ABRUPTO

31.12.04
 


BOM ANO



To leave the old with a burst of song;
To recall the right and forgive the wrong;
To forget the things that bind you fast
To the vain regrets of the year that's past.

 


INTENDÊNCIA

Os Estudos sobre o Comunismo estão em actualização, em particular, a bibliografia de 2004.
 


COISAS SIMPLES


Paula Moderschon-Becker
 


PELA MANHÃ

O frio aperta. O sol brilha. Os montes têm o recorte habitual. À faca. Primeira série de colinas, segunda série de montes. Depois o mar. Uma sirene toca ao longe. Aqui é um som raríssimo no Inverno. Uma segunda sirene. Silêncio. O som de alguém que varre o chão. Alguma coisa de muito errado aconteceu. Ao longe.
 


EARLY MORNING BLOGS 397

In the Park


You have forty-nine days between
death and rebirth if you're a Buddhist.
Even the smallest soul could swim
the English Channel in that time
or climb, like a ten-month-old child,
every step of the Washington Monument
to travel across, up, down, over or through
--you won't know till you get there which to do.

He laid on me for a few seconds
said Roscoe Black, who lived to tell
about his skirmish with a grizzly bear
in Glacier Park. He laid on me not doing anything. I could feel his heart
beating against my heart.
Never mind lie and lay, the whole world
confuses them. For Roscoe Black you might say
all forty-nine days flew by.

I was raised on the Old Testament.
In it God talks to Moses, Noah,
Samuel, and they answer.
People confer with angels. Certain
animals converse with humans.
It's a simple world, full of crossovers.
Heaven's an airy Somewhere, and God
has a nasty temper when provoked,
but if there's a Hell, little is made of it.
No longtailed Devil, no eternal fire,

and no choosing what to come back as.
When the grizzly bear appears, he lies/lays down
on atheist and zealot. In the pitch-dark
each of us waits for him in Glacier Park.

(Maxine Kumin)

*

Bom dia!

30.12.04
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: "SÓ O TEMPO É MESMO NOSSO"

"Nada nos pertence (...), só o tempo é mesmo nosso.A natureza concedeu-nos a posse desta coisa transitória e evanescente da qual quem quer que seja nos pode expulsar. É tão grande a insensatez dos homens que aceitam prestar contas de tudo quanto - mau grado o seu valor mínimo, ou nulo, e pelo menos certamente recuperável - lhes é emprestado, mas ninguém se julga na obrigação de justificar o tempo que recebeu, apesar de este ser o único bem que, por maior que seja a nossa gratidão, nunca podemos restituir."

Lúcio Aneu Séneca , Cartas a Lucílio (Carta 1), enviado por João Costa
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: DESEJAR SER

"A mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do homem é desejar ser. Bem nos conhecia este natural o demônio, quando esta foi a primeira pedra sobre que fundou a ruína a nossos primeiros pais. A primeira coisa que lhe disse e que lhe prometeu foi que seriam: Eritis (Gên. 3,5), e este eritis, este sereis foi o que destruiu o mundo. Não está o erro em desejarem os homens ser, mas está em não desejarem ser o que importa. Uns desejam ser ricos, outros desejam ser nobres, outros desejam ser sábios, outros desejam ser poderosos, outros desejam ser conhecidos e afamados, e quase todos desejam tudo isto, e todos erram. Só uma coisa devem os homens desejar ser, que é ser santos. Assim emendou Deus o sereis do demônio com outro sereis, dizendo: Sancti eritis, quia Ego sanctus sum . O demônio disse: Sereis como Deus, sendo sábios; e Deus disse: Sereis como Deus, sendo santos. E vai tanto de um sereis a outro sereis, que o sereis do demônio não só nos tirou o ser como Deus, mas tirou-nos também o ser, porque nos tirou o ser santos, e o sereis de Deus, exortando-nos a ser santos, como ele é, não só nos restitui o ser como Deus, senão também o ser. Quando Moisés perguntou a Deus o que era, respondeu Deus definindo-se: Ego sum qui sum (Êx. 3,14): Eu sou o que sou — porque só Deus tem por essência o ser. Agora diz a todos os homens por boca do mesmo Moisés: Se sois tão amigos e tão ambiciosos de ser, sede santos, e sereis, porque tudo o que não é ser santo, é não ser. Sede rei, sede imperador, sede papa: se não sois santo, não sois nada. Pelo contrário, ainda que sejais a mais vil e mais desprezada criatura do mundo, se sois santo, sois tudo o que pode chegar a ser o maior e mais bem afortunado homem, porque sois como aquele que só é e só tem ser, que é Deus. Todo o outro ser, por maior que pareça, não é, porque vem a parar em não ser. Só o ser santo é o verdadeiro ser, porque é o que só é, e o que há de permanecer por toda a eternidade."
 


O MELHOR LIVRO DE DIVULGAÇÃO CULTURAL DE 2004



Felipe Fernandez Armesto, Ideas that changed the world, Londres, DK, 2004.

A traduzir absolutamente.
 


A MINHA LISTA DE NÃO-FICÇÃO NACIONAL DE 2004

(Por ordem alfabética)

Paulo Ventura Araújo / Maria Pires de Carvalho / Manuela Delgado Leão Ramos, À Sombra de Árvores com História, Porto, Campo Aberto, 2004

(Um livro de amadores, no grande sentido da palavra, dos autores do blogue Dias com Árvores, para vermos as árvores e o Porto.)

Maria João Avillez, Conversas com Álvaro Cunhal e Outras Lembranças, Lisboa, Temas e Debates, 2004

(As melhores entrevistas de Cunhal num jogo de sedução mútua muito interessante de perceber.)

José Gil, Portugal Hoje. O Medo de Existir, Lisboa, Relógio de Água, 2004

(Nota no Abrupto.)

Fernando Lima, O Meu Tempo com Cavaco Silva, Lisboa, Bertrand Editora, 2004

(Podia ter sido escolhido o original, o segundo volume da autobiografia de Cavaco, mas sendo ambos, o de Lima e o de Cavaco muito stiff, o de Lima tem muita informação mesmo que tratada de forma oficiosa e “autorizada”.)

Eduardo Lourenço, Destroços. O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Lisboa, Gradiva, 2004

(Nota no Abrupto.)

Frederico Lourenço, Grécia Revisitada, Livros Cotovia, 2004

(O autor tem sido, depois de Maria Helena Rocha Pereira, o grande portador do amor perplexo que todos temos com a Grécia.)

Dalila Cabrita Mateus, A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974, Lisboa, Terramar, 2004

(Sobre como os nossos brandos costumes eram ainda “mais” brandos nas colónias, e como era a PIDE de lá, em guerra.)

Rui Vieira Nery, Para uma História do Fado, Público, 2004

(Obra revista e aumentada fundamental para nos conhecermos, o país onde é fácil fazer chorar as paredes e as pedras da calçada.)

Leonor Curado Neves (Edição), António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência , Lisboa, Gradiva, 2004

(Nota no Abrupto.)

Alexandre Pomar, com a colaboração de Natália Vital e de Rosa Pomar, Júlio Pomar - Catalogue raisonné I (1942-1968), Paris, Editions de la Différence, 2004

(Nota nos Estudos sobre Comunismo.)
 


AR PURO


P.Balke
 


EARLY MORNING BLOGS 396

The Dover Bitch


A Criticism of Life: for Andrews Wanning

So there stood Matthew Arnold and this girl
With the cliffs of England crumbling away behind them,
And he said to her, 'Try to be true to me,
And I'll do the same for you, for things are bad
All over, etc., etc.'
Well now, I knew this girl. It's true she had read
Sophocles in a fairly good translation
And caught that bitter allusion to the sea,
But all the time he was talking she had in mind
The notion of what his whiskers would feel like
On the back of her neck. She told me later on
That after a while she got to looking out
At the lights across the channel, and really felt sad,
Thinking of all the wine and enormous beds
And blandishments in French and the perfumes.
And then she got really angry. To have been brought
All the way down from London, and then be addressed
As a sort of mournful cosmic last resort
Is really tough on a girl, and she was pretty.
Anyway, she watched him pace the room
And finger his watch-chain and seem to sweat a bit,
And then she said one or two unprintable things.
But you mustn't judge her by that. What I mean to say is,
She's really all right. I still see her once in a while
And she always treats me right. We have a drink
And I give her a good time, and perhaps it's a year
Before I see her again, but there she is,
Running to fat, but dependable as they come.
And sometimes I bring her a bottle of Nuit d' Amour.


(Anthony Hecht)

*

Bom dia!

29.12.04
 


BIBLIOFILIA: ALGUNS RAY BRADBURY DA COLECÇÃO



"Last week I turned 82. 82! When I look in the mirror, the person staring back at me is a young boy, with a head and heart filled with dreams and excitement and unquenchable enthusiasm for life. Sure, he's got white hair -- so what! People often ask me how I stay so young, how I've kept such a "youthful" outlook. The answer is simple: Live a life in which you cram yourself with all kinds of metaphors, all kinds of activities, and all kinds of love. And take time to laugh -- find something that makes you truly happy -- every day of your life. That is what I have done, from my earliest days." (Ray Bradbury, "Happy Birthday to Me!")

Em breve acrescentarei Autumn People, a primeira edição em quadradinhos da E.C. Comics, com o fabuloso "Touch and Go", uma história metafísica sobre a totalidade e a perfeição.
 


A LER

este balanço dos progressos científicos mais significativos de 2004, para se perceber como em quase tudo o que é importante estamos num limiar, na porta, no momento de saltar para novos saberes e novas perguntas. As novas perguntas são mais importantes.
 


INTENDÊNCIA

Colocados no VERITAS FILIA TEMPORIS a Lagartixa e o Jacaré 16 e 17, originalmente publicados na Sábado. Tratam da estratégia da coligação, do retorno do "Paulinho das Feiras", do Google e do prémio do Ponto Média. A número 17 inclui a lista dos dez mais e menos nacionais de 2004.
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: SOBRE JUDAS

A hipótese política: Longe de ser um traidor, Judas ter-se-ia revelado o único que verdadeiramente cria no poder de Jesus Cristo.

Anunciado como messias libertador e rei dos judeus, Jesus Cristo tardava em tomar a iniciativa de enfrentar o poderio romano e libertar o seu povo do jugo imperial. Perante a hesitação de Jesus, Judas quis forçá-Lo a agir, criando aquilo a que hoje chamaríamos um facto político. Vendo-se obrigado a enfrentar a autoridade romana, Jesus Cristo teria, por fim, que fazer apelo aos seus poderes sobrenaturais e expulsar o invasor, deixando os judeus tornarem-se senhores dos seus destinos. Teria, por fim, que se revelar como o Messias Libertador, como Judas acreditava que o era e o desejeva.
O erro de Judas é o erro na análise da economia da redenção; não é o erro da traição.
De resto, a hipótese da traição encaixa mal no relato bíblico. Com efeito, como explicar, que uma figura pública como Jesus, que era seguido nas ruas por um largo número de devotos, que não estava escondido, precisasse de ser denunciado? Como explicar que, possuído por Satanás, recebidos os trinta dinheiros, Judas não os fosse gozar, mas, em vez disso, tivesse corrido a enforcar-se?
Repito: o pecado de Judas não foi a traição; foi o ter querido conhecer e influenciar os insondáveis desígnios da Providência.


Fonte: Jorge Luis Borges - Três versões de Judas.


(António Cardoso da Conceição)

*

António Cardoso da Conceição deu-nos a conhecer o texto de Jorge Luís Borges - "Três versões de Judas" mas não fez a ligação que se impunha com o "Dilema do Prisioneiro". Pressinto que a exploração deste tema por esse caminho pode trazer conclusões interessantes. Haverá alguém aí que queira fazer essa exploração ?

(Manuel Galvão)

28.12.04
 


COISAS SIMPLES


Boucher
 


EARLY MORNING BLOGS 395

A Happy Birthday


This evening, I sat by an open window
and read till the light was gone and the book
was no more than a part of the darkness.
I could easily have switched on a lamp,
but I wanted to ride this day down into night,
to sit alone and smooth the unreadable page
with the pale gray ghost of my hand.


(Ted Kooser)

*

Bom dia!

27.12.04
 


DETALHES

Os que sabem, sabem que é nos detalhes que o demónio está.

Keats é um exemplo dessa atenção. Descrevia-se a si próprio com detalhe – “The fire is at its last click - I am sitting here with my back to it with one foot rather askew upon the rug and the other with the heel a little elevated upon the carpet...” – e pedia aos amigos e familiares que, nas suas cartas, descrevessem com total rigor como estavam naquele preciso momento: estás sentado(a), de pé, em que parte da sala, em que posição, etc. Keats vai mais longe e acredita que o conhecimento dos detalhes do momento concreto da criação são reveladores para a compreender:

“Could I see the same thing done of any great Man long since dead it would be a great delight: as to know in what position Shakespeare sat when he began "To be or not to be".

