive outra sorte, quando isto aconteceu, que foi a de a referida biblioteca ser dirigida pelo prof. Rómulo de Carvalho, que nos fazia o favor de ser na sua outra vida, como sabe, o António Gedeão. Muito antipático, nas aulas, nos intervalos, na direcção de ciclo e nos cruzamentos com alunos no Jardim da Estrela, perfeitamente integrado na disciplina vigente do come e cala, magister dixit, o poeta-profe era outro, dentro da biblioteca do Pedro Nunes, mesmo que mantivesse vestida a ameaçadora bata branca das fisico-químicas: afável, solícito, quase amigo. Deixava as preocupações do regime a cargo da sinistra D. Teresa, a contínua-vigilante, e mergulhava nos livros.
Ao longo dos três anos em que contactámos, orientou as minhas leituras com esperteza e sensibilidade, apresentou-me a ficção científica, que substituiu os Cinco e o Verne, e até "discutiu" comigo O Mundo dos Outros do José Gomes Ferreira, que foi meu livro de cabeceira num ano qualquer da adolescência.
Dentro da biblioteca, só regressou à sua concha de professor metodólogo do sistema educativo da ditadura em duas ocasiões: uma, quando eu, espertinho, tentei requisitar a Dolicocéfala Loira de Pitigrilli, que os meus pais, em casa, tinham retirado da circulação ("Tenha juízo e ponha-se lá fora"); outra, quando Manuel Freire cantou no Zip Zip a "Pedra Filosofal" e eu, pretendendo criar uma ponte, outra vez espertinho, fui requisitar a Poesia Completa do sôtor Gedeão, mesmo tendo o livro à disposição em casa ("Se pretende bajular-me, olhe que eu sou pouco permeável a graxa").
O resto é só boas recordações.

(ACS)

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Foto de Margarida Monteiro tirada no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, "que visitei em 2003".

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Em minha casa tenho a biblioteca dividida em três áreas: ficção, não ficção e banda desenhada. Estão todas razoavelmente organizadas, com as duas primeiras ordenadas por autor. A de banda desenhada é diferente, porque mais complicada de estruturar: optei por ‘personagens’, ‘colecções’ e ‘autores’.
A minha paixão por esta área começou porque me tentaram proibir de ler “quadradinhos”. Pelo lado da minha mãe, sou filho e neto de professores primários, daqueles que, normalmente, se rotulam de “clássicos”. Para o meu avô, a BD era vista como “fonte do mal” porque não estimulava o leitor no desenvolvimento da escrita, nomeadamente no que às descrições dizia respeito. Paradoxalmente, comecei a ler BD por influência dele. É que, para entreter a minha mãe, o meu avô recortava as diversas histórias publicadas no lendário suplemento juvenil dominical do Primeiro de Janeiro, e compilava-as em “livro”. Pouco depois, descobri que uns vizinhos tinham a colecção completa da revista ‘Tintin’, devidamente encadernada. Esse Verão, o de 1978, foi fantástico...
O primeiro álbum que adquiri foi do Michel Vaillant, “Os Cavaleiros de Koenigsfeld”, de Jean Graton. Comprei-o numa livraria, cheia de pó, que existia mesmo ao lado da entrada do cinema Trindade, no Porto, onde o meu pai comprava os livros jurídicos que hoje tenho no meu escritório. A partir daí nunca mais parei. Tenho milhares de livros de BD, de todas as proveniências, cobrindo todas as "escolas" e tendências, mas, como não há amor como o primeiro, continuo fiel à área franco-belga.
Hoje, claro, debato-me com a inevitável falta de espaço. Mas já vislumbro a solução. Tenho um tio, professor na Universidade do Minho, que fez uma coisa fantástica: debatendo-se com falta de espaço, comprou um apartamento. Mandou retirar a cozinha pré-instalada e apenas colocou luz, uma mesa, uma cadeira e desumidificadores. As paredes, essas, estão completamente forradas de livros. Tem 70 anos e, eu, metade. Estou certo que chegarei ao "Paraíso" mais depressa do que ele.


(Pedro Brás Marques)


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(...) não resisto a falar-lhe de uma biblioteca que, não sendo particularmente rica, preencheu, no entanto, muitas tardes e muitos invernos da minha juventude. Refiro-me à Biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Situada em pleno parque, num jardim magnífico, verde e húmido, que eu era obrigado a atravessar de cada vez que lá ia. Logo no percurso me cruzava com os patos e as aves residentes que por ali deambulavam e chilreavam indiferentes à minha passagem, sentindo o cheiro dos pinheiros e de alguns eucaliptos.
Conheci-a por recomendação de um dos meus professores, quando em determinada altura necessitei de realizar um pequeno trabalho- Rapidamente me tornei seu leitor assíduo.
Era uma casinha pequena, um anexo do palácio, com uma sala aconchegante, com duas mesas, havendo quatro lugares em cada uma delas e mais dois pequenos sofás junto a uma lareira onde durante todo o Inverno o fogo crepitava. O pessoal era extremamente atencioso e logo à segunda ou terceira visita, assim que me tornei familiar, deixou-me à vontade. Passei então a circular livremente pelo meio das estantes, a sentir o cheiro do papel velho misturado com o dos pinheiros e da humidade, agarrando em todos os livros e mais alguns, devorando uns a seguir aos outros. De Eça a Camilo, de Baudelaire a Balzac, de Maupassant a Malraux, tudo me interessava. Ao fim do dia requisitava dois ou três livros para levar para casa, livros que religiosamente devolvia dois ou três dias depois. Cada um desses livros tinha uma ficha na contracapa onde a funcionária de serviço anotava o dia em que o livro era entregue e a data prevista para a devolução. Ali passei muitas tardes de Inverno (eu tinha aulas de manhã) e muitos dias de Verão quando o calor apertava e a praia se tornava insuportável devido aos magotes de gente que a enchiam. Nesse tempo só podia ir ao Guincho, a minha praia de eleição, quando alguém me dava boleia. Não tinha idade para ter carta de condução, não tinha carro nem mota e detestava ir sozinho no autocarro que saía da estação de Cascais. A biblioteca foi muitas vezes o refúgio das minha paixões juvenis quando eu, desesperado, procurava nos livros as respostas que não encontrava nas minhas amadas. A liberdade e o conforto que gozava dentro daquela bilbioteca e a inexistência de qualquer burocracia na requisição dos livros faziam daquele espaço um oásis.
Aquilo que eu ali não tinha - burocracia - passei a ter quando entrei para a Faculdade e comecei a frequentar outras bibliotecas. As idas à Biblioteca Nacional, à Gulbenkian ou mesmo à biblioteca da minha faculdade tornavam-se um suplício. Não sei porquê mas tinha a sensação de que chegava sempre na hora de fechar tal a desconfiança com que me olhavam. O cerimonial do preenchimento da requisição, a distância entre mim e os funcionários, a necessidade da exibição do bilhete de identidade, do cartão de estudante, o tempo de espera até que o livro chegasse, sentado no meu lugar, olhando o tempo a passar enquanto o livro não chegava, vagaroso, no carrinho da distribuição. O que mais me aborrecia então era ter de me limitar a procurar os livros, que eu muitas vezes nem sabia que existiam, nas fichas, sem poder manuseá-los antes de os requisitar. E quantas vezes, no fim, chegava a desilusão. Não era nada daquilo que eu queria. O título não tinha correspondência com o texto, a ficha estava mal preenchida, o autor era afinal o editor. Uma tristeza. Tanto tempo a preencher a requisição e à espera do livro para passados cinco minutos já estar a devolvê-lo e a preencher nova requisição, logo seguida de nova espera.
Talvez tenha sido tudo isso que mais tarde me fez detestar Lisboa. Sentia tudo aquilo muito distante, demasiado rígido para o meu gosto. Para quem se tinha habituado a frequentar a Biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, com todas as suas limitações, era muito difícil aceitar as regras das outras bilbiotecas. Ainda fui algumas vezes a uma biblioteca municipal, creio eu, ali para os lados do Campo Pequeno, mas já não havia nada a fazer.
Algumas anos volvidos voltei a encontrar duas bibliotecas muito agradáveis, já não em Portugal, mas em Macau. A velhinha bilbioteca do Leal Senado de Macau e a pequena bilbioteca chinesa, junto ao Clube Militar. Mas o tempo já era outro, eu já não era o mesmo e os meus interesses também tinham mudado.
Durante o meu mestrado frequentei com indiscritível prazer as bibliotecas do ICS e do ISCTE. Só que mudando as preocupações e os interesses também mudam os livros. De todas elas guardo boas recordações, pese embora o barulho da última, mas até hoje nunca encontrei outra biblioteca como a do Museu dos Condes de Castro Guimarães. Não sei como ela está nos dias que correm, mas espero que continuem a cuidar dela, com o mesmo pessoal atento e simpático que me transportou para uma outra dimensão do prazer da leitura e do convívio com os livros. Foi um tempo doce e sereno o que passei nessa bilbioteca, tempo que hoje recordo com uma imensa saudade.

(Sérgio de Almeida Correia)
 


EARLY MORNING BLOGS 443


Hopper

Filling Station


Oh, but it is dirty!
--this little filling station,
oil-soaked, oil-permeated
to a disturbing, over-all
black translucency.
Be careful with that match!

Father wears a dirty,
oil-soaked monkey suit
that cuts him under the arms,
and several quick and saucy
and greasy sons assist him
(it's a family filling station),
all quite thoroughly dirty.

Do they live in the station?
It has a cement porch
behind the pumps, and on it
a set of crushed and grease-
impregnated wickerwork;
on the wicker sofa
a dirty dog, quite comfy.

Some comic books provide
the only note of color--
of certain color. They lie
upon a big dim doily
draping a taboret
(part of the set), beside
a big hirsute begonia.

Why the extraneous plant?
Why the taboret?
Why, oh why, the doily?
(Embroidered in daisy stitch
with marguerites, I think,
and heavy with gray crochet.)

Somebody embroidered the doily.
Somebody waters the plant,
or oils it, maybe. Somebody
arranges the rows of cans
so that they softly say:
ESSO--SO--SO--SO

to high-strung automobiles.
Somebody loves us all.


(Elizabeth Bishop)

*

Bom dia!

4.3.05
 


BIBLIOFILIA: TEMPOS DUROS, BOAS CAPAS



Pois é. O grafismo dos anos trinta era vigoroso e ainda pareceria mais forte se o comparássemos com as capas das décadas anteriores. Isto era verdade para publicações nacionalistas e fascistas como estas, mas também para as comunistas que, como eram clandestinas, são menos conhecidas e tinham menos meios ao seu dispor. Entre as coisas que são a outra (ou a mesma face?) das matanças espanholas, que apareciam na última “bibliofilia”, está esta vitalidade da arte em momentos duros. E, registe-se, sem lado.

A arte, a bem dizer, vende-se barato.
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (2ª série)



E. Ruscha

Tenho gravado na memória o registo de um ambiente muito português, mas pouco conhecido pelos que nasceram em Portugal. Trata-se do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro . Lembro de ter passado muitas manhãs neste ambiente fantástico, feito exclusivamente para privilegiar a leitura, pensado ao pormenor para oferecer conforto aos leitores. Principalmente quanto a utilidade e beleza impar de seu imenso tecto de vidro, que confere ao ambiente uma luminosidade indescritível nos ensolarados dias tropicais do RJ.

O acervo, segundo anunciam, é o maior de autores portugueses fora de Portugal. Foi ali que conheci Eça de Queirós, Gil Vicente, Jaime Cortesão, António Sérgio, Damião Peres e, até mesmo, Vitorino Magalhães Godinho.

Eu fazia, à noite, o curso de História na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e durante os meus dias, me dedicava à leitura. Quase sempre na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mas muitas vezes no adorável Real Gabinete Português de Leitura.

(Edgard Costa)

*

Fico impressionada com a quantidade de pessoas que lhe escrevem a contar as suas histórias e a relação estreita que tem com os livros. Surge muitas vezes referência às bibliotecas itenerantes da Gulbenkian. Havia uma em Mogadouro que a minha mãe frequentava e que eu ainda cheguei a ver. Quando era criança passava às vezes por uma outra, já residente e também da Gulbenkian, onde o meu tio J. ainda é bibliotecário. Foi lá que descobri os livros do elefante Babar. Mais tarde, numa biblioteca onde haveria de descobrir outros mundos, a do Instituto Britânico no Porto, devorei revistas de cinema e enciclopédias de arte. Encontrei lá Kazuo Ishiguro e William Golding.

Devo em grande parte à minha mãe esse prazer da leitura que trago hoje comigo e que espero passar adiante. Devo-o também a alguns amigos. Mais que da leitura, o prazer dos livros. Um dos presentes que mais gozo me deu receber foi a biblioteca que herdei do meu tio D. Modesta, acompanhou-o numa vida celibatária passada entre uma África imensa e uma Trás-os-Montes fechada. Descobri lá Salgari e a Agatha Christie. A leitura de tantos livros policiais na adolescência devo-lha a ele. Ficou-me talvez o fascínio pelo chá desses ambientes interiores do countryside inglês. E também das estórias dos colégios ingleses da Enid Blyton, onde os pic nics a meio da noite e as escapadelas à disciplina austera eram frequentes. A relação mais afectuosa com os livros da infância e da adolescência.

(PPM)

*

Sinto um misto de saudade e carinho muito especiais, sempre que passo em frente ao edifício da Câmara de Leiria – belo exemplar da vasta obra do ilustre Arq. "naturalizado” Leiriense Ernesto Korrodi - e recordo aquela sala do 1º andar que albergava no início dos anos setenta a velha biblioteca Afonso Lopes Vieira. Era pequena e escura, com estantes em madeira de mogno atafulhadas de livros, revistas, enciclopédias e manuscritos. Havia ainda alguns bancos também em madeira, 3 ou 4 secretárias para estudo individual e um candeeiro de luz amarela que, naquelas noites invernosas ou tardes de canícula , me proporcionavam um conforto acolhedor e um ambiente de grande recolhimento, propício ao estudo e reflexão.

Mas o que retenho ainda mais agudamente na memória é a figura da funcionária da biblioteca, uma senhora à beira da reforma que nunca mais vi nem nome não recordo, sempre solícita, de bom trato e que me ajudou também na gramática e nas traduções do Alemão. A Senhora tinha na sua juventude aprendido a língua teutónica e ficava entusiasmada sempre que lhe falava em alemão ou lhe solicitava ajuda! Reconheci depois que algum desse entusiasmo me foi transmitido e incentivou as minhas leituras. Até hoje!