A materialidade da descrição se levada longe – e os detalhes são insaciáveis - conduz a fala ou a escrita a tornarem-se quase inevitavelmente eróticos. Vox de Nicholson Baker começa assim “What are you wearing?" he asked.”, uma pergunta do mesmo tipo das de Keats, mesmo quando não parece.
 


APRENDENDO COM DIDEROT SOBRE O AMOR, AS CINZAS E A LEI DA AFINIDADE

"Le reste de la soirée s'est passé à me plaisanter sur mon paradoxe. On m'offrait de belles poires qui vivaient, des raisins qui pensaient. Et moi, je disais : ceux qui se sont aimés pendant leur vie et qui se font inhumer l'un à côté de l'autre ne sont peut-être pas si fous qu'on pense. Peut-être leurs cendres se pressent, se mêlent et s'unissent. Que sais-je ? Peut-être n'ont-elles pas perdu tout sentiment, toute mémoire de leur premier état. Peut-être ont-elles un reste de chaleur et de vie dont elles jouissent à leur manière au fond de l'urne froide qui les renferme. Nous jugeons de la vie des éléments par la vie des masses grossières. Peut-être sont-ce des choses bien diverses. On croit qu'il n'y a qu'un polype ; et pourquoi la nature entière ne serait-elle pas du même ordre ? Lorsque le polype est divisé en cent mille parties, l'animal primitif n'est plus, mais tous ses principes sont vivants.


O ma Sophie, il me resterait donc un espoir de vous toucher, de vous sentir, de vous aimer, de vous chercher, de m'unir, de me confondre avec vous, quand nous ne serions plus. S'il y avait dans nos principes une loi d'affinité, s'il nous était réservé de composer un être commun ; si je devais dans la suite des siècles refaire un tout avec vous ; si les molécules de votre amant dissous venaient à s'agiter, à se mouvoir et à rechercher les vôtres éparses dans la nature ! Laissez-moi cette chimère. Elle m'est douce. Elle m'assurerait l'éternité en vous et avec vous."
 


APRENDENDO COM S. TIAGO SOBRE A LÍNGUA

1
Meus irmãos, não sejam muitos de vocês mestres, pois vocês sabem que nós, os que ensinamos, seremos julgados com maior rigor.
2
Todos tropeçamos de muitas maneiras. Se alguém não tropeça no falar, tal homem é perfeito, sendo também capaz de dominar todo o seu corpo.
3
Quando colocamos freios na boca dos cavalos para que eles nos obedeçam, podemos controlar o animal todo.
4
Tomem também como exemplo os navios; embora sejam tão grandes e impelidos por fortes ventos, são dirigidos por um leme muito pequeno, conforme a vontade do piloto.
5
Semelhantemente, a língua é um pequeno órgão do corpo, mas se vangloria de grandes coisas. Vejam como um grande bosque é incendiado por uma pequena fagulha.
6
Assim também, a língua é um fogo; é um mundo de iniquidade. Colocada entre os membros do nosso corpo, contamina a pessoa por inteiro, incendeia todo o curso de sua vida, sendo ela mesma incendiada pelo inferno.
7
Toda espécie de animais, aves, répteis e criaturas do mar doma-se e é domada pela espécie humana;
8
a língua, porém, ninguém consegue domar. Ela é um mal incontrolável, cheio de veneno mortífero.
9
Com a língua bendizemos ao Senhor e Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus.
10
Da mesma boca procedem bênção e maldição. Meus irmãos, isto não pode ser assim!
11
Acaso pode de uma mesma fonte sair água doce e água amarga?
12
Meus irmãos, pode uma figueira produzir azeitonas ou uma videira, figos? Da mesma forma, uma fonte de água salgada não pode produzir água doce.
13
Quem é sábio e tem entendimento entre vocês? Que o demonstre por seu bom procedimento, mediante obras feitas com a humildade que provém da sabedoria.
14
Contudo, se vocês abrigam no coração inveja amarga e ambição egoísta, não se gloriem disso, nem neguem a verdade.
15
Esta "sabedoria" não vem do céu, mas é terrena, não é espiritual e é demoníaca.
16
Pois onde há inveja e ambição egoísta, aí há confusão e toda espécie de males.
17
Mas a sabedoria que vem do alto é antes de tudo pura; depois, pacífica, amável, compreensiva, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sincera.
18
O fruto da justiça semeia-se em paz para os pacificadores.
   


AR PURO


P. Balke
 


EARLY MORNING BLOGS 394

C'était sur un chemin crayeux


C'était sur un chemin crayeux
Trois châtes de Provence
Qui s'en allaient d'un pas qui danse
Le soleil dans les yeux.

Une enseigne, au bord de la route,
- Azur et jaune d'oeuf, -
Annonçait : Vin de Châteauneuf,
Tonnelles, Casse-croûte.

Et, tandis que les suit trois fois
Leur ombre violette,
Noir pastou, sous la gloriette,
Toi, tu t'en fous : tu bois...

C'était trois châtes de Provence,
Des oliviers poudreux,
Et le mistral brûlant aux yeux
Dans un azur immense.


(Paul-Jean Toulet)

*

Bom dia!

26.12.04
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: DOCILIDADE

"Quem não é dócil, senhores, não pode ser douto; antes, a mesma docilidade é um sinónimo da ciência. Disse Deus a Salomão que pedisse o que quisesse, porque tudo lhe concederia. O que pediu foi docilidade: Dabis servo tuo cor docile ; e o que o Senhor lhe concedeu foi a maior sabedoria que nunca teve, nem terá outro homem: Dedi tibi cor sapiens, et intelligens in tantum, ut nullus ante te similis tui fuerit nec posto te surrecturus sit . Pois, se Deus tinha prometido a Salomão que lhe daria o que pedisse, e ele pediu docilidade, como lhe deu ciência? Por isso mesmo. Porque docilidade e ciência são a mesma coisa, e não podia Deus, segundo a sua promessa, deixar de lhe dar ciência, tendo ele pedido docilidade. Assim lho disse o mesmo Deus: Ecce leci tibi secundum sermones tuos . A ciência nenhuma outra coisa é que o conhecimento claro de muitas verdades, umas em si, que são os princípios, e outras que delas se seguem, que são as conclusões. E aqueles que não têm docilidade, — como são os tenazes do próprio juízo, e ferrados à sua opinião — ainda que a verdade se lhes represente, não são capazes de a receber. Por isso estes tais cada vez sabem menos, e todas as vezes que a opinião passa a erro, perseveram nele. "
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: O GRÃO DE AREIA QUE TE ATIREI



Esta fotografia é a menos pretensiosa das fotografias. Não tem vaidade, não tem soberba, não tem tumulto, não é clássica, não é moderna, não tem cores. É o retrato de uma coisa com valor imenso: o retrato do grão de areia que se atirou para Titã. Ele está lá, brilhante, na parte de cima da fotografia, um ponto de nada, no meio do nada, uma pequena sonda errante, embrulhada em papel de prata dourado, parecendo vagamente um chapéu. Lá vai, sem saber muito bem a quê. Lançado pela esperança de saber, lançado pela nossa qualidade mais humana: curiosidade, curiosidade, perturbante curiosidade. Como é? De que é feito? Como respira? Pertencem-nos aqueles gases, aquele solo, aquela atmosfera, e, talvez, aquela vida? O meu grão de areia paga para ver. Sofrerá no caminho, pode destruir-se, pode durar pouco, mas não procura o conforto, nem a segurança, nem um pouso certo. Procura uma verdade mais pura que as outras, mais primitiva, menos poluída. Valente ponto de luz, duro grão de areia, sinal da mão que o deitou, tão longe para o que não se conhece. O teu caminho é o meu. Nenhum outro.
 


OUVINDO



Nat King Cole e Rachmaninov tocado por Stephen Hough.
 


AR PURO


Peder Balke
 


EARLY MORNING BLOGS 393

Dark Matter


Scientists at the University of Rome, according to the New York Times, may have finally detected dark matter, the stuff that roughly eighty percent of the universe may be made of.

Like certain superheroes, particles
of dark matter pass through other matter
unimpeded. But anti-gravity, scientists
explain, "still cannot be expected

to reverse the course of a falling apple,
or drive an inflating wedge of nothingness
between lovers." Which may be why
the hero works best alone.

Pals and sidekicks can be helpful,
but women are too curious, too quick
to believe the men they're with
must be, at heart, different men.

Of course they're right. And the hero
is in trouble if he doesn't
keep his other self a secret.
He wants to be in love, to offer

all the confidences a lover should.
But he has to save the world,
again and again. Thus it seems true
that a wedge of nothingness

divides the man and the woman,
but also that the falling of an apple
is irreversible.
The hero must expect evil

to continue. He cannot afford
to be surprised by strangeness.
Or ever expect a life in which
he could only be himself.


(Lawrence Raab)

*

Bom dia!
 


NUMA MENSAGEM DE NATAL

esta frase, «Não é fácil perdoar, não é fácil compreender quem tenha atitudes que nós não tomaríamos, mas o Natal é isso mesmo tentar fazer o que não fazemos normalmente todos os dias», mostra uma obsessão. Nem numa mensagem, que é suposto ser proferida na maior das neutralidades e distância face à luta política, deixam de vir ao de cima a incubadora e as facadas. Não há em S. Bento um espelho que fale a verdade?

25.12.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: A NOSSA CASA



Se nós fôssemos pessoas de medos, o medo estaria em toda esta imagem. Há ali uma dimensão que não é a nossa. Há ali um frio que não é o nosso. Há ali uma força que não é a nossa. Há ali uma perfeição que não é a nossa. Toda a estranheza do mundo está ali. Olhando bem, tudo nos é alheio, tudo é inumano e o inumano é o que mais tememos. Medo primeiro, medo ancestral, medo geneticamente inscrito, medo do que não sabemos, do que não controlamos. Nós confiantes que controlamos, ou seja, possuímos, a nossa pequena terra, que não há mar, nem gelo, nem tempestade, nem rio, nem montanha que não possamos visitar, conquistar, domar com a vontade e a coragem, chegamos aqui e c’est toute une autre affaire!

Claro que há a beleza, que parece a mais humana de todas as sensações. Kant já tinha percebido que não era bem assim, que há beleza que não é humana, que há beleza que infunde o terror. Será que queremos mesmo vê-la? Será que confrontados com este mundo, que é o mundo, que é o que está lá fora, na esquina do nosso pequeno sistema solar, verdadeiramente queremos mais do que saber? Eu sei que sim. Queremos saber, mas vamos querer habitar. Talvez a nossa casa se faça sempre contra o medo. Talvez.

(Da sonda Cassini muito longe, esta foto para o Natal dos terrestres.)

24.12.04
 


BOAS FESTAS COM COISAS SIMPLES E CERTAS


Paula Modershon-Becker
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: ESTRELAS

"Começando pelo amar e veneração dos gentios, aquela estrela que trouxe os Magos a Cristo era uma figura celestial e muito ilustre dos pregadores da fé. Assim o diz S. Gregório, e os outros padres camumente mas a mesma estrela o disse ainda melhor. Que ofício foi o daquela estrela? Alumiar, guiar e trazer homens a adorar a Cristo, e não outros homens, senão homens infiéis e idólatras, nascidos e criados nas trevas da gentilidade. Pois, esse mesmo é a ofício e exercício, não de quaisquer pregadores, senão daqueles pregadores de que falamos, e por isso propriamente estrelas de Cristo. Repara muito S. Máximo, em que esta estrela, que guiou os magos, se chame particularmente estrela de Cristo: Stella ejus e argúi assim: Todas as outras estrelas não são, também, estrelas de Cristo, que como Deus as criou? Sim, são. Pois, por que razão esta estrela, mais que as outras, se chama especialmente estrela sua: Stella ejus? Porque as outras estrelas foram geralmente criadas para tochas do céu e do mundo: esta foi criada especialmente para pregadora de Cristo: Quia quamvis omnes ab eo creatae stellae ipsius sint, haec tamen propna Christi erat, quia specialiter Christi nuntiabat adventum. – Muitas outras estrelas há naquele hemisfério muito claras nos resplendores e muita úteis nas influências, coma as do firmamento, mas estas de que falamos são própria e especialmente de Cristo, não só pelo nome de Jesus, com que se professam por suas, mas porque afim, a instituto e o ofício para que foram criadas, é o mesmo que o da estrela dos Magos, para trazer infiéis e gentios à fé de Cristo. Ora, se estas estrelas fossem tão diligentes, tão solícitas e tão pontuais em acompanhar, e guiar, e servir aos gentios, como a que acompanhou, guiou e serviu aos Magos, não teriam os mesmos gentios muita razão de as quererem e estimarem, de sentirem muita sua falta, e de se alegrarem e consolarem muita com sua presença? Assim o fizeram os Magos, e assim o diz o evangelista, não acabando de encarecer este contentamento: Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde. Pois, vamos agora seguindo os passas daquela estrela, desde o oriente até ao presépio, e veremos como as que hoje vemos tão mal vistas e tão perseguidas, não só imitam e igualam em tudo a estrela dos Magos, mas em tudo a excedem com grandes vantagens."
 