(Manuel Oliveira)

*

Na inauguração da nova Biblioteca Municipal de Odemira (baptizada de "José Saramago"...), disse o vereador da cultura:
"Todo este espaço sucede na sua função cultural, à velha mas tão querida Biblioteca da Gulbenkian, a quem, nunca será demais agradecer o trabalho desenvolvido tantos e tantos anos no país e também em Odemira, bem como a doação total do acervo com cerca de sete mil exemplares à Biblioteca Municipal."

No site da Câmara Municipal de Odemira, faz-se a apresentação da Biblioteca Municipal e da importância da Fundação Gulbenkian. Curiosamente, também o presidente da CMO, autor do texto, cita logo à cabeça, o Emílio Salgari:
"Eram as carrinhas-biblioteca da Gulbenkian que à sexta à tarde chegavam, enquanto a malta de olhos esbugalhados e não sem alguns empurrões à mistura para assegurar um melhor lugar, ficava na bicha. À espera…Eram os Cinco, as aventuras de Emílio Salgari, de Júlio Verne, eram Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis…Poucos e sempre os mesmos, os livros eram disputados ao palmo. A sua "raridade"
levava a que frequentemente houvesse lugar a segunda ou terceira leitura. Inacreditavelmente havia sempre algo de novo…Depois foi a biblioteca fixa em Odemira. Pequenina, escura e desconfortável, mas extraordinariamente rica de conteúdo, de cumplicidades, de amizades e de sonhos. Depois, um pouco a nossa utopia. "
A nova Biblioteca mantém um serviço de "Bibliomóvel ", um veículo que transporta uma biblioteca pelas freguesias do interior do maior concelho do país.

(Luis Silva)

*

Na nossa família, as bibliotecas vão passando de pais para filhos… Mas com o incurtar das casas, as coisas vão-se tornando difíceis. Lembro-me de casa dos meus avós onde havia armários repletos de livros: os de exposição na sala, eram os permitidos por quem mandava nessas coisas (havia mesmo o Índex, onde estava determinados os autores que podiam ou não ser lidos): livros para toda a família, adolescentes, senhoras. Por exemplo, livros de autores franceses, alguns até galardoados mas com prémios talvez um pouco duvidosos, pois os conteúdos… E nas salas menos expostas estavam os livros mais “intelectuais” onde era preciso pedir licença para serem lidos – principalmente sendo eu uma miúda, pois nem tudo era lisível.

A minha mãe, senhora considerada intelectual para a altura pois até tinha um curso superior, era uma amante de livros e toda a vida gastou, desde que começou a ganhar dinheiro, o que podia em livros. Havia primeiras edições de Vergílio Ferreira, Mário Dionísio, Vitorino Nemésio, e livros proscritos como os de Eça, Zola, André Malraux, Mário de Sá Carneiro, etc. A cultura era mais franco-portuguesa, era houvessem livros de escritores ingleses, Hemingway, Huxley, Maugham, Shaw.

Do meu pai herdei o gosto pelos livros de aventuras: Dumas, Verne, quilos de livros de aventuras de cowboys, a colecção dos livros de Simões Muller sobre as biografias de pessoas célebres como Florence Nitthingale, Camões, os Pony Express, etc. e, é claro, a banda desenhada: o Mundo de Aventuras, mais tarde o Tintin e ainda o jornal da Mocidade Portuguesa para meninas: A Fagulha.

E ainda, graças à falta de televisão, comecei a ler tudo o mais que apanhava. Trocavam-se livros com toda a gente: entre primos, amigos.

Lembro-me uma vez de uma tia ter ganho um prémio de um concurso do Diário Popular cujo prémio era 20 contos em livros (uma fortuna!) em diversas editoras. E como não era muito dada a essas coisas, convidou-me para partilhar com ela o prémio: fomos à Sá da Costa, à Bertrand e outras editoras de que não me lembro o nome, mas que me deram bons livros. Foi um regalo.

Agora na minha casa, tenho beneficiado das heranças: o espólio da minha mãe foi dividido entre os irmãos mais “intelectuais” e reconheço ter-me aproveitar do desconhecimento de alguns para ficar com uma biblioteca razoável. E as tias velhinhas a morrer têm-me permitido alargar o leque de livros, com os livros de Poche, embora a falta de espaço seja aterradora. Tenho alguns milhares, uns que li, outros que não e alguns que gostaria de reler. Estou à espera da reforma, cada vez mais longe, para passar 10 anos seguidos sem sair do sofá. Nos intervalos vou lendo como posso. Todos os dias um pouco.

Gostaria que os meus filhos também lessem: mas fazem-no pouco, muito pouco. Hoje lêem-se outras coisas. Tenho uma neta a quem vou passando os Condessa de Ségur que li quando tinha a sua idade. Poderá ser a minha esperança.

(B. Nolasco)
 


INTENDÊNCIA

Actualizada a nota BIBLIOFILIA: EFÉMERA DOS TEMPOS DA PESTE com a história de uma terrível pergunta: "É um grande espectáculo assistir à morte de um homem, verdade?"
 


EARLY MORNING BLOGS 442

Breakfast


Rush hour, and the short order cook lobs breakfast
sandwiches, silverfoil softballs, up and down the line.
We stand until someone says, Yes? The next person behind
breathes hungrily. The cashier's hands never stop. He shouts:
Where's my double double? We help. We eliminate all verbs.
The superfluous want, need, give they already know. Nothing's left
but stay or go, and a few things like bread. No one can stay long,
not even the stolid man in blue-hooded sweats, head down, eating,
his work boots powdered with cement dust like snow that never melts.


(Minnie Bruce Pratt)

*

Bom dia!
 


MAIS MEMÓRIAS DA BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL DO PORTO

Enviadas por Sílvio Costa estas fotografias que são o exacto retrato da Biblioteca que ainda conheci:

Biblioteca Pública Municipal do Porto - Anos 60

Todos voltados para o mesmo lado, de frente para o vigilante da sala (o seu amigo só podia desenhar desta perspectiva), as mulheres a um lado, os homens ao outro…



… e ao fundo a estante de coro e os mais novos, mais irrequietos.



Fotografias de Platão Mendes em MARJAY, Frederic P. Porto : capital do norte origem de Portugal. Lisboa : Bertrand, 1963.
 


BIBLIOFILIA: EFÉMERA DOS TEMPOS DA PESTE



Num arquivo, que recentemente obtive, estão um conjunto de documentos, jornais, panfletos, fotos, cartazes e livros muito interessantes, todos eles retratando a tumultuosa vida da Península Ibérica no século XX. Um deles é esta edição falsa do Avante! feita pela PIDE ou pela Legião em 1962 e destinada a caluniar Delgado e a usar o seu passado anti-comunista contra o PCP. Conhecem-se vários casos de números falsos do Avante!, mas este é mais perfeito na sua cópia do grafismo do jornal verdadeiro.


No arquivo está também uma série de fotografias mostrando uma realidade mais trágica. É um conjunto de fotos tiradas durante a guerra civil espanhola e que desconheço se são total ou parcialmente inéditas pelo menos em Portugal. Todas retratam cenas de violência e morte, fuzilamentos, cadáveres no chão, campos e ruas com mortos. Algumas estão legendadas à mão em português, como esta série que retrata a prisão interrogatório e fuzilamento de "comunistas" em Llerena, na Estremadura, na circunscrição de Badajoz. Sabe-se que Llerena foi tomada pelos nacionalistas em princípios de Agosto de 1936 e que logo a seguir houve centenas de fuzilamentos. É provável que estas fotos testemunhem esses fuzilamentos de 5 e 6 de Agosto. Como neste mesmo período de tempo, o jornalista português Mário Neves se encontrava na região e foi uma das raras testemunhas do chamado "massacre de Badajoz", é provável que estas fotografias tenham sido por ele tiradas ou trazidas.

*
A propósito das fotos dos fuzilamentos em Badajoz, lembrei-me de uma história contada por um tio-avô, que foi testemunha desse trágico momento. Naqueles anos 30, a guerra civil espanhola era seguida com toda a atenção, e após a queda de Badajoz, organizaram-se excursões para assistir a esses fuzilamentos naquela cidade.

Presumo que a maioria das pessoas que estava nessas excursões alinhava pelas ideias do Estado Novo. O objectivo da viagem era assistir à punição dos agressores da sociedade, daqueles que atentavam contra o nosso modo de vida, a "tranquilidade social" defendida pelo antigo regime. A viagem a Badajoz era uma manifestação da solidariedade aos franquistas e uma afirmação da ideologia política de cada um dos excursionistas.

Numa dessas excursões, os anfitriões espanhóis cederam uns lugares especiais aos convidados portugueses para que pudessem apreciar todos os pormenores das execuções. Aconteceu que os homens que iam ser fuzilados pararam por uns instantes em frente aos convidados portugueses.

Um desses homens percebeu que estavam ali estrangeiros para assistir à sua morte. Olhou alguns deles nos olhos e perguntou-lhes "Sois portugueses, verdade?" Alguns responderam que sim. "É um grande espectáculo assistir à morte de um homem, verdade?" perguntou-lhes o condenado.

Esta pergunta deixou profundamente transtornados vários portugueses. Alguns perceberam imediatamente que tinham levado o seu combate político longe demais. Sentiram-se profundamente envergonhados por presenciar aquele “espectáculo”; apenas queriam sair dali o mais rapidamente possível. Aquela pergunta de um homem condenado à morte fê-los perceber que nenhum combate político podia justificar a morte de uma pessoa. Passadas algumas décadas, alguns ainda recordavam o rosto e a expressão daquele homem ao dirigir-lhes aquelas últimas palavras.

(Marco Oliveira)

3.3.05
 


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS

Em Odemira, no ínicio dos anos 80, a biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian era visita diária para mim e para mais alguns miúdos que não tinham muito mais onde ocupar o tempo que sobrava da escola. O ínicio da adolescência pedia a leitura de aventuras fantásticas, de bandas desenhadas que não da Disney, de autores e mundos ainda não visitados. O Sr. Gilberto era o guardião de duas pequenas salas com estantes a toda a volta, do chão ao tecto, repletas de livros devidamente identificados com tiras de côr diferentes. No seu interior um cartão listava os leitores e as datas de em que tinham sido entregues ao seu cuidado. O velho Sr.Gilberto tinha sempre uma inesperada rispidez para os jovens frequentadores das duas salas e era imperdoável com os retardatários nas devoluções. Ao mesmo tempo, quando chegava nova remessa de livros era com um ar de quem oferecia um doce às escondidas, que nos indicava a sala do fundo. "Chegou uma nova remessa. Vai lá ver se encontras alguma coisa". Encontrei como encontrava sempre. Encontrei o Sandokan do Salgari, encontrei a BD do Alix, do Blake & Mortimer... Encontrei a Agatha Christie e Conan Doyle. Encontrei muitos que agora não lembro. Mais tarde encontrei um outro livro. Tinha doze ou treze anos, quando decidi levar para casa um livro de que tinha ouvido falar na televisão. O "1984" é coisa para marcar um adolescente.
Nunca agradeci à Gulbenkian e ao Sr. Gilberto o ter viajado e aprendido tanto.

(Luís Silva)

*

Por razões de vida raramente tive acesso a bibliotecas publicas até ao fim da adolescência. Contudo, o meu pai, fez uma excelente biblioteca ao longo da vida, e de tudo e todos, portugueses, brasileiros, ingleses, americanos, russos,etc.,romances, biografias, poesia, teatro, aos franceses é que numca se chegou por aí além. Como na minha infãncia viviamos numa pequena ilha do Indico que fez o meu pai quando ainda tinha 3/4 anos. No meu quarto, na "sala de estar", tinha sempre á mão de semear, estava cercado de livros, revistas, jornais, volumes de inciclopédias e quadradinhos. E de aí veio meu prazer pela leitura e pelos livros, a capa, o papel, a letra.Li a biografia de Talleyrand aí com 12 anos, quase nada percebi. Estou agora a reler porque os tempos aconselham. Mas é porque na adolescência o tive na mão !
A paixão do meu pai pela literatura vei de que em criança, de pais humildes, que trabalhavam na terra, teve a oportunidade de em criança passar dias na biblioteca particular de Homem Cristo(Pai), que me disse ter sido de ctegoria excepcional para o país e para a época.
É nessa idade que se tem desenvolver a curiosidade pelo pensamento dos outros e saber da existência das coisas.

(C. Indico)

*

O fascínio pelos livros nasceu na consulta de bilbliotecas familiares. A edição completa do Arquivo dos Açores, editada por Ernesto do Canto, exerceu sobre mim um enorme fascínio. Recordo-me de, enquanto a minha prima tocava piano, eu, então com 14 anos, consultava, deliciado, aquele magnifíco amontoado de documentos sobre a História dos Açores.
O passo seguinte foi a então Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Ponta Delgada, onde, nas férias, devorava livros de História e Literatura. Aos 15 anos, ganhei a reputação de leitor assíduo, onde com Hugo Moreira, um cinquentão investigador da História Açoriana, ocupávamos diariamente os nossos lugares cativados pelo uso. Ganhei direito a que o Sr. Silvestre, um bibliotecário profundamente conhecedor do espólio micaelense, me conduzisse numa visita guiada às preciosidades bibliográficas do Largo da Graça, onde, no antigo Convento dos Gracianos, se encontrava alojada a instituição. Tive o privilégio de percorrer demoradamente as estantes onde se encontravam conservadas as bibliotecas particulares de Antero de Quental, de Teófilo Braga, dos irmãos Ernesto [a preciosa AÇORIANA] e José do Canto [A PRECIOSA CAMONIANA], do marquês de Jácome Correia, de José Bensaúde, de Bruno Tavares Carreiro [A PRECIOSA ANTERIANA] e de aluns outros mecenas.
Jamais esquecerei o amor e o carinho que os probos funcionários daquela casa dedicavam às preciosidades a seu cargo, mas, também, a atenção que prestavam a todos os jovens que então frequentavam a biblioteca, entre os quais me incluí.
Mesmo nas férias de Verão, podíamos frequentar a sala de leitura até às 22H00. Só depois íamos passear para a Avenida Marginal, um dos diverimentos favoritos dos pontadelgadenses nos meses de Estio.