COISAS SIMPLES


Harriet Backer
 


EARLY MORNING BLOGS 392

Ladainha dos póstumos natais


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito.


(David Mourão-Ferreira)

*

Bom dia!

23.12.04
 


ESTÁ NA ALTURA



de partir de novo.
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: A VITÓRIA DE CATARINA

"Se na consideração do número venceu Santa Catarina as Virgens sábias do Evangelho, reduzindo ela só a cinquenta, quando elas, sendo cinco, não puderam nem souberam reduzir a uma, não foi menos ilustre a sua vitória na consideração do sexo. As virgens, sendo mulheres, não ensinaram a uma mulher; Catarina, sendo mulher, ensinou a cinquenta homens. O apóstolo São Paulo fiou tão pouco do género feminino, que a todas as mulheres proibiu o ensinar: Docere autem mulieri non permitto. E que razão teve São Paulo para um preceito tão universal e tão odioso a metade do género humano, e na parte mais sensitiva dele? A razão que teve foi a maior de todas as razões, que é a experiência: Adam non est seductus, mulier autem seducta in praevaricatione fuit (1 Tim. 2,14): Em Adão e Eva — diz o Apóstolo — se viu a diferença que há entre o entendimento do homem e o da mulher — porque Eva foi enganada, Adão não. — Ensine logo Adão, ensine o homem; Eva e a mulher, não ensine. O que só lhe convém, e o que lhe mando, é que aprenda e cale: Mulier in silentio discatt. Segundo este preceito, que mais parece natural que positivo, pois o Apóstolo o deduz desde Adão e Eva, Catarina havia de aprender e calar, como mulher, e os filósofos ensinar, como homens, como filósofos, como graduados nas suas ciências, e como os primeiros e mais insignes mestres delas. Mas que Catarina fale e os filósofos ouçam, que Catarina ensine e os filósofos aprendam, que Catarina não só dispute, mas defina, não só argumente, mas conclua, não só impugne, mas vença, e tantos homens, e tais se reconheçam e confessem vencidos, foi vitória que de sexo a sexo só teve um exemplo, e de entendimento a entendimento nenhum."
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: VOLTANDO A CASA



(A protecção térmica da Opportunity, que a sonda voltou a encontrar ao inverter o caminho que a levou à cratera.)

- Aqui estou, voltando a casa, pisando o mesmo caminho, vendo as mesmas coisas com os meus velhos olhos.

- As mesmas?

- Não sei. As mesmas. A mudança é uma ilusão.

- Isso é um ilusão ainda maior. Tudo muda.

- Engano. Eu sou uma adepta tardia de Parménides, num mundo em que abundam os partidários daquele que fala do rio que corre. Em Marte a água já se foi.

- Tens a certeza?

- Tenho. Nunca nada muda no tempo, as pessoas confundem mudança com destino. Não há destino, só encontros. Não há tempo, só há momentos. Não há vento, só pedras que rolam.

- Para onde?

- Para o seu sítio. Para o Lugar Universal, para a gravidade. Não sei. O meu é aqui.
 


COISAS SIMPLES: ARRUMAR


Leroy de Barde, Reúnions d'oiseaux étrangers placés dans les différentes caisses

22.12.04
 


EARLY MORNING BLOGS 391

Saison fidèle aux coeurs qu'importune la joie


Saison fidèle aux coeurs qu'importune la joie,
Te voilà, chère Automne, encore de retour.
La feuille quitte l'arbre, éclatante, et tournoie
Dans les forêts à jour.

Les aboiements des chiens de chasse au loin déchirent
L'air inerte où l'on sent l'odeur des champs mouillés.
Gonflés d'humidité, les prés mornes soupirent
En cédant sous les pieds.

Les oiseaux voyageurs, par bandes, dans les nues,
Emigrent vers le Sud et les soleils plus chauds.
Les laboureurs, penchés sur les lentes charrues,
Couronnent les coteaux.

Le soir, à l'horizon, parfois le ciel est rose ;
Des troupes de corbeaux traversent le couchant.
Dans le creux des sillons de la plaine repose,
Pensive, une eau d'argent.


(Charles Guérin)

*

Bom dia, belo dia!
 


COISAS SIMPLES


Edouard Boubat
 


ANTOLOGIA DA TRAIÇÃO: O COSTUME

Why It Often Rains in the Movies


Because so much consequential thinking
happens in the rain. A steady mist
to recall departures, a bitter downpour
for betrayal. As if the first thing
a man wants to do when he learns his wife
is sleeping with his best friend, and has been
for years, the very first thing
is not to make a drink, and drink it,
and make another, but to walk outside
into bad weather. It's true
that the way we look doesn't always
reveal our feelings. Which is a problem
for the movies. And why somebody has to smash
a mirror, for example, to show he's angry
and full of self-hate, whereas actual people
rarely do this. And rarely sit on benches
in the pouring rain to weep. Is he wondering
why he didn't see it long ago? Is he wondering
if in fact he did, and lied to himself?
And perhaps she also saw the many ways
he'd allowed himself to be deceived. In this city
it will rain all night. So the three of them
return to their houses, and the wife
and her lover go upstairs to bed
while the husband takes a small black pistol
from a drawer, turns it over in his hands,
then puts it back. Thus demonstrating
his inability to respond to passion
with passion. But we don't want him
to shoot his wife, or his friend, or himself.
And we've begun to suspect
that none of this is going to work out,
that we'll leave the theater feeling
vaguely cheated, just as the movie,
turning away from the husband's sorrow,
leaves him to be a man who must continue,
day after day, to walk outside into the rain,
outside and back again, since now there can be
nowhere in this world for him to rest.


(Lawrence Raab)

21.12.04
 


O "MEME" DE HOJE

é a palavra "patética" para designar a conferência do almoço. Já fez o seu caminho.

Outro "meme" que caminhou bastante foi a fotografia de António Pedro Ferreira, publicada no Expresso.
 


BIBLIOFILIA


W.G.Sebald, After Nature, New York, Modern Library, 2002

...et iam summa procul villarum
culmina fumant maioresque cadunt de montibus umbrae.


Virgílio
 


CONFERÊNCIA DE IMPRENSA PATÉTICA

desesperada. A justificação do que se passa com recortes de jornais estrangeiros, com as faltas dos outros. E depois aquele sorriso que emerge no Primeiro-ministro sempre que fala dos "outros", dos "alguns", como se viesse lá do fundo um prazer da vitimização e de culpa alheia. Onde Bagão Felix se zanga, Santana Lopes sorri quando ataca os adversários reais e imaginados.

(O inadmissível corte da transmissão directa da conferência de imprensa pela RTP, antes de se saber qual era a solução do problema do défice… Serviço público.)

Nota suplementar: a RTP não podia saber que afinal nada de concreto ia ser anunciado quando interrompeu a emissão, portanto fez mal. Se o soubesse isso poderia justificar não só o corte, como até a não-transmissão. Não tendo objecto que não fosse o governo exercer o "contraditório" face aos seus críticos, ou seja Santana Lopes e Bagão Felix balbuciarem umas desculpas - e eu garanto-vos que não gosto de usar a palavra pejorativa "balbuciar" se não fosse mesmo assim - e dizerem que o governo português faz os mesmos truques orçamentais dos outros, a conferência torna-se ainda mais penosa. Está de facto a bater-se num fundo muito fundo.
 


O NOSSO CAOS



continua todos os dias. Sair disto vai ser complicado.
 


ANTOLOGIA DA TRAIÇÃO: AS PORTAS DA TRAIÇÃO

Em muitos castelos há portas da traição. Todas têm uma lenda, uma história de traição. Ficamos a saber assim que as portas são dadas a estas actividades e ficam por isso malditas. Quem as atravessa sente, sente que é só uma questão de tempo até que desça o traidor com as chaves da confiança e suba o furtivo para, conquistando, acabar por desprezar o traidor. Foi sempre assim, será sempre assim. A traição é a actividade que mais corrói.
 


OUVINDO (2)

O mesmo. A magnífica Frehel, a bela Pervenche, retratada por Colette, seduzida por Roberty (estes nomes...), prematuramente envelhecida, ganhando a sua "gueule de mère maquerelle" , que morreu, miserável e esquecida, cheia de bebida e drogas num hotel de Pigalle, a cantar antes da "excepção cultural":

Y'en a qui vous parlent de l'Amérique
Ils ont des visions de cinéma
Ils vous disent " quel pays magnifique "
Notre Paris n'est rien auprès d'ça
Ces boniments-là rendent moins timide,
Bref, l'on y part, un jour de cafard...
Ça fera un de plus qui, le ventre vide
Le soir à New-York cherchera un dollar
Au milieu des gueus's, des proscrits,
Des émigrants aux cœurs meurtris;
Il pensera, regrettant Paris

Où est-il mon moulin de la Place Blanche ?
Mon tabac et mon bistrot du coin ?
Tous les jours étaient pour moi Dimanche !
Où sont-ils les amis les copains ?
Où sont-ils tous mes vieux bals musette ?
Leurs javas au son de l'accordéon
Où sont-ils tous mes repas sans galette ?
Avec un cornet de frites à dix ronds
Où sont-ils donc ?

D'autres croyant gagner davantage
Font des rêves d'or encore plus beaux
Pourquoi risquer un si long voyage
Puisque Paris est plein de gogos?
On monte une affaire colossale,
Avec l'argent du bon populo,
Mais un jour, crac...
c'est le gros scandale :
Monsieur courra ce soir au dépôt !
Et demain on le conduira
Pour dix années à Nouméa.
Encore un de plus qui dira :

Où est-il mon moulin de la Place Blanche ?
Mon tabac et mon bistrot du coin ?
Tous les jours étaient pour moi Dimanche !
Où sont-ils les amis les copains ?
Où sont-ils tous mes vieux bals musette ?
Leurs javas au son de l'accordéon
Où sont-ils tous mes repas sans galette ?
Avec un cornet de frites à dix ronds
Où sont-ils donc ?

Mais Montmartre semble disparaître
Car hélas de saison en saison
Des Abbesses à la Place du Tertre,
On démolit nos vieilles maisons.
Sur les terrains vagues de la butte
De grandes banques naîtront bientôt,
Où ferez-vous alors vos culbutes,
Vous, les pauvres gosses à Poulbot ?
En regrettant le temps jadis
Nous chanterons, songeant à Salis,
Montmartre ton " De Profundis ! "

Où est-il mon moulin de la Place Blanche ?
Mon tabac et mon bistrot du coin ?
Tous les jours étaient pour moi Dimanche !
Où sont-ils les amis les copains ?
Où sont-ils tous mes vieux bals musette ?
Leurs javas au son de l'accordéon
Où sont-ils tous mes repas sans galette ?
Avec un cornet de frites à dix ronds
Où sont-ils donc ?
 


OUVINDO




A França deveria ser completamente insuportável nos anos trinta, mas fazia bom cinema e boas canções. Vento fresco? Aqui está: a Arletty a cantar "J'enleve ma liguette", Chevalier o "Chapeau de Zozo", Ray Ventura "Tout va trés bien madame la marquise" (que devia ser o hino do sindicato das empregadas domésticas) e Jean Murat "Les gars de la Marine" do filme Le Capitaine Craddock (1931). Tudo mais extinto que os dinossauros.

Les gars de la Marine

Quand on est matelot
On est toujours sur l'eau.
On visite le monde,
C'est l'métier le plus beau !
Du Pôl' Sud au Pôl' Nord,
Dans chaque petit port,
Plus d'une fille blonde
Nous garde ses trésors.
Pas besoin de pognon.
Mais comm' compensation,
À toutes nous donnons
Un p'tit morceau d'nos pompons !

{Refrain:}
Voilà les gars de la marine,
Quand on est dans les cols bleus
On n'a jamais froid aux yeux.
Partout du Chili jusqu'en Chine,
On les r'çoit à bras ouverts,
Les vieux loups d' mer.
Quand une fille les chagrine
Ils se consol'nt avec la mer !
Voilà les gars de la marine,
Du plus p'tit jusqu'au plus grand,
Du moussaillon au commandant.

Les amours d'un col bleu,
Ça n'dur' qu'un jour ou deux.
À pein' le temps d'se plaire
Et de se dire adieu !
On a un peu d'chagrin !
Ça passe comme un grain !
Les plaisirs de la terre...
C'est pas pour les marins !
Nous n'avons pas le droit
De vivre sous un toit,
Pourquoi une moitié ?
Quand on a le monde entier !

{au Refrain}
 


POEIRA DE 21 DE DEZEMBRO

Hoje, há cento e cinquenta e quatro anos, Tolstoy escreveu no seu diário: “não devo ler romances”. Fez-lhe bem, conseguiu escrever alguns. Oitenta e nove anos mais tarde, também hoje, Cesare Pavese escrevia: “o amor é a forma mais barata de religião”. Deve haver por isso um espírito do dia. Tolstoy amava a “humanidade” o que significava que não amava ninguém, e talvez por isso foi capaz de escrever verdadeiras histórias de amor como esta.

 


COISAS SIMPLES


P. Bonnard
 


EARLY MORNING BLOGS 390

La destruction

Sans cesse à mes côtés s'agite le Démon ;
Il nage autour de moi comme un air impalpable ;
Je l'avale et le sens qui brûle mon poumon
Et l'emplit d'un désir éternel et coupable.

Parfois il prend, sachant mon grand amour de l'Art,
La forme de la plus séduisante des femmes,
Et, sous de spécieux prétextes de cafard,
Accoutume ma lèvre à des philtres infâmes.

Il me conduit ainsi, loin du regard de Dieu,
Haletant et brisé de fatigue, au milieu
Des plaines de l'Ennui, profondes et désertes,

Et jette dans mes yeux pleins de confusion
Des vêtements souillés, des blessures ouvertes,
Et l'appareil sanglant de la Destruction !

(Baudelaire)

*

Bom dia!
 


ANTOLOGIA DA TRAIÇÃO: JUDAS

21 Tendo Jesus dito isto, turbou-se em espírito, e afirmou, dizendo: Na verdade, na verdade vos digo que um de vós me há de trair.
22 Então os discípulos olhavam uns para os outros, duvidando de quem ele falava.
23 Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus.
24 Então Simão Pedro fez sinal a este, para que perguntasse quem era aquele de quem ele falava.
25 E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-lhe: Senhor, quem é?
26 Jesus respondeu: É aquele a quem eu der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deu a Judas Iscariotes, filho de Simão.
27 E, após o bocado, entrou nele Satanás. Disse, pois, Jesus: O que fazes, faze-lo depressa.
28 E nenhum dos que estavam assentados à mesa compreendeu a que propósito lhe dissera isto.
29 Porque, como Judas tinha a bolsa, pensavam alguns que Jesus lhe tinha dito: Compra o que nos é necessário para a festa; ou que desse alguma coisa aos pobres.
30 E, tendo Judas tomado o bocado, saiu logo. E era já noite.




Este fragmento do Evangelho de S. João é um dos grandes textos sobre a traição. A sequência dramática está toda feita sobre a mentira, o mal-entendido, o engano. Jesus anuncia a traição aos apóstolos, mas não diz quem o traiu. Estes ficam curiosos, mas não perguntam. Para eles a ideia de traição era tão insuportável que temiam falar dela.

Fosse qual fosse o traidor, era um deles, um amigo, um companheiro. A traição, rompendo a identidade de um dos que comiam à mesma mesa, conspurcava tudo à volta. Quando ganham coragem para perguntar, fazem-no tão a medo e de forma tão ambígua, que não percebem o sentido da resposta. Levantaram-se da mesa convencidos que não era bem aquilo que tinham ouvido.

Jesus deu o pão a Judas, mas o pão vinha molhado, como se o demónio estivesse nessa humidade. “Após o bocado, entrou nele Satanás”, porque este bocado de pão era o contrário do pão sacramental que Jesus ensinara os discípulos a tomar. No Pão estava Deus, no pão molhado estava Satanás. O pão também era capaz de trair.

Então Jesus diz palavras ainda mais enigmáticas: “o que fazes, faze-lo depressa”. Porque é que Jesus disse isto a Judas? Porque para Jesus também era insuportável o espectáculo da traição. Se trais, trai já, exerce já o ofício da traição, porque, mesmo para Jesus, a presença do traidor e a visão do acto da traição perturbam.

Quando Judas saiu, com Satanás dentro dele, era noite. Fez-se noite.

20.12.04
 


BIBLIOFILIA PARA COLECCIONADORES







O último número da Granta tem um ensaio sobre "The Collector", neste caso Joseph Mitchell. Mitchell, depois de escrever Joe Goulds's Secret, pouco mais escreveu e menos publicou. Dedicava-se a andar pelos prédios abandonados ou em demolição do sul de Manhattan a recolher pregos, bocados de estuque, placas de ferro forjado, velhas tabuletas, números de portas. Recolhia-os e depois classificava-os como um taxidermista. Há fotografias das peças e dos rótulos. Uma forma de loucura mansa, que os coleccionadores conhecem.

*

"Acho que está a confundir taxidermia (arte de preparar cadáveres para os conservar...) com taxinomia (arte de classificar)."

A.M.R.

*

Obrigado pela precisão. Neste caso era intencional. Podia ser "abria-os como um taxidermista e classificava-os como um taxinomista", mas não sei como se abre um prego.
 


UM MUNDO MUITO PRÓPRIO

O índice do livro Barnabé, que antologia os textos do blogue, é um retrato muito curioso do mundo dos seus autores. Um dos mais loquazes protagonistas da política portuguesa, Francisco Louça, não tem uma entrada sequer. Nem Fernando Rosas, Luís Fazenda, Ana Drago, merecem uma palavra. A excepção são duas escassas entradas para Miguel Portas. Assim é fácil.

Mas há mais: as duas pessoas mais citadas são George Bush e eu. Estranho mundo o deles. Onde será?
 


VENTO FRIO

vem. Rápido.
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: TEMOR

"Toda a santidade e toda a virtude deste mundo, bem considerada, é temor. A maior e mais qualificada façanha que neste mundo se fez por Deus foi a de Abraão. Leva Abraão seu filho Isac ao monte, ata-o sobre a lenha do sacrifício, tira pela espada para lhe cortar a cabeça; manda-lhe Deus suspender o golpe, e diz estas palavras: Nunc cognovi quod times Deum (Gên. 22, 12): Agora conheço, Abraão, que temes a Deus. — Que temes a Deus? Pois, como assim? Quando Abraão por amor de Deus sacrifica seu próprio filho, quando Abraão por amor de Deus corta as esperanças de sua casa, quando Abraão por amor de Deus mata a seu mesmo amor, parece que então havia de dizer Deus: Agora, Abraão, conheci que me amas. Mas: agora conheci que me temes? Sim, porque, bem considerada aquela façanha de Abraão, e vista por dentro, como Deus a via, teve mais de temor que de amor. Bem via Abraão que matar a Isac era matar-se a si mesmo, mas via também que se o não matava, desobedecia, que se desobedecia, ofendia a Deus, que se ofendia a Deus, condenava-se, e este temor de se não condenar o pai, foi o que pôs a espada na garganta ao filho. Quando o pai e o filho iam caminhando para o sacrifício, diz o texto que levava Abraão em uma mão a espada, e na outra o fogo: Ipse vero portabat in manibus ignem et gladium (Gên. 22,6). Oh! que bons dois espelhos para aquela ocasião! Na mão da espada ia a morte do filho; na mão do fogo ia o inferno do pai. Se obedeces, hás de matar; se desobedeces, hás de arder. O amor via-se ao espelho da espada, o temor via-se ao espelho do fogo. — É possível, pai, que hás de matar o teu filho único e amado? E que a vida e o sangue que lhe deste a hás de derramar com tuas próprias mãos? Não há de ser assim: viva Isac, e caia rendido o braço da espada. Mas, se não morrer Isac — replicava o temor — se Isac sacrificado se não abrasa neste fogo, há de ir Abraão, por desobediente, arder no do inferno. Ou arder Abraão, ou morrer Isac. Oh! que cruel dilema para um pai! Mas, passar a espada pela garganta de Isac, é um momento — instava o temor — e arder Abraão no inferno, é uma eternidade: pois, padeça um instante o filho, para que não pene eternamente o pai. Torne-se a levantar o braço da espada; e já ia descarregando resolutamente o golpe, mas acudiu Deus. E como toda esta resolução de tirar Abraão a vida a seu filho foi por temor de não ofender a Deus e se condenar, por isso Deus não disse: — Agora conheci, Abraão, que me amas, senão, agora conheci que me temes: Nunc cognovi quod times Deum."
 


COISAS SIMPLES


Jan Bruegel
   


EARLY MORNING BLOGS 389

SOME TREES


These are amazing: each
Joining a neighbor, as though speech
Were a still performance.
Arranging by chance

To meet as far this morning
From the world as agreeing
With it, you and I
Are suddenly what the trees try

To tell us we are:
That their merely being there
Means something; that soon
We may touch, love, explain.

And glad not to have invented
Some comeliness, we are surrounded:
A silence already filled with noises,
A canvas on which emerges

A chorus of smiles, a winter morning.
Place in a puzzling light, and moving,
Our days put on such reticence
These accents seem their own defense.


(John Ashbery)

*

Bom dia!
 


BIBLIOFILIA

Frederico Lourenço, Amar Não Acaba, Livros Cotovia, 2004

Leiam, leiam, leiam este livro estranho, memória autobiográfica da adolescência, escrita a vinte anos de distância – muito pouco. Um retrato de uma família portuguesa pouco portuguesa, que deixou construir à sua volta uma teia cultural vivida nas suas formas mais “pesadas”: a ópera, a música, as línguas, o comunitarismo panteísta de Lanza del Vasto. Este texto é uma surpresa: não sabia que alguém vivia assim entre nós.
O relato de Frederico Lourenço é umas vezes franco, outras vezes bizarro, pela densidade cultural que parece sempre excessiva. Pode-se viver assim? Pode-se viver sempre dentro do texto dos outros? Pode-se viver sempre dentro dos gestos do bailado, das palavras dos lied, do universo total e absoluto de Wagner? Pode-se viver, amar, face a presenças tão intensas e tão inequívocas como as da grande arte? Pode-se viver no meio da beleza transmitida pelas obras de arte sem que estas preencham todo o espaço do sentimento? O que é que sobra? Pode-se ser feliz num universo tão povoado de sentido? Duvido, mas também este livro não é sobre a felicidade, mas sim sobre o deslumbramento.

19.12.04
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: MUNDUM IN PARVO, MAGNUM

"Os filósofos antigos chamaram ao homem mundo pequeno; porém, S. Gregório Nazianzeno, melhor filósofo que todos eles, e por excelência o Teólogo, disse que o mundo comparado com o homem é o pequeno, e o homem, em comparação do mundo, o mundo grande: Mundum in parvo, magnum. — Não é o homem um mundo pequeno que está dentro do mundo grande, mas é um mundo, e são muitos mundos grandes, que estão dentro do pequeno. Baste por prova o coração humano, que, sendo uma pequena parte do homem, excede na capacidade a toda a grandeza e redondeza do mundo. Pois, se nenhum homem pode ser capaz de governar toda esta maquina do mundo, que dificuldade será haver de governar tantos homens, cada um maior que o mesmo mundo, e mais dificultoso de temperar que todo ele? A demonstração é manifesta. Porque nesta máquina do mundo, entrando também nela o céu, as estrelas tem seu curso ordenado, que não pervertem jamais; o sol tem seus limites e trópicos, fora dos quais não passa; o mar, com ser um monstro indômito, em chegando às areias pára; as árvores, onde as põem, não se mudam; os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar, os outros animais com a terra. Pelo contrário, o homem, monstro ou quimera de todos os elementos, em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma ambição nem apetite o farta: tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde e, como é maior que o mundo, não cabe nele. "
 


MOMENTOS

Um dirigente político que se quer afirmar sabe que nem sempre lhe passam à frente oportunidades de mostrar a diferença. A Sócrates surgiu uma e ele deitou-a fora: deveria demarcar-se de forma inteiramente clara das manigâncias, aliás já contumazes, do PS Porto, uma das organizações mais aparelhísticas de qualquer partido português, de usar Pinto da Costa como trunfo eleitoral contra Rui Rio. Pinto da Costa não está em posição diferente da do antigo deputado do PSD, Cruz Silva, e ,por ser uma personagem de maior relevo social, ainda mais rigor teria que haver. Sócrates calou-se para não perder os votos dos Super Dragões, ou pior ainda. Revelou-se.
 


A LER

De novo, as INDÚSTRIAS CULTURAIS, um bom exemplo de jornalismo especializado que complementa em tempo útil (uma forma "útil" do tempo real) o que (não) vem nos jornais.

Alguns textos de Luis Rainha no Blogue de Esquerda.

Louvor à imensa utilidade dos Frescos, mesmo quando não funcionam bem e estão pouco frescos.

A página do Clube dos Jornalistas. Pesem todas as objecções, o Clube dos Jornalistas tem realizado um trabalho de auto-reflexão sobre o jornalismo que nunca tinha sido feito com esta amplitude e variedade.
 


COISAS


Andy Warhol
 


EARLY MORNING BLOGS 388

Ici de mille fards la traïson se déguise


Ici de mille fards la traïson se déguise,
Ici mille forfaits pullulent à foison,
Ici ne se punit l'homicide ou poison,
Et la richesse ici par usure est acquise

Ici les grands maisons viennent de bâtardise,
Ici ne se croit rien sans humaine raison,
Ici la volupté est toujours de saison,
Et d'autant plus y plaît que moins elle est permise.