(Jorge Couto)

*

A minha primeira memória de leitura é da minha mãe a ler a Branca de Neve, à noite, no quarto que eu partihava com os meus três irmãos, e da sua exclamação involuntária (”Que disparate!”) ao ler que a princesa tinha “ombros diáfanos”. A minha mãe, cientista, gostava de rigor e exactidão em tudo. Mais tarde, começaram as disputas sobre quem seria o primeiro a ler o Tintin, que às vezes acabavam com a revista rasgada em dois.
Quando tinha 10 anos, a professora de um dos meus irmãos mais novos emprestou-me o Diário de Anne Frank. Foi a primeira vez que um adulto me emprestou um livro. Nunca mais me esqueci dela, do gesto e do livro, e da imensa tristeza pela sorte daquela menina que gostava de ler e de escrever e que não pôde crescer. Foi também o primeiro livro que li que não acabava bem.
Depois, a espera pela próxima visita da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, e o receio de que o senhor percebesse que eu estava a requisitar livros para mim com dois cartões, o meu e o do meu irmão mais velho. Eu só podia levar livros com bolinha verde, ele já podia ler os de bolinha vermelha (ou laranja?), os que eu mais apreciava. Foi aí que assinei o meu primeiro abaixo-assinado, uma petição (inútil) à Gulbenkian para que não acabasse com as bibliotecas itinerantes.
Li todos os livros lá de casa, incluindo o Crime do Padre Amaro que a minha mãe, ao ver como a minha fome progredia, escondeu em cima do guarda-fatos. Foi, claro, o primeiro Eça que li. E diverti-me imenso a comparar as duas edições do D. H. Lawrence, a da minha mãe censurada, a do meu pai integral.
Nas férias, atacava as estantes dos meus tios, que não compreendiam mas aceitavam com um encolher de ombros (muito pouco diáfanos) que eu, por vezes, preferisse ficar a ler num canto em vez de ir brincar ao sol, no tanque, com o resto das crianças da família.
Quanto às outras bibliotecas onde entrei no decurso da vida académica, continuo a frequentá-las porque fiz da vida académica o meu modo de vida. São menos simpáticas que as da infância e adolescência, mais familiares e menos misteriosas e, sobretudo, visitadas mais por dever do que por prazer. Pudesse eu ter todos os livros que me fazem falta em casa! Na minha biblioteca.

(STP)

*

Devem ser poucos os que antes, durante e mesmo depois da minha geração, e que residiam ou estudassem nesta cidade de Évora não tenham passado, frequentado, utilizado a biblioteca pública de Évora.
Aqueles que, no meu tempo de estudante e tal como eu, passaram tardes inteiras na companhia daquele espaço, das figuras sempre presente e eternas do Chitas e da Jacinta, sabem que é um espaço maravilhoso.
Entrei nele pela primeira vez deveria ter uns 11 ou 12 anos, fruto de um trabalho do ciclo, daquelas coisas impostas pelos professores e que nos obrigavam a procurar outras fontes de informação.
O peso do espaço oprimia uma criança e, perante aquelas formalidades e a figura daquele homem que, de dedos amarelos, óculos fundo de garrafa na ponta do nariz, entre o corcunda e o encorvado, nos pedia o bilhete de identidade num tom de voz quase que sussurrado, sentiamo-nos ainda mais pequenos, constrangidos a penetrar naquele espaço quase de tons sagrados.
Mas, passado o receio inicial, compelidos pela necessidade, lá subiamos as escadas, curvavamos, cada um por seu lado e, chegados à imponente porta, a empurravamos com um típico guinchar de anos passados. Davamos por nós num imenso salão.
De um lado a figura imponente de frei Manuel do Cenáculo a ocupar toda a parede. Figura que nos vigiava, que vigiava namorados e leituras, textos e ternuras que também se trocavam naquele espaço, a tentar fintar os olhos de quem velava pela integridade do espaço, pelo pesar dos anos passados.
Do outro, o balcão a impor uma barreira de límites que apenas atravessei, já grande, estudante universitário e onde se alojavam aquelas duas figuras que tudo conheciam, que tudo sabiam.
Sempre me impressionaram pelo seu conhecimento, pela simpatia que colocaram na relação com quem, ignorante e pequeno, procurava aquele espaço. Fossem temas de ciências, artes, humanidades, ofícios ou apenas prazeres simples de descoberta eles conheciam um livro, um título adequado, útil às pequenas pretensões de quem descobria a vida nas páginas de um livro, nos textos, nas imagens.
Passados todos estes anos, tenho na Jacinta uma amiga indefectível, companheira de muitas e longas conversas, no Chitas um parceiro de cumplicidades, de troca de ideias e de amostragem de livros. Um companheiro de leituras.
No ano passado, na pausa da Páscoa, fiz uma visita guiada com os meus filhos áquele espaço, ao reencontro dos livros. Com as mesmas pessoas, e outras que entretanto aparecereram, pedimos livros para estarmos ali, apenas a passar os dedos, a folhear pensamentos, entretidos a passar uma manhã. Percorremos as suas diferentes salas, sentimos o peso dos livros, o cheiro dos anos, o respeito dos pensamentos e das ieias que aquelas estantes guardam.
A Biblioteca Pública, como sempre foi e é conhecida, faz 200 anos. Penso que a cidade deveria ser convidada, obrigada a participar nesta festa, que as portas se abrissem, que os livros pudessem, pelo menos uma vez, fugir, escapar-se pelas ruas e percorrer o exterior como sangue que nos enche as veias.

(manuel dinis p. cabeça)

*

Desde que me lembro que me sinto fascinado pelos livros. Ainda miúdo, como não tinha dinheiro, ia trocar os meus livros usados por outros ainda mais usados numa livraria da Rua do Bonjardim. Assim, contactei com o Major Alvega, o Mandrake, mas também o Júlio Verne e uma colecção excepcional de cujo nome não me lembro que era composta por biografias de pessoas famosas: Madame Curie, Benjamim Franklin, Edison, e muitos outros.
Agora, já adulto e com 4 filhos (dos 4 aos 13 anos), tenho muitos livros lá em casa. Coloquei uma estante na sala onde os meus livros estão acessíveis para que os meus filhos os possam ver, folhear e habituar-se à sua presença. Dessa forma, vão pegando neles e cheirando-os, coisa que a internet nunca lhes poderá proporcionar.
Por minha vontade estaria mais ligado aos livros, mas infelizmente permiti que a vida tomasse conta de mim. Resta-me a esperança da velhice.

(José Pinho)

*

Acreditem. O primeiro livro que li até ao fim (teria eu 8 ou 9 anos) foi um cujo título era (ou é) "Um Passeio à Serra da Estrela". Uma prenda para quem souber o seu autor.

(Fernando Barros)
Não sei se será o mesmo (penso que não) mas há um livro de Emidio Navarro que penso entitular-se "4 dias na Serra da Estrela" e que descreve uma expedição feita no seculo XIX, relatando o que então pouco mais era que "terra incognita". Nunca consegui arranjar um exemplar embora tenha procurado em meia duzia de alfarrabistas.
Ha 4 anos tive oportunidade de fazer a maior parte do trilho T1 desde perto da Guarda até Loriga num total de 70 e tal km e passando pela Torre. Aconselho! Conheci locais quase inacessiveis (de carro) e portanto desconhecidos para 99,9% das pessoas, como o Vale dos Condes ou a descida para Loriga, por exemplo. E ainda bem...
(João Cardoso)

*

A mim me coube a indizível felicidade de receber encaixotadas e a monte as bibliotecas pessoais de Leonardo Coimbra e do Professor Braga da Cruz, antigo Reitor da Universidade de Coimbra.