Pense le demeurant. Si est-ce toutefois
Qu'on garde encore ici quelque forme de lois,
Et n'en est point du tout la justice bannie.

Ici le grand seigneur n'achète l'action,
Et pour priver autrui de sa possession
N'arme son mauvais droit de force et tyrannie.


(Joachim du Bellay)

*

Bom dia!

18.12.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: CORES



Cores, um andar acima, outras cores, outro andar acima, novas cores. O que é que se respira nessas cores? Que atmosfera pertence a estas cores? Em Janeiro, quando descermos em Titã, vamos respirar este ar.
 


ANTOLOGIA DA TRAIÇÃO: EFIALTES

Efialtes é nome de demónio e de gigante. O meu é um homem. Borges escreveu sobre o demónio “Siempre es la pesadilla. / Su horror no es de este mundo." Mas não é este o meu traidor. O pesadelo não trai quem não sonha. O traidor é outro: Efialtes, natural da Tessália, traiu os 300 espartanos no desfiladeiro das Termópilas por ouro. Os 300 espartanos eram “iguais”, Efialtes era diferente. Ensinou a Xerxes um caminho que levava os persas à retaguarda da defesa grega. O traidor não recebeu a sua paga, porque Xerxes entretanto viu a sua frota destruída em Salamina. Xerxes mandou chicotear o mar, mas o mar não tinha costas. Como muitos traidores não pagou o preço da sua traição, embora pagasse com a vida uma querela menor com Atenades da Trácia. Mas um traidor está sempre morto antes de morrer. A traição é uma morte.

(A seguir: Judas)
 


UM RETRATO DO PODER: GOZO, PREOCUPAÇÃO, AMBIÇÃO



Esta fotografia de António Pedro Ferreira, publicada no Expresso da semana passada, é o melhor retrato do poder que temos. Tudo está certo, tudo bate certo. Escrevo sobre ela, considerando-a a melhor foto da semana, na Sábado.

 


APRENDENDO COM EMILY DICKINSON SOBRE A TRAIÇÃO

Sweet is the swamp with its secrets


Sweet is the swamp with its secrets,
Until we meet a snake;
'Tis then we sigh for houses,
And our departure take

At that enthralling gallop
That only childhood knows.
A snake is summer's treason,
And guile is where it goes.


(Emily Dickinson)
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA SOBRE O PÓ

"Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer: outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. - Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó.

Vamos, para maior exemplo e maior horror, a êsses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquêle pó foi Urbano, aquêle pó foi Inocêncio, aquêle pó foi Alexandre, e êste que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que êstes olhos que vêem, êstes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e êstes braços que se movem, êstes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sentitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar dêste tão importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção dêste pó, se digne de nos alcançar graça. Ave Maria. "
 


OUVINDO



Furacões pela manhã. Não está mal. Dias de Verão no Inverno. Não está mal.
 


COISAS SIMPLES


Andy Warhol
 


EARLY MORNING BLOGS 387

Mutability


We are as clouds that veil the midnight moon;
How restlessly they speed, and gleam, and quiver,
Streaking the darkness radiantly! -yet soon
Night closes round, and they are lost for ever:

Or like forgotten lyres, whose dissonant strings
Give various response to each varying blast,
To whose frail frame no second motion brings
One mood or modulation like the last.

We rest. -- A dream has power to poison sleep;
We rise. -- One wandering thought pollutes the day;
We feel, conceive or reason, laugh or weep;
Embrace fond woe, or cast our cares away:

It is the same! -- For, be it joy or sorrow,
The path of its departure still is free:
Man's yesterday may ne'er be like his morrow;
Nought may endure but Mutablilty.


(Percy Bysshe Shelley)

*

Bom dia!

17.12.04
 


A LER / A VER

No Jaquinzinhos As Notícias que Nunca Saem na Primeira Página. Está longe de ser caso único.

Páginas sobre Orlando Ribeiro.
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: PÉROLAS



Dione passa em frente de Saturno como uma pérola intocável, intangível. "Noli me tangere" diz, numa língua antiga. "É para mim que olhas, e não para a vastidão que está atrás de mim".
 


AR PURO


Levitan
 


EARLY MORNING BLOGS 386

Delight in Disorder


A sweet disorder in the dress
Kindles in clothes a wantonness.
A lawn about the shoulders thrown
Into a fair distraction;
An erring lace which here and there
Enthralls the crimson stomacher;
A cuff neglectful, and thereby
Ribbons to flow confusedly;
A winning wave, deserving note,
In the tempestuous petticoat;
A careless shoestring, in whose tie
I see a wild civility;
Do more bewitch me than when art
Is too precise in every part.


(Robert Herrick)

*

Bom dia!
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: GRAFIA DO POEMA DE ROSALIA DE CASTRO

Por que não fazer com os poemas de Rosália o que habitualmente se faz com os clássicos portugueses, a começar por Camões? Isto é: "actualizar" a grafia... Por exemplo, (escrevo em MAIÚSCULO a "actualização") de autoria do Prof. Dr. António Gil Hernandez, (...) que é um dos mais lúcidos intelectuais da lusofonia na Galiza que já conheci. Essa actualização de grafia foi publicada no grupo "Galiza", no yahoo:



- CantaM os galos p'ra o dIa
Ergue-te, meu beM, e vai-te.
COmo me hei-de ir,
cOmo me hei-de ir e deixar-te?

- DeSes teus olHiNHos negros
como doas relumbrantes,
ATÉ Às noSsas mÃOs unidas
as bágoas ardentes caeM.
COmo me hei-de ir
sE c'a lÍngua me desVotas
e c'o coraÇÃO me atraIs?
NuM corruncho do teu leito
cariNHosa me abrigaSTE;
c'o teu manso caloriNHo
os frIos pÉs me quentaste;
e de aquI Juntos miramos
por Entre o verde ramaGeM
QUAl Ía correndo a lUa
por enriba dos pinHares.
COmo queres que te deixe?
COmo, que de ti me aparte
sE mAis que O mel ÉS
e mAis que as fLoRes sUave?

- MeiguiNH, meiguiNHo, meigo,
meigo que me namoraste,
vai-te de onda miM, meiguiNHo,
antes que o sol se levante.

- Ainda dorme, queridiNHa,
Entre as ondiNHas do mare;
dorme porque me acariNHes
e porque amante me chames,
que SÓ onda ti, meniNHa,
poSSo contento folgare.

- JÁ cantaM os paSSariNHos.
Ergue-te, meu beM, que é tarde.
- Deixa que canteM, Marica;
Marica, deixa que canteM...
SE tU sEntes que me vÁ,
eu relouco por quedar-me.

- Comigo, meu queridiNHo,
mitAD' da noite pasSaSTE.

- Mais eM tanto tU dormIas,
contentEi-me coM mirar-te,
que aSSIM, sorrindo entre soNHos
cUidaVa que eras uM ánGel',
e nÃO coM tanta pureza
AO pÉ duM ánGel' velaSse.

- ASSIM te quero, meu beM,
como uM santo dos altares;
mas fuGe..., que o sol dourado
por riba dos montes saie.

- IrEi; mas dÁ-me uM biquiNHo
antes que de ti me aparte,
que eSses labiNHos de rosa
inda nÃO sei cOmo sabeM.

- CoM mil amores cho dera;
mas teNHo que confeSsar-me,
e mUita vergonHa fora
ter uM pecado tÃO grande.

- Pois confEsSa-te, Marica,
que, QUando casar nos casen,
nÃO che hÃO-de valer, meniNHa,
nEM confesSores nEM frades.

AdEUs, cariNHa de rosa!

- Raparigo, DEUs te gUarde!


...

Houve tantas mudanças?

(Pedro Santos)

16.12.04
 


BIBLIOFILIA



Esta foi a minha primeira edição do Capital e estava na biblioteca familiar no "Inferno", no armário dos livros proibidos. Antes do 25 de Abril era um livro perigoso. A edição não era a da obra completa, mas sim a antologia de Lafargue, e fazia parte de uma colecção francesa "Petite Bibliothèque Économique" editada na década de noventa do século XIX. O Prefácio era de Vilfredo Pareto. Tem os meus sublinhados a lápis muito leve porque não se estragava um livro antigo. Um marcador de página, perdido lá dentro, é um quarto de papel dos boletins de voto da Oposição do Porto de 1969, rasgado em quatro e que me servia de ficha. Quando acabou o período eleitoral permitido, e antes de fecharem as instalações do Oposição, numa garagem junto do Mercado do Bom Sucesso, fui lá e trouxe alguns milhares de votos sobrantes - era a oposição que imprimia os seus próprios votos - para servirem de papel e fichas.
 


DR. PORTAS, LEITOR DO ABRUPTO

Um aspecto, que tem sido bastante silenciado da questão da coligação, para o qual o Abrupto chamou a atenção – que, concorrendo os dois partidos separados, e não havendo uma maioria absoluta de parlamentares dos dois, há que garantir que o PSD seja o partido mais votado para que o “esquema” de casamento ex post facto da coligação tenha viabilidade política – suscitou o comentário do dr. Portas. O dr. Portas claramente não acredita que o PSD seja o partido mais votado, senão não falava disto. Face à probabilidade, em que acredita, que o PS possa ser o partido mais votado, resolveu teorizar uma situação em que a coligação deva ter prioridade na escolha presidencial para formar governo após as eleições.

É um argumento de mera propaganda, porque não é líquido que o PS , partido mais votado, não possa dar origem a um governo minoritário, como os de Guterres que duraram legislatura e meia, que subsista com os votos da esquerda parlamentar, nem que consiga a posteriori qualquer coligação com o BE ou o PCP, o que o coloca nos mesmos termos da coligação PSD-PP. Acresce que seria interessante ver, o que é possível, a coligação a governar com o PS, o partido mais votado, afastado do poder. Tal é possível formalmente, mas criaria um problema de legitimidade política gerador de instabilidade.

Tudo isto são problemas mais que conhecidos, gerados pelo elevado limiar eleitoral necessário para se obterem soluções estáveis de governabilidade. Mas a verdade é que todos se queixam e ninguém quer alterar a lei eleitoral. Houve várias tentativas durante as maiorias de Cavaco para baixar o nível de governabilidade solitária para cerca de 38% dos votos, mas o PS, raciocinando a curtíssimo prazo, recusou-o, gerando este problema que era evidente acabaria por lhe bater à porta.
 


ATIRADOR FURTIVO

diz o dr. Portas que eu sou. Infelizmente os exemplos que citou, incluindo o meu, são de atiradores de primeira linha, bem pouco furtivos. Furtivas são as "fontes anónimas", furtivos são os que "passam" notícias para os jornais, furtivos são os que, apoiados em aparelhos de imprensa pagos pelo Estado, os usam para promover e despromover quem lhes convém. Esta é uma especialidade que ele conhece bem, como produtor e receptador, não é a minha.

Dito isto, bem pobre é a acusação a quatro homens, só com o poder da palavra, da opinião e do argumento, para os culpar de tão grandes coisas: a queda de um governo e uma maioria e o fim de uma coligação que tinha jurado existir até 2014.
 


COISAS SIMPLES


Edmund C. Tarbell
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: DE VERGÍLIO FERREIRA A THOMAS HARDY

Nature's Questioning


WHEN I look forth at dawning, pool,
Field, flock, and lonely tree,
All seem to look at me
Like chastened children sitting silent in a school;


Their faces dulled, constrained, and worn,
As though the master's ways
Through the long teaching days
Their first terrestrial zest had chilled and overborne.


And on them stirs, in lippings mere
(As if once clear in call,
But now scarce breathed at all)--
"We wonder, ever wonder, why we find us here!


"Has some Vast Imbecility,
Mighty to build and blend,
But impotent to tend,
Framed us in jest, and left us now to hazardry?


"Or come we of an Automaton
Unconscious of our pains?...
Or are we live remains
Of Godhead dying downwards, brain and eye now gone?


"Or is it that some high Plan betides,
As yet not understood,
Of Evil stormed by Good,
We the Forlorn Hope over which Achievement strides?"


Thus things around. No answerer I....
Meanwhile the winds, and rains,
And Earth's old glooms and pains
Are still the same, and gladdest Life Death neighbors nigh.


(Thomas Hardy)

(Filipe V. Castro lembra este poema a propósito do texto de Vergílio Ferreira publicado no Abrupto)

 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: POPULISMO E CONTEÚDOS LÓGICO-LINGUÍSTICOS

"(...) as declarações de Paulo Portas sobre a apresentação dos dois partidos em listas separadas. Dizia mais ou menos isto: sempre tinha sido a favor da bipolarização, isto é dois pólos, um do centro (!) para a direita, outro da esquerda, mas contra o bipartidismo (sic), ou seja, sempre defendeu liberdade de escolha dos eleitores em cada pólo. É óbvio que a segunda asserção representa o oposto da primeira: com fragmentação partidária dentro dos pólos não há bipolarização. Mas parece que não importa: o populismo rompe com as barreiras da linguagem e da lógica. Nada mais interessa que o articulado formal das palavras, desde que soe bem. Vale tudo."