Nenhum prazer mais sublime pode existir do que ter à mão 30 ou 40 mil volumes que ignoramos completamente, embalados ao acaso, sem catálogo nem descrição. Excitados e nervosos, rasgamos a fita cola que fecha um caixote, sem fazermos ideia nenhuma do que nos espera: uma explicação da teoria da relatividade para não cientistas; as obras de Balmes; um relatório e contas da “Sacor”; um tratado de 1937 de um padre José Ferreira, contra a devassidão e a luxúria; um ilegível tratado de Direito Romano do séc. XIX francês; um ainda mais ilegível Römisches Recht do século XX; uma colecção quase completa da “Biblioteca de Autores Cristianos”; o monotóno discurso proferido na sessão solene de abertura oficial do ano lectivo de 1953-54 na Universidade de Coimbra; uma edição crítica do D. Quixote, em papel bíblia; o Guia de Portugal; as páginas amarelas de 1973; o catálogo da exposição comemorativa do Código Civil com um cartão de visita assinado por Oliveira Salazar; o Caminho de Escrivá de Balaguer; os Sonetos de Antero de Quental, edição clássicos Sá da Costa; Angola, terra linda, serás sempre Portugal; o tratado de Direito Civil de Enneccerus – Kipp – Wolff; as comemorações do centenário da publicação de “os Lusíadas”; o Sermão da Sexagésima...

O mundo todo cabe num caixote de livros, quando não se sabe o que está lá dentro.

A verdadeira biblioteca não é a que está muito bem organizadinha, muito bem catalogadinha, muito bem tratadinha. A verdadeira biblioteca é aquela onde se encontra o que não se procura, onde se encontra o que nem sequer se sabe que existe.

(António Cardoso da Conceição)

*

Também com os meus 14 anos ,hoje tenho 69,consultei na B.Municipal de Coimbra o livro de E.Moniz.
Mas o que recordo mais intensamente dos meus tempos de leitor daquela casa,principalmente nas férias grandes, foi a possibilidade de ter acesso a conhecimentos que não estavam disponíveis nessa altura e que me tinham despertado a atenção ,sobre os dias da resistência dos cadetes da A.M.de Toledo,durante a G.C.de Espanha,através de uma referência ao papel do R.C.Português,na citada guerra.
Com a ajuda dos competentes e pacientes funcionários,procurei livros que satisfizessem a minha curiosidade;encontrei -os sobre a guerra no mar,de Maurício de Oliveira e pouco mais!
Foi então que entrei pela primeira vez no mundo maravilhoso de uma biblioteca! Possivelmente por sugestão de algum dos referidos funcionários,comecei a ler todos os jornais da época sobre o episódio do Alcáçar de Toledo.Fiquei esclarecido.
Dai a ler tudo sobre a G.C.de Espanha nos jornais de 1936-39, foram momentos irrepetiveis e ainda hoje,que sobre o assunto há razoável bibliografia ,reconheço que aquela Biblioteca prestou um relevante serviço na formação de um jovem de 15 anos.

(A.L.B.Barrinhas)

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A minha primeira biblioteca tinha a dimensão de uma estante com vidros, no canto da sala que me parecia enorme. Nessa enorme biblioteca descobri "O crime do padre Mouret" de Emile Zola. Mais tarde, na Biblioteca Itenerante da Gulbenkian descobri Enid Blyton. Ainda mais tarde, na Biblioteca Municipal descobri "O crime do padre Amaro" de Eça de Queiroz. Um pouco mais tarde, na biblioteca da Fundação Gulbenkian descobri "O Apocalipse do Lorvão" de Anne de Egry. Muito mais tarde, na biblioteca pessoal de um amigo, descobri as "Obras Completas" de S. João da Cruz. Ainda muito mais tarde, na biblioteca da minha mesa de cabeceira, descobri o "Caminho" de Josemaría Escrivá. Socorro!

(Sílvia)

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Certa vez julgando entrar numa, em casa particular, deparei-me com uma adega onde um tio de um amigo chamando-lhe “a minha biblioteca”, tratava os vinhos como livros. Acrescento que “li” naquele sítio alguns e bons “livros”. Nunca me arrependi.

Finais da década de sessenta, aluno no Colégio Moderno à Rua de Malpique em Lisboa, passava diáriamente no passeio em frente à Biblioteca Nacional.

Um dia, após ter assistido a partir do pátio traseiro do colégio às manifestações estudantis na Faculdade de Direito, ali bem ao lado, às consequentes fugas à frente da polícia de choque e até às perseguições pelos baldios movidas por civis armados (mais tarde percebi o que era a PIDE), ao regressar a casa apanhei daquele passeiouns panfletos que guardei entre as folhas de uma sebenta, total e absolutamente inconsciente dos riscos.

Falavam, os panfletos, da luta dos estudantes universitários em particular e de todo um povo em geral contra a repressão policial do regime e contra ele em si mesmo. Desde esse dia o meu pequeno mundo começou a transformar-se…

Mais tarde e fruto da mistura de uma maior consciência e de algum medo, não sei bem em que doses, os panfletos rasgadinhos em pedaços foram queimados num caixote de lixo bem longe da rua onde morava. Ainda hoje me arrependo do medo !

(JCB)

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Nos idos (muitos) anos de sessenta, frequentava eu o então designado Liceu Nacional de Gil Vicente, à Graça, em Lisboa. Para alguns trabalhos da disciplina de Língua e História Pátria, creio que era assim que se designava, havia necessidade de consultar documentação não disponível na pequena biblioteca do liceu. Um dia calhou-me em sorte, um trabalho sobre a 1ª Travessia Aérea do Atlântico, efectuada pela dupla Gago Coutinho/Sacadura Cabral.

Através de mão amiga descobri a biblioteca da veneranda Sociedade de Geografia. Nas suas sumptuosas e pesadas salas da biblioteca, passei a pente fino o diário que Gago Coutinho tinha elaborado sobre a travessia, encolhido na minha cadeira, sentindo ao redor o peso da responsabilidade que muitos senhores, que também liam outras comunicações, transmitiam pela sala. O silêncio era um valor por demais importante e, quando se ouvia um arrastar de cadeira, provocado por um acaso, o responsável por tal acto, quase pedia desculpa por existir.

Eram (e serão, certamente ainda) páginas frementes de vida, de dúvidas e angústias, mas “cozidas” com o fio condutor da esperança e do crer. Manuscritas e preciosas de informação, lá me permitiram, dentro das minhas limitações, produzir um trabalho razoavelmente bom.

Presente ao “se tôr” do Gil, foi, por ele, bem avaliado. Apenas prejudicado na nota, pelo facto do título ser – “ A Primeira Atravessia Aérea do Atlântico”.

Existia rigor na apreciação de como se escrevia a língua portuguesa.

Hoje, quando se recordam bibliotecas, sinto respeito por tal sítio, admiração pelo seu enorme espólio e, esperança de que, quando necessário, qualquer estudioso o possa consultar, sem ter medo de arrastar uma cadeira, quando for preciso.

(Rui Carlos Correia da Silva)

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Sou profissional de informação, trabalho numa biblioteca universitária e tenho a visão de dentro da Biblioteca. Desde os tempos da “cunha” já muito mudou em relação aos funcionários das bibliotecas. Hoje desde cursos profissionais, passando pelas novas licenciaturas, as decadentes pós-graduações, terminando nos mestrados, a formação dos profissionais da informação que trabalham em bibliotecas é cada vez mais especializada.