(Fazenda Martins)
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: O FUTURO JÁ NÃO É O QUE ERA


(Enviado por Von)

Como a foto não é verdadeira, o passado já não é o que era.
 


TAMBÉM JÁ TE APANHEI, Ó VAGABUNDO



Ontem, lá estava, com uma ainda quase inexistente cabeleira, no sítio devido. Que augúrio nos trazes, vagabundo?
 


EARLY MORNING BLOGS 385

Épitaphe d'un paresseux


Jean s'en alla comme il était venu,
Mangea le fonds avec le revenu,
Tint les trésors chose peu nécessaire.
Quant à son temps, bien le sut dispenser :
Deux parts en fit, dont il soulait passer
L'une à dormir et l'autre à ne rien faire.


(La Fontaine)

*

Bom dia!

15.12.04
 


AR PURO


Levitan
 


LEMBRANDO

o que escrevi a 3 de Dezembro:

JÁ SE PERCEBEU

como uma parte da campanha de Santana Lopes será feita: o governo caiu porque os grandes interesses económicos não queriam o OE, as suas medidas de combate à fraude fiscal, e de imposição de impostos à banca. É hábil, apela ao populismo, e aos amadores das teorias da conspiração, mas não é verdade.
 


A CRISE DO SENTIDO DA AUDIÇÃO

Dois debates entre parlamentares na SIC Notícias e na RTP2: o grau zero do debate e uma completa incapacidade de ouvir, com destaque para uns jovens parlamentares do PP que falam, falam, falam, sem pararem um minuto para ouvir quanto mais para pensar.(Já não falo do cinzentismo do PS, cada vez mais habitual, como se tentassem esconder-se na paisagem ...)

14.12.04
 


A LER

Esta precisão do Clube dos Jornalistas sobre as circunstâncias em que foi feita a entrevista de Morais Sarmento ao Diário Económico.

Acrescento: alguém ouviu a primeira pergunta que foi feita ao mesmo ministro, no Telejornal das 13 horas de hoje, sobre o novo Media Parque a criar no Monte da Virgem? Qualquer coisa do género, dito logo à cabeça pelo jornalista, "há um ano o Monte da Virgem era a imagem perfeita da desolação e agora é o que se vê (ainda não se vê...mas não tem importância), como é que foi possível?". A seguir, o ministro brilha. Estava tudo dito na pergunta. Dizer tudo na pergunta é extremamente eficaz.

Outro acrescento: espero que uma atitude de denúncia resoluta deste tipo de promiscuidades continue caso o PS ganhe as eleições. Poucas vezes me lembra de ter visto uma maior circulação de "influências" entre o governo e as redacções do que nos governos Guterres, tanto mais eficaz quanto não denunciada. Se o caminho dos dias de hoje de atenção crítica não é apenas um epifenómeno suscitado pelas inépcias actuais, (a que não é alheia a composição política da “classe”) pode-se melhorar o ar que se respira na comunicação social .

 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: MEMÓRIA DE VERGÍLIO FERREIRA

"...Nós não pensamos o tempo em que não havia tempo por não haver homens que o instaurassem, pela ideia oculta e impensável de não haver um Universo que se não orientasse para a existência humana. E todavia sabemos que o acaso governou essa orientação. Nós não conseguimos pensar esse Universo para antes de haver homens e ser impensável que se pensasse a questão do seu sentido. Mas não abdicamos por isso de lho querer encontrar, agora que o homem existe para a tudo questionar. Assim é dificilmente pensável o Mundo para lá da espécie que é a nossa e se alinha entre as múltiplas espécies que se vão extinguindo. Mas é só pensando como disse, o vazio do Universo sem ninguém que o consciencialize, que o problema do sentido se pode pôr. Não há sentido nenhum, há só a obtusidade de tudo estar aí. É preciso repeti-lo,

Mas como é amirável pensar que num instante fugitivo dos biliões e biliões de anos estelares, uma espécie apareceu e gritou à solidão dos espaços a sua vinda no que lhe foi dado criar, para imediatamente o Universo inteiro recair na estupidez do seu silêncio eterno. Perante quem ou quê isto tem significado? Porque o não tem perante nada. Foi um grito de louco no seu infinitesimal instante de loucura. Espécies que findam, estrelas que se apagam, vazio inerte pela exterioridade do sem-fim. Mas houve um momento em que tudo isso existiu só por haver a mente humana que a fez existir...."


Vergílio Ferreira, Conta-Corrente, nova série, IV (Enviado por António Ferreirinho)
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS:THALASSA! THALASSA!



Xenofonte estava atrás e ouviu os gritos. Bom militar, pensou que mais uma vez tinha inimigos pela frente num terreno hostil. A retaguarda começou a correr na direcção dos gritos. Mais gritos. Xenofonte montou a cavalo pensando que “alguma coisa de extraordinário tinha acontecido” e, à frente da cavalaria, correu a socorrer os seus homens. Então viu e percebeu. Ouviu: "Thalassa! Thalassa!”. O mar. Havia água a perder de vista. O mar. Os gregos encontravam o mar que tinham de há muito perdido. A sua casa. Voltavam.

Mais provas de que houve água em Marte. Houve mar.
 


INCONFIDÊNCIAS

Ponho a nu, salvo seja, o meu computador: o sistema é o Windows XP Professional, os programas básicos são os da Microsoft Office, mas verdadeiramente usados só Word, o Access, o Outlook. O browser é o Mozilla Firefox já na versão 1.0. Depois há o Scansoft Paperport 9.0, um programa para mim indispensável e merecedor de todos os elogios, e que uso desde pelo menos a versão 5.0. Para além disso, uso o Copernic Desktop Search, (e o Copernic Agent Professional,) tendo experimentado o X1 e o Google Desktop, sem nenhum me satisfazer tanto como o Lotus Magellan num passado longínquo. Uso extensivamente o Access, cada vez mais preocupado com o limite das bases de dados de 2 GB, sem total satisfação. Já experimentei o AskSam, com interesse para as suas vantagens, embora o tenha abandonado pelo Access. De novo, vem-me à memória algumas funcionalidades do Lotus Agenda nunca conseguidas de forma simples no Access, embora suspeite que se conhecesse melhor a programação pudesse construí-las no Access. Depois, o tradicional Norton System Works, e blindagem diversa contra a intrusão e a malvadez.

Parafraseando, para que o computador não se tome a sério, é suposto que o computador esteja defendido de tudo , menos de mim próprio.
 


COISAS SIMPLES


Roy Lichtenstein
 


EARLY MORNING BLOGS 384

Under Saturn


Do not because this day I have grown saturnine
Imagine that lost love, inseparable from my thought
Because I have no other youth, can make me pine;
For how should I forget the wisdom that you brought,
The comfort that you made? Although my wits have gone
On a fantastic ride, my horse's flanks are spurred
By childish memories of an old cross Pollexfen,
And of a Middleton, whose name you never heard,
And of a red-haired Yeats whose looks, although he died
Before my time, seem like a vivid memory.
You heard that labouring man who had served my people. He said
Upon the open road, near to the Sligo quay -
No, no, not said, but cried it out - 'You have come again,
And surely after twenty years it was time to come.'
I am thinking of a child's vow sworn in vain
Never to leave that valley his fathers called their home.


(William Butler Yeats)

*

Bom dia!
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: O DESENHO ALTÍSSIMO E A FÁBRICA SEGURÍSSIMA

"A ordem hierárquica da providência divina, no governo de suas criaturas, é governar superiores e súbditos, mas os súbditos por meio dos superiores, e os superiores imediatamente por si mesmo. Uma e outra coisa temos nas chaves e nas cadeias de Pedro. Em todo o mundo cristão não há mais que um superior e um súbdito, um Pedro e uma Igreja; e este superior e este súbdito, este Pedro e esta Igreja, quem os governa? A Igreja governa-a a providência de Pedro, que tem o poder das chaves: Tibi dabo claves regni caelorum; a Pedro governa-o a providência de Cristo, que o livrou das cadeias de Herodes: Ceciderunt catenae de manibus ejus. Este é o desenho altíssimo, e esta a fábrica seguríssima da suprema providência. A Igreja segura na providência de Pedro, e Pedro seguro na providência de Cristo.

Caso foi verdadeiramente admirável, e por isso notado e advertido pelo mesmo historiador sagrado, que cercado S. Pedro de guardas, e atado a duas cadeias, na mesma noite daquele dia em que havia de sair a morrer, como homem sem nenhum temor nem cuidado, estivesse dormindo: In ipsa nocte erat Petrus dormiens. E se passarmos da terra ao mar, não é caso menos digno de admiração que, correndo fortuna a barca de Pedro com uma terrível tempestade, Cristo, que ia na mesma barca, também estivesse dormindo: Ipse vero dormiebat. Cristo e o Vigário de Cristo, ambos dormindo? Cristo dormindo no meio da tempestade, e Pedro dormindo no meio das guardas e das cadeias, e ambos com a morte à vista, sem nenhum cuidado? Sim. Na tempestade dorme Cristo, porque a barca está segura na providência de Pedro; e nas cadeias dorme Pedro, porque Pedro está seguro na providência de Cristo. Debaixo da providência de Cristo dorme Pedro ao som das cadeias, e debaixo da providência de Pedro dorme Cristo ao som da tempestade e das ondas. "

13.12.04
 


POEIRA DE 13 DE DEZEMBRO

Hoje, há cento e quarenta e nove anos, Thoreau preparava-se para o Inverno. “Agradável”, escreveu, “estar preparado”, ter lenha, batatas, maçãs, na cave. Esperar que a neve descesse e cobrisse a terra de branco. Esperar que os flocos de neve se “entretecessem como uma teia no ar”, esperar por esse mundo de silêncio e paz. Esperar, função do Inverno.

*

"A propósito do silêncio e paz invernais, que vieram por sua vez a propósito do Thoreau, lembrei-me dos silêncios do Livro das Melancolias do Paulo Mantegazza, resgatado do sótão de casa dos meus pais (...)


Mais que os silêncios do homem, eu amo, porém, os da natureza. Nos bosques de abetos da Noruega, eu bebi os silêncios daquela fria e casta natureza nos longos dias que duram meses. Nenhuma ave cantava, nenhum insecto estridulava, nenhuma fera rugia, e até os meus passos sobre a macia e profunda almofada de brancos líquenes não faziam rumor. Naqueles lugares, o silêncio dormia eternamente o seu sono, e eu julgar-me-ia morto, se não tivesse tido os olhos abertos para ver, para saborear toda aquela paz tranquila duma vida verde, que vivia sem fazer rumor."

(R.M.)
 


COISAS SIMPLES


Hans Thoma
 


APRENDER COM ROSALIA SOBRE OS RAPARIGOS

- Cantan os galos pra o día
érguete, meu ben, e vaite.
- ¿Cómo me hei de ir,
cómo me hei de ir e deixarte?

- Deses teus olliños negros
como doas relumbrantes,
hastra as nosas maus unidas
as bágoas ardentes caen.
¿Cómo me hei de ir
si ca lengua me desbotas
e co corasón me atraes?
Nun corruncho do teu leito
cariñosa me abrigaches;
co teu manso caloriño
os fríos pes me quentastes;
e de aquí xuntos miramos
por antre o verde ramaxe
cál iba correndo a lúa
por enriba dos pinares.
¿Cómo queres que te deixe?
¿Cómo, que de ti me aparte
si máis que a mel eres
e máis que as froles soave?

- Meiguiño, meiguiño, meigo,
meigo que me namoraste,
vaite de onda min, meiguiño,
antes que o sol se levante.

- Ainda dorme, queridiña,
antre as ondiñas do mare;
dorme porque me acariñes
e porque amante me chames,
que sólo onda ti, meniña,
podo contento folgare.

- Xa cantan os paxariños.
Érguete, meu ben, que é tarde.

- Deixa que canten, Marica;
Marica, deixa que canten...
Si ti sintes que me vaia,
eu relouco por quedarme.

- Conmigo, meu queridiño,
mitá da noite pasaches.

- Mais en tanto ti dormías,
contentéime con mirarte,
que así, sorrindo entre soños
coidaba que eras un ánxel,
e non con tanta purea
e non con tanta pureza
ó pe dun ánxel velase.

- Así te quero, meu ben,
como un santo dos altares;
mais fuxe..., que o sol dourado
por riba dos montes saie.

- Iréi; mais dame un biquiño
antes que de ti me aparte,
que eses labiños de rosa
inda non sei cómo saben.

- Con mil amores cho dera;
mais teño que cofesarme,
e moita vergonza fora
ter un pecado tan grande.