Desde sempre tive o fascínio da leitura e dos livros, também eu tive a sorte de em casa ter a oportunidade de sempre ter convivido com livros que preenchiam praticamente todos os compartimentos da casa. Não me posso esquecer, no entanto, a sensação de entrar e posteriormente tratar uma “verdadeira” biblioteca privada, daquelas com dois andares, estantes altas em madeira e livros fascinantes que passaram por muitas gerações até repousarem naquele espaço. Desde 1492 até 1920 todos eles passaram pela minha mão, confesso que muitos foram os que li ou passei os olhos. A emoção de ver uma das maiores colecções do livro A Imitação de Cristo, onde constam livros comprados à Biblioteca Victor Emanuel, a Biblioteca Nacional de Italiana. Pensar que toquei, li livros que presenciaram à descoberta do Brasil, às invasões francesas, às revoluções liberais, à queda da monarquia… No meio um conjunto de livros pertencentes a um servidor do Estado, destaco um O Manual do Deputado.

(Nuno Gonçalves de Matos)

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Dos meus oito aos doze anos vivi em Cabo Verde. Não havia televisão, nem consolas, nem cinemas, nem recintos desportivos, nem nada... "Devorei" nesses quatro anos um pouco de tudo o que existia na biblioteca da embaixada de Portugal, a escassos 500 metros de minha casa. Começei pelos Asterix, Luky Luke e algumas prosas adequadas à minha idade, até que por fim voltei-me para literatura técnica sobre física, quimica, matemática, etc...Hoje questiono-me o quanto tudo isso me mudou... até hoje.

(Luis Vaz de Carvalho)

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Princípios de 1950 - Santo André, aldeia perdida na Beira Baixa, teria os meus 8 anos. Na escola havia uma sala pequena e escura, que nunca era aberta. Por razões anormais durante as férias do verão tive acesso a essa sala. Nela havia um armário completamente cheia de livros cobertos de pó e de teias de aranha.
Que gozo! Foi a "Filha do Polaco", todo o Júlio Dinis, o Eça, o Camilo e sei lá mais o quê! A "Ponte sobre o Drina" nunca consegui acabar de ler! Quando me reformar vou tentar de novo... Julgo que foi aqui que ganhei o meu primeiro par de óculos!

(Catarino de Almeida)

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A primeira biblioteca pública a que me lembro de ir não tinha altas estantes, não tinha escadarias, não tinha sala de leitura. Era cinzenta, tinha quatro rodas, três degraus e uma fila ansiosa de pequenas criaturas que queriam ser as primeiras a entrar para ver primeiro os livros novos: era uma Biblioteca Itinerante da Gulbenkian.

(RM)

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No início dos anos oitenta, frequentei a Biblioteca Pública de Braga. O período de férias escolares prolongava-se por três meses e o prazer de ler era a forma de melhor rentabilizar aqueles dias. Era agradável e o ambiente que ali se vivia nunca mais o voltei a encontrar. Logo à entrada, à esquerda, existia uma primeira sala de leitura onde um senhor muito simpático, falava de livros, resolvia dúvidas depois de consultar diversas fichas, dava a conhecer as novidades.

Depois subia-se até ao primeiro andar e entrava-se num mundo completamente diferente ... a sala era imponente e os funcionários habitualmente mal encarados.

Eu gostava de ler jornais antigos, muitas vezes, constatei que acontecimentos de grande importância passavam quase despercebidos como notícia.

Os funcionários consideravam as minhas requisições um pedido sem qualquer sentido, mostravam-se sempre contrariados e diziam "tem a certeza que é este o ano ... vou perder muito tempo ...". Eu pensava, como ainda hoje penso, como era possível encontrar ali pessoas que não incentivavam de maneira nenhuma a leitura.

(Teresa Carrilho)

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O seu blog sobre a biblioteca lembra-me a minha, em circunstâncias idênticas. Posteriormente (julgo eu porque tenho 47 anos) e noutro local: a Biblioteca Municipal de Santarém.

Havia, no entanto, uma diferença significativa. Muito embora eu tivesse, nessa altura, uns 10 anos, o casal que tomava conta dela era afável e muito prestável.

Há uns anos, visitando a pé Santarém, passei pela porta da biblioteca. Ia a sair o casal que naquela altura me atendia. Fiquei chocado. Tinha-me esquecido que os anos foram passando e continuava a recordar-me deles como eram naquela altura. E naquela altura, eram uns 20 anos mais velhos que eu. Raios partam.

(Henrique Martins)
 


A OUVIR

Borges lendo Borges na Bomba Inteligente.

1.3.05
 


MEMÓRIAS DA BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL DO PORTO (Actualizadas)

O livro proibido que estava nos “reservados” e que era mais popular na leitura era a Vida Sexual de Egas Moniz.

*

Havia dois ou três permanentes na sala da Hemeroteca, no rés-do-chão, que tinham uma pilha de livros e revistas guardada religiosamente na sua mesa. No seu caso, os livros não eram “devolvidos”. Faziam quase parte da mobília e sentavam-se horas a fio a tomar notas em papelinhos, vestindo antes umas mangas-de-alpaca para não sujar o casaco ou a camisa. Um destes permanentes foi o meu professor de filosofia no Liceu Alexandre Herculano, Cruz Malpique. O dr. Malpique fazia livros em série, numa produção gigantesca, escrevendo em papel recuperado de outros usos, cortado à faca ou à tesoura, e junto em macinhos que ele enchia sem hesitações na sua letra perfeita. Entre as folhas que ele recuperava estavam as de antigas provas doutros livros. Escrevia livros sobre livros.

*

Entre estes permanentes avultavam os autores de monografias locais, normalmente velhos reformados que se percebia não viverem muito bem, dedicados à sua terra e, na verdade, todos um pouco loucos na sua avidez de coleccionadores de efemérides.

*



As requisições da Biblioteca foram as minhas primeiras fichas. Como as fichas verdadeiras eram caras e difíceis de encontrar (lembro-me de atravessar a cidade para ir comprar para a biblioteca do meu pai uns verbetes que só havia na Tipografia Maranus na Praça da República, que era da família de Teixeira de Pascoaes, entretanto desaparecida), eu tirava molhos destas “fichas” para fazer anotações, tendo o cuidado de escondê-las dos funcionários. Ainda hoje tenho centenas que escaparam do assalto da PIDE a minha casa. Nunca as deitei fora, como esta de 23 de Junho, depois reciclada para 24 de Junho de 1965, porque toda a gente era muito poupada e não havia esbanjamentos.

*

Sem me aperceber, noto agora que várias destas notas retratam um mundo de maior escassez, onde se era naturalmente mais poupado.

*

Um dia descobri que havia um jornal chamado O Comunista, órgão do PCP, na hemeroteca com grande surpresa minha. Hoje pode parecer normal, tanto mais que se tratava de um jornal publicado nos anos vinte, quando o partido era legal. Mas no mundo rigorosamente vigiado, censurado e policiado do Portugal de Salazar era uma descoberta excepcional e surpreendente. A biblioteca tinha sido sujeita a várias purgas e embora pense que nunca nenhum livro ou jornal fora destruído, a verdade é que não constavam dos catálogos e não podiam ser consultados.