- Pois confésate, Marica,
que, cando casar nos casen,
non che han de valer, meniña,
nin confesores nin frades.
¡Adiós, cariña de rosa!

- ¡Raparigo, Dios te garde!
 


FALHOU DESTA VEZ, MAS VOU-TE APANHAR, MALANDRO! (2)



O cometa C/2004 Q2 Machholz já ultrapassou o limiar da visibilidade a olho nu. As nuvens continuam, mas vou-te apanhar. Se não, faço de vítima, que é o que está na moda.
 


INTENDÊNCIA

Colocado no VERITAS FILIA TEMPORIS o JACARÉ E A LAGARTIXA 14 sobre como o "santanismo gostaria de ser um guterrismo", sobre o processo da Casa Pia, sobre Luís Delgado como o "melhor crente", e um elogio da Taschen.
 


ICONOLOGIA

Para acrescentar a uma nova iconologia do presente (a continuar assim a Taschen fará um volume português para acrescentar ao México, e à California, ou ao Las Vegas chic): um boneco republicano, socialista e laico, com barrete frígio e tudo, bom para filhos de mações, e uma t-shirt patriótica com o hino, bastante melhor do que o kit patriótico do Ministro Portas para os fãs saberem o que cantam nos estádios. Tudo na loja do Museu da Presidência da República.

*

"Tal como a blusa patriótica da primeira dama na final do euro, creio que ninguém ficou indiferente ao catálogo fornecido gratuitamente (!!!) com os jornais de fim-de-semana, pelo museu da Presidência da República. O que mais me marcou no boneco foi o seu ar infeliz. Pudera tão pequenino e já republicano, socialista, maçon, laico e muito provavelmente ateu… Até para um boneco é demais!"

(J.)
 


NO PORTAL DO ASTRÓNOMO

uma nota minha do género dos NOVOS DESCOBRIMENTOS intitulada "Pequena Pedra do Medo".

 


COLIGAÇÃO

Eu não quero o PSD coligado com o PP, mas é por razões de fundo, as mesmas porque eu penso que é suicidário o curso actual do partido. Como já se viu e se verá, mas nessa altura pode já ser tarde. Não se diga que não foram prevenidos.

Mas é-me incompreensível porque razão um homem, que sempre defendeu as virtualidades da coligação e é ideologicamente mais próximo do PP de Portas do que do PSD de Sá Carneiro, acabou , pelo caos habitual, por estragá-la ou torná-la desvantajosa para o PP. Imaginem como as coisas devem estar (ou vão estar) para que o PP pense que é melhor concorrer sozinho. Pensem um pouco sobre isso.

A ideia (suportada no argumento dos argumentos, as sondagens), que é melhor concorrerem os partidos separados, significa que o PSD não consegue o efeito de bipolarização, o que mostra a hegemonia das expectativas no PS. Porque, é obvio, que, se as eleições forem polarizadas (e eu penso que vão ser), o PP para garantir o seu espaço precisa de atacar o PSD, e o PSD, para obter o efeito de “ou nós ou eles” e mobilizar o seu eleitorado, tem que sacudir a perturbação do PP. Por isso, as propostas idílicas de uma campanha não agressiva só teriam sentido se o caminho para a vitória fosse radioso, ou todos achassem que não vale a pena fazer nada porque a derrota está garantida. Inclino-me para a segunda hipótese.

Há também outra coisa que é esquecida, e também esquecida pela comunicação social e comentadores, que é a circunstância que este esquema “sozinhos agora, coligados depois”, só funciona de o PSD for o partido mais votado. Porque quem o Presidente chama para fazer governo, é o líder do partido mais votado e se o PS não tiver maioria absoluta, arranja-a, aliando-se com quem for preciso, liderando Sócrates uma coligação pós-eleitoral. Ou pensam que não?
 


A LER

No Público, de Graça Franco "Deus, Língua e Integração".

A "Maioria" no Portugal dos Pequeninos.
 


AR PURO


Levitan
 


EARLY MORNING BLOGS 383

The Moon and the Yew tree


This is the light of the mind, cold and planetary.
The trees of the mind are black. The light is blue.
The grasses unload their griefs at my feet as if I were God,
Prickling my ankles and murmuring of their humility.
Fumy spiritious mists inhabit this place
Separated from my house by a row of headstones.
I simply cannot see where there is to get to.

The moon is no door. It is a face in its own right,
White as a knuckle and terribly upset.
It drags the sea after it like a dark crime; it is quiet
With the O-gape of complete despair. I live here.
Twice on Sunday, the bells startle the sky -
Eight great tongues affirming the Resurrection.
At the end, they soberly bong out their names.

The yew tree points up. It has a Gothic shape.
The eyes lift after it and find the moon.
The moon is my mother. She is not sweet like Mary.
Her blue garments unloose small bats and owls.
How I would like to believe in tenderness -
The face of the effigy, gentled by candles,
Bending, on me in particular, its mild eyes.

I have fallen a long way. Clouds are flowering
Blue and mystical over the face of the stars.
Inside the church, the saints will be all blue,
Floating on their delicate feet over cold pews,
Their hands and faces stiff with holiness.
The moon sees nothing of this. She is bald and wild.
And the message of the yew tree is blackness - blackness and silence.


(Sylvia Plath)

*

Bom dia!
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: "PARA QUE NÃO SE ATRIBUA A CAUSAS NATURAIS ... OS EFEITOS QUE VÊM SENTENCIADOS"

"O primeiro motivo e mui principal por que Deus costuma revelar as cousas futuras (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo antes de sucederem, é para que conheçam clara e firmemente os homens, que todas vêm dispensadas por sua mão. Arma-se assim a sabedoria eterna contra a natureza humana, sempre soberba, rebelde e ingrata, ou porque se não levante a maiores com os benefícios divinos, e se beije as mãos a si mesma, como dizia Job, ou porque não atribua a cousas naturais (e muito menos ao caso) os efeitos que vêm sentenciados como castigo por sua justiça, ou ordenados para mais altos e ocultos fins por sua providência.

Foram mostradas ao Faraó em sonhos as sete espigas gradas e as sete falidas, as sete vacas fracas e as sete robustas, e logo ordenou a Providência divina que estivesse em Egipto um José (posto que vendido e desterrado), que lhe declarasse o mistério dos sete anos da fartura e sete de fome, para que conhecesse o bárbaro que Deus, e não o seu adorado Nilo, era o autor da abundância e da esterilidade, e que a ele havia de agradecer no benefício dos sete anos o remédio dos catorze. Como na terra do Egipto não chove jamais e se regam e fertilizam os campos com as inundações do rio Nilo, disse discretamente Plínio que só os Egípcios não olhavam para o céu, porque não esperavam de lá o sustento, como as outras nações.

Oh quantos cristãos há egípcios, que nem esperando, nem temendo, levantam os olhos ao Céu, e em lugar de reverenciarem em, todos os sucessos a primeira causa, só adoram as segundas! Por isso mostra Deus ao Faraó, tantos anos antes, quais hão-de ser os da fome e quais os da fartura; para que conheça a ignorante sabedoria do Egipto que os meios da conservação ou ruína dos reinos, a mão omnipotente de Deus é a que os distribui, quando são, pois só ele os pode determinar antes que sejam. "

12.12.04
 


FALHOU DESTA VEZ, MAS VOU-TE APANHAR, MALANDRO!


(foto portuguesa aqui)

Preparado para o frio, binóculo em punho, terras altas numa serra a preceito, mapa das estrelas com a trajectória do C/2002 Q2 Machholz laboriosamente anotada e ... nada. Umas nuvens persistentes e miseráveis resolveram estabelecer-se quando nada o previa e o cometa ficou atrás delas.
 


AR PURO / ÚLTIMA NEVE


Levitan
 


EARLY MORNING BLOGS 382

The Soul unto itself


The Soul unto itself
Is an imperial friend --
Or the most agonizing Spy --
An Enemy -- could send --

Secure against its own --
No treason it can fear --
Itself -- its Sovereign -- of itself
The Soul should stand in Awe --


(Emily Dickinson)

*

Bom dia!


11.12.04
 


POBRE PAÍS

o nosso, dependente de um portador do caos.
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: "CADA UM SENTE COMO ENTENDE"

"Queixa-se finalmente a discrição – que sempre a discrição é a última em queixar-se – e tomara eu que ela tivera melhor intérprete para declarar com quanto fundamento se queixa. O maior inimigo da vida quem vos parece que será? O maior inimigo da vida é o entendimento. Tão madrasta se houve com o homem a natureza que produzindo tantos antídotos nas entranhas dos animais, dentro na alma do homem lhe criou o maior veneno. Se buscarmos a primeira origem da morte, na Árvore da Ciência pôs Deus o fruto da mortalidade: por onde os homens quiseram ser mais entendidos, por ali começaram a ser mortais. Até no mesmo Deus teve lugar esta terrível conseqüência. Houve de encarnar e morrer uma das Pessoas divinas, e porque mais o Filho, que alguma das outras? A verdadeira razão sabe-a Deus. Eu só sei que à Pessoa do Filho se atribui o entendimento, e que à Pessoa do Filho se uniu a mortalidade. Como o Verbo ab aeterno procedeu por entendimento, ab aeterno propendeu para mortal. Se isto foi em Deus, que será nos homens? Todos os homens são mortais, mas o mais entendido, mais mortal que todos. Naquela parábola das dez virgens, as bodas significam a morte, e é muito de notar que, sendo cinco as entendidas, e cinco as néscias, todas as cinco entendidas morreram primeiro. Entender muito e viver muito, ou no entendimento é engano, ou na vida milagre. A razão disto a meu juízo deve ser porque cada um sente como entende. Quem entende muito não pode sentir pouco, e quem sente muito não pode viver muito. O homem é vivente, sensitivo e racional: o racional apura o sensitivo, e o sensitivo apurado destrói o vivente."

9.12.04
 


COISAS SIMPLES


Gerard Dou
 


CAMPANHA ELEITORAL

Mais uma série de vilas que passam a cidades.

Desde início, toda a história das viaturas blindadas na Bombardier, apresentado num anúncio propagandístico pelo Ministro Portas, me pareceu esquisita. Qual era a solidez e o grau de concretização do acordo sobre a Bombardier? E quanto é que ele custava (porque desde que o estado esteja disposto a gastar dinheiro, todos os acordos são possíveis, até nacionalizar a empresa)? Como é que podia ter havido um acordo sem a administração da Bombardier saber de nada? Afinal parece que não sou só eu que acho tudo muito esquisito, também o Ministro Álvaro Barreto desmentiu que houvesse qualquer acordo. (Posteriormente "esclareceu" que não tinha sido bem isso que tinha dito, numa prática habitual neste governo de fazer de contraditório de si mesmo. A não ser que o Público tenha inventado.)

Numa última réstia de vaguíssima esperança, ainda se pensa que não é possível ir-se tão longe. Engano. É até onde for preciso.
 


BIBLIOFILIA - RETRATO DE UMA AVENTURA INTELECTUAL A DOIS

Leonor Curado Neves (Edição), António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência , Lisboa, Gradiva, 2004

Este é um grande livro, uma obra ímpar no meio das centenas de inutilidades que se publicam todos os meses. Dois amigos para a vida toda, que começam o seu trabalho intelectual na patrulha ortodoxa da dissidência na Vértice dos anos cinquenta, contra Mário Dionísio e Cochofel (veja-se o meu artigo sobre Lyon de Castro), escrevendo a História da Literatura Portuguesa a duas mãos e depois trocando cartas num diálogo intelectual sem par no século XX. Saraiva foi-se afastando do marxismo e saiu do PCP, Lopes ficou fiel ao PCP, mas ambos discutem o trajecto político e ideológico do seu tempo, à medida que acontece o Maio de 68, e a crise da URSS, ao mesmo tempo que toda a história da cultura portuguesa, Camões, Fernão Lopes, Bernardim, Oliveira Martins, Pessoa, Agustina, tudo. Acontecimentos como esta correspondência são únicos na nossa vida intelectual.
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: OS HORIZONTES DO TEMPO

"A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.

O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento! "
 


BIBLIOFILIA - DOIS LIVROS DE ENSAIOS



Dois muito interessantes livros de ensaios. Lourenço, nos Destroços, editado pela Gradiva, na melhor tradição da Heterodoxia, desmontando a leitura marxista-racionalista de Gil Vicente feita por António José Saraiva. Um outro ensaio sobre o "adolescentismo" na literatura portuguesa, mais actual que nunca. E depois mais uma série de textos polémicos de antes de 25 de Abril.

O livro de José Gil, Portugal, Hoje. O Medo de Existir, editado pela Relógio de Água, é um ensaio muito interessante sobre Portugal, às vezes obscuro e dispersivo, como acontece com outros textos de Gil. Termina com um texto, "O trauma português e o clima actual", sobre os dias de Santana Lopes. Leram bem, sobre os dias de Santana Lopes, com uma reflexão sobre a mediatização e uma ou duas páginas sobre o "descaramento" e o "despudor" muito interessantes.
 


EARLY MORNING BLOGS 381

The Room


Through that window--all else being extinct
Except itself and me--I saw the struggle
Of darkness against darkness. Within the room
It turned and turned, dived downward. Then I saw
How order might--if chaos wished--become:
And saw the darkness crush upon itself,
Contracting powerfully; it was as if
It killed itself: slowly: and with much pain.
Pain. The scene was pain, and nothing but pain.
What else, when chaos draws all forces inward
To shape a single leaf?. . .

For the leaf came,
Alone and shining in the empty room;
After a while the twig shot downward from it;
And from the twig a bough; and then the trunk,
Massive and coarse; and last the one black root.
The black root cracked the walls. Boughs burst the window:
The great tree took possession.

Tree of trees!
Remember (when time comes) how chaos died
To shape the shining leaf. Then turn, have courage,
Wrap arms and roots together, be convulsed
With grief, and bring back chaos out of shape.
I will be watching then as I watch now.
I will praise darkness now, but then the leaf.


(Conrad Aiken)

*

Bom dia!

 


COM PENA

começo, pouco a pouco, a empurrar para o esquecimento a imagem soberba de Saturno. É da natureza do tempo, é da natureza dos blogues.

8.12.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: FORMAS PURAS



Formas puras, geometria pura, movimento puro, silêncio puro. Se cada detalhe se abrisse, tudo seria impuro: perturbações, violências, relâmpagos, tempestades, forças poderosas a arrastar tudo, gigantescas nuvens, gelos perfeitos, rios de pedras e detritos, gases voando a milhares de quilómetros, sombras feitas de nada avançando.

Aqui está ele, Cronos, o deus do tempo, o romano Saturno. Dele dizia Plutarco

Pitágoras, quando perguntado sobre o que era o tempo, respondeu que era a alma dos céus. Porque o tempo não é um atributo, ou um acidente, ou um movimento ocasional, mas a causa e a potência e o princípio que mantêm juntas todas as coisas que acederam à existência.

E ele está ali. Na sombra. Existindo.
 


AR PURO


Levitan
 


EARLY MORNING BLOGS 380

Supply & Demand


for billie holiday

you left metropolitan hospital
in my fourteenth year
ten blocks from those city projects
dangling on the lip of the east river

& the sadness we saw from a distance
was your constant thing
disguised in lenient poppies.

had i known you were so close
you might have borrowed the filters we wore
the fine mesh screens laid lightly
on callow eyes
because sadness is demanding

it hangs on walls in east village apartments ingesting music
from voices mirrored in the air.

sad songs are necessary
they supply

melodious demands
on sophisticated ladies crushed between white gardenias
& exonerated bibles

chivalrous demands
on discourteous death
for failing to return a lady to her seat

silent demands in frigid vestibules
recurrent genuflections
of someone in need

& because you sang
the end of a love affair
in tones that escaped your throat like
the ghost of original sin
going home after an eternity
of all night jam sessions

then walked away
only half a mile from my ignorance
i hung the song sheet beneath the mirror.

are you trying to tell me something?
my woman asked.

no i replied
i just like sad songs.


(Stewart Brisby)

*

Bom dia!
 


INTENDÊNCIA

Actualizado COLIGAÇÃO E APARELHO DO PSD.

7.12.04
 


SAUDADES DE ESTRASBURGO


Librairie de l'Amateur

Dos alfarrabistas.

(Em breve.)
 


INTENDÊNCIA

Colocados no VERITAS FILIA TEMPORIS a LAGARTIXA E O JACARÉ 12 e 13, de Novembro de 2004. A primeira é sobre a Constituição Europeia, Arafat e a carta (nunca enviada) pelo Primeiro-ministro aos portugueses; e a segunda sobre os blogues políticos.
 


80 ANOS

Parabéns, do seu amigo, admirador, algumas vezes companheiro e algumas vezes adversário. Sem reservas para a pessoa, e sem reservas para a parte do político que o fará estar na história, o político a quem devo parte da minha liberdade. Mas não estarei no seu jantar, porque, nos dias de hoje, ele tem um significado político para além do pessoal. Do mesmo modo que eu não desejo que o meu partido proponha ao país um mau candidato a primeiro-ministro, estou longe de pensar que os socialistas sejam alternativa. Considero até, blasfémia!, que um dos crimes maiores dos “meus” é estarem a criar condições para a chegada ao poder dos “seus”. Não irei, se quiser, por razões de “lealdade orgânica”, que o meu amigo sabe o que é, embora quem a levante como uma bandeira deseje apenas obediência às pessoas e não fidelidade aos princípios, sem saber que o substantivo é mais importante do que o adjectivo.
 


A LER

o Portugal dos Pequeninos, um blogue político sólido e sóbrio.
 


AR PURO


Levitan

*

É dia de S. Nicolau. O tal que com o seu ajudante Knecht Ruprecht oferece doces às crianças bem comportadas e promete castigos aos irrequietos. Está tudo cheio de gelo matinal por esta zona. Uma pequena recompensa para a neve cuja falta sinto muito.

(MKL)
 


EARLY MORNING BLOGS 379

Light breaks where no sun shines


Light breaks where no sun shines;
Where no sea runs, the waters of the heart
Push in their tides;
And, broken ghosts with glow-worms in their heads,
The things of light
File through the flesh where no flesh decks the bones.

A candle in the thighs
Warms youth and seed and burns the seeds of age;
Where no seed stirs,
The fruit of man unwrinkles in the stars,
Bright as a fig;
Where no wax is, the candle shows its hairs.

Dawn breaks behind the eyes;
From poles of skull and toe the windy blood
Slides like a sea;
Nor fenced, nor staked, the gushers of the sky
Spout to the rod
Divining in a smile the oil of tears.

Night in the sockets rounds,
Like some pitch moon, the limit of the globes;
Day lights the bone;
Where no cold is, the skinning gales unpin
The winter's robes;
The film of spring is hanging from the lids.


Light breaks on secret lots,
On tips of thought where thoughts smell in the rain;
When logics dies,
The secret of the soil grows through the eye,
And blood jumps in the sun;
Above the waste allotments the dawn halts.


(Dylan Thomas)

*

Bom dia!

6.12.04
 


AR PURO


Levitan
 


A NECESSIDADE AGUÇA O ENGENHO

Sobre a reviravolta previsível a propósito da coligação PSD-PP, escrevi, quando do Congresso e quando quase todos diziam que ela não ia existir, o seguinte:

"Tenho a convicção que, pese tudo o que pesar contra ela, a coligação será inevitável nas próximas eleições legislativas. Razão? A constatação de necessidades prementes: ambos os partidos precisam desesperadamente um do outro para ser vagamente credível que podem ganhar as eleições e governar, o que hoje só em conjunto acontece. O cenário de concorrerem separados para depois se unirem é teórico: o PP, sob pena de desaparecer, não pode ir sozinho a eleições sem fazer campanha contra o PSD e demarcar-se do governo de que fez parte; o PSD não está em condições para ter que se defender, á esquerda e à direita, de uma experiência governativa de que será sempre o grande responsável.

Este princípio de necessidade só não funcionará … se não houver necessidade."

Como a necessidade quase roça o desespero, apesar de escondido, lá a teremos. Só que a um preço mais alto para o PSD, resultado, também aqui, de uma liderança errática, que soma erros sobre erros. Não tendo estratégia fora da coligação, a direcção do PSD permitiu que ela fosse minada. Deixou margem de manobra para o PP pensar duas coisas: uma, que as eleições podiam não gerar bipolarização devido à fragilidade do PSD face ao PS, e assim dar espaço de respiração para o PP (e para o BE e o PCP...); outra, a convicção que o PS poderia ganhar sem maioria absoluta e precisar de um acordo com o PP.
 


COLIGAÇÃO E APARELHO DO PSD

As estruturas regionais e locais do PSD sabem muito bem que estão a permitir e caucionar um curso suicidário para o partido, mas, em vésperas de elaboração de listas, não se arriscam a pôr em causa os lugares dos seus dirigentes na Assembleia. Quando começarem a fazer as contas à acomodação, em lugares elegíveis, de catorze deputados do PP, eventualmente um ou dois do PPM, e os provindos dos vários "portugais", o Compromisso, a Missão, o Positivo, então começarão sérios problemas. Estéreis, aliás.

Bibliografia aqui.

5.12.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: APANHADA



em flagrante delito. A NASA, com o humor habitual, escreve: "Lua de Saturno apanhada com a mão na massa. Roubar é crime na terra, mas em Saturno aparentemente é uma rotina". A foto constitui a prova: a lua Prometeu apanhada a roubar partículas dos anéis de Saturno. Para dar a quem?
 


BIBLIOFILIA / EFÉMERA



Por muito que se arrumem papéis há sempre umas coisas que são impossíveis de arrumar. Acumulam-se em montes que passam de uma casa para outra, de uma vida para outra, numa biblioteca e arquivo que não tem a categoria de “vários”, que ambiciona ordenar tudo. A simples categoria de “vários”, o que é?. Como esta capa de livro, desenhada com umas ténues flores por uma “Maria Vitória”, em oito de Junho de 1937. Ou uma ilustração da “miraculada de Balazar” no seu leito de dor, olhando confiante. Ou o calendário da Camisaria Moderna de 1960, que encontrei num caderno escolar, e que tinha a matéria dos sonhos: a hora do resto do mundo. Que nos ensinava, com aquele pequeno computador rodante, que Lisboa, Dakar e Monróvia tinham a mesma hora. Quem é que queria ir a Monróvia? E, de passagem, dizia-nos que a Camisaria Moderna anunciava que “se notar alguma deficiência ao vestir as nossas camisas, faremos por medida sem aumento do preço”.
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA SOBRE A SUPERSTIÇÃO DOS PRESENTES

Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite? Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia, que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos seus autores no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na terra os vestígios de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam achar das futuras.

No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem, inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as doenças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e todos os outros futuros prósperos ou adversos; arte certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa fortuna nas nossas mãos.

(...)

A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens vivos. Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves, os mugidos dos animais, as folhas e movimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios do futuro. Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.
 


AR PURO


Levitan
 


EARLY MORNING BLOGS 378

¡Otra vez!, tras la lucha que rinde
y la incertidumbre amarga
del viajero que errante no sabe
dónde dormirá mañana,
en sus lares primitivos
halla un breve descanso mi alma.

Algo tiene este blando reposo
de sombrío y de halagüeño,
cual lo tiene, en la noche callada,
de un ser amado el recuerdo,
que de negras traiciones y dichas
inmensas, nos habla a un tiempo.

Ya no lloro..., y no obstante, agobiado
y afligido mi espíritu, apenas
de su cárcel estrecha y sombría
osa dejar las tinieblas
para bañarse en las ondas
de luz que el espacio llenan.

Cual si en suelo extranjero me hallase,
tímida y hosca, contemplo
desde lejos los bosques y alturas
y los floridos senderos
donde en cada rincón me aguardaba
la esperanza sonriendo.

(Rosalia de Castro)

*

Bom dia!

4.12.04
 


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: "ANTES QUERIAM UMA ESTÁTUA QUE LHES DISSESSE OS FUTUROS, QUE UM DEUS QUE LHOS ENCOBRIA"

"Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demónio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demónio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do Demónio? Quem fez que fosse tão frequentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em Babilónia? O de Juno em Cartago? O de Vénus no Egito? O de Dafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião dos oráculos com que o Demónio respondia naquelas estátuas, foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria."
 


PERGUNTA

Depois de ver um homem, que tinha acabado de ser constituído arguido, acusado de crimes de corrupção desportiva, a ser recebido com palmas por 25000 pessoas num estádio onde se dava uma competição desportiva, dá para acreditar nas conversas indignadas dos portugueses contra os corruptos ?
 


AR PURO


Levitan
 


EARLY MORNING BLOGS 377

Walkers With The Dawn


Being walkers with the dawn and morning,
Walkers with the sun and morning,
We are not afraid of night,
Nor days of gloom,
Nor darkness--
Being walkers with the sun and morning.


(Langston Hughes)

*

Bom dia!

3.12.04
 


JÁ SE PERCEBEU

como uma parte da campanha de Santana Lopes será feita: o governo caiu porque os grandes interesses económicos não queriam o OE, as suas medidas de combate à fraude fiscal, e de imposição de impostos à banca. É hábil, apela ao populismo, e aos amadores das teorias da conspiração, mas não é verdade.
   


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: "O HOMEM, FILHO DO TEMPO"

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.

A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido, porque vedado.
 


LÓGICAS

É muito simples perceber a diferença entre lógicas pessoais e partidárias e o interesse nacional. Aqueles que esperam (mais do que isso, desejam) que Santana Lopes concorra a eleições, as perca e depois, vulnerável, possa