Precisava de consultar o jornal várias vezes, o que envolvia perigos para mim e para o jornal. A biblioteca tinha funcionários suspeitos de serem informadores (não sei se era verdade ou mentira, mas a suspeita tinha sentido tendo em conta como eram escolhidos) e o jornal podia ser retirado da leitura. A minha sorte é que o jornal fazia parte de uma “miscelânea”, um grupo de jornais com poucos exemplares que tinham sido encadernados em conjunto. Passei por isso a requisita-lo usando o título de um pacifico jornal regional que também lá estava. Apesar da PIDE se ter mais tarde interessado pelo jornal, quando o citei no meu primeiro livro sobre a greve geral de 1918, apreendido pela polícia e que me motivou um processo, nunca o descobriu na biblioteca e assim chegou ao 25 de Abril.

(Continua)
 


BIBLIOFILIA: O CAIXEIRO FELIZ

Voltamos ao nosso tema bibliófilo: o tempo encerrado nos livros velhos. O tempo não no conteúdo, mas em tudo, no “ar” do livro. Este é um bom exemplo e custou-me 50 cêntimos num alfarrabista do Porto. Foi escrito por Diogo de Sequeira e Costa e tem dois títulos, um na capa - Um Caixeiro Feliz – Romance Histórico da Vida d’um Rapaz Pobre (Como Thiago Chegou a Ser Rico) – e outro no rosto Como se Chega a Ser Rico – Romance popular, Instrutivo e Recreativo. Fazia parte da Biblioteca Interessante – Números Soltos e foi editado por João dos Santos Ferreira, em 1916. Era dedicado "aos proprietários do comércio e seus empregados em geral” e fazia parte de um literatura produzida e dirigida a uma classe profissional de elite, aqui os empregados do comércio. Há também literatura semelhante oriunda de tipógrafos, ferroviários e barbeiros, grupos profissionais que tinham um número razoável de alfabetizados e com tradição de literatura amadora. Na contracapa, dizia-se que o livro tinha fins beneficentes e ,quem o comprava, ajudava um tipógrafo doente e uma sua filha paralítica. Retratos do mundo antes da segurança social.

A história, passada em Paris, é o menos importante neste “ar” do tempo. É uma típica versão do sempre atractivo tema da ascensão social a partir da pobreza, dos “lances triviais da pobreza e desvalimento”, pelo trabalho e pela “perseverança”. Trazia esperança, sonho e pedagogia moral. Valia os 200 reis que custava.
 


O SINO PESADO

(Toca o sino.)

- O sino está pesado.

- O que é que isso quer dizer?

- Vai morrer gente. Não vê como ele toca?

- Vamos ver.

*
Vivo na cidade, mas aldeia e sino são indissociáveis. Eu lembro-me do sino ao fim da tarde (as Ave-marias), em que todos, depois de uma breve oração pensavam em deixar o trabalho da terra e regressar a casa e aos animais de casa. Há muito que deixei do o ouvir. Hoje ouço o “electrónico” a dar as horas e meias horas com alguns acordes de música gravada (o “Ave Maria” de Fátima) ganhando em eficiência e mau gosto e perdendo em poesia e mística. Conheço e ainda ouço os três toques que, ao Domingo, em diferentes momentos avisam os fiéis do começo da Missa. É sempre com prazer que acordo cedo no Domingo de Páscoa com os sinos vibrando excitação, ou não fosse esse um dos dias de mais atarefados da igreja a que pertencem, há tarde, como que num último folgo de quem passou o dia a percorrer caminhos para levar a cruz a beijar a todas as casas, tocam alto as Aleluias. Sei que também toca na Véspera de Natal, a chamar para a Missa do Galo. Também continuo a ouvir, e sei distinguir os toques dos casamentos, dos baptizados e dos funerais, sendo este último o mais belo e mais pungente, ou não fosse ele feito para nos lembrar da precaridade da vida e da nossa mortalidade.
(J.)
 


INTENDÊNCIA

Actualizada a nota O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: CONTA, PESO E MEDIDA.
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: DO USO DOS PLEBEÍSMOS



- Toma lá esta fotografia de uma galáxia a dar uma chapadona a outra...

- O quê?

- Uma chapadona.

- Deverias dizer: repara na entrega plena e total dos evanescentes corpos celestes, numa luz alta que corta a pesada escuridão envolvente como uma faca imaterial escorrendo lucidez. Mas não. Optaste por um blade of grass.

(Sobre galaxiomaquia ver aqui.)
 


UM OLHAR VINDO DA SALA DE LEITURA DA BILIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL DO PORTO NOS ANOS SESSENTA

Este desenho que encontrei num diário por volta de 1964 ou 1965 foi feito pelo meu amigo P. C. L., de que nada sei desde essa altura. O que ele representa está gravado em mim por manhãs, tardes e, às vezes, noites seguidas na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Foi desenhado a partir de uma das mesas de leitores em direcção á porta de entrada e “congela” um olhar que já não se pode reproduzir porque a Biblioteca mudou muito e a sua sala principal de leitura também.

Na época, a sala era o exemplo da ordem perfeita das coisas que a Ordem de cima regulava. Tudo estava no sítio: entrava-se por aquela porta envidraçada e entregavam-se as requisições ao funcionário que estava à direita de quem entra. Havia um outro local simétrico à esquerda mas nunca era utilizado. Ser funcionário da biblioteca era um lugar de “cunha” pelo que o serviço era, regra geral, a não ser para as pessoas "importantes" e os poderosos amigos do director, agressivo e péssimo. Os outros leitores eram vistos como uma perturbação dispensável. Nunca havia a certeza dos livros aparecerem e havia funcionários que se “esqueciam” dos pedidos quando as estantes eram muito longe ou muito altas. Às vezes não estava ninguém ao balcão e era preciso esperar muito tempo.

A sala tinha mesas largas e cadeiras razoavelmente confortáveis, e estendia-se desde a porta encimada pelo retrato do rei, até a uma área reservada separada por um grosso cordão vermelho e que tinha no meio um livro de música antigo, um cantochão, num suporte único. Lá para trás não se podia passar. Era sempre fresca no Verão, com o claustro à direita, onde se ouviam as pombas e água da fonte, e onde ocasionalmente as janelas eram abertas. À esquerda não se podiam abrir as janelas por causa do barulho dos eléctricos que iam e vinham de S. Lázaro. No Inverno, às vezes, fazia frio. As paredes altas e com uma mezanina em cima, estavam todas forradas de livros antigos, parte dos livros que Alexandre Herculano trouxera dos mosteiros em colunas de carros de bois por esse país fora.

Esta foi a minha segunda casa.
 


EARLY MORNING BLOGS 441

A blade of grass


You ask for a poem.
I offer you a blade of grass.
You say it is not good enough.
You ask for a poem.

I say this blade of grass will do.
It has dressed itself in frost,
It is more immediate
Than any image of my making.

You say it is not a poem,
It is a blade of grass and grass
Is not quite good enough.
I offer you a blade of grass.

You are indignant.
You say it is too easy to offer grass.
It is absurd.
Anyone can offer a blade of grass.

You ask for a poem.
And so I write you a tragedy about
How a blade of grass
Becomes more and more difficult to offer,

And about how as you grow older
A blade of grass
Becomes more difficult to accept.


(Brian Patten)

*

Bom dia!

© José Pacheco Pereira
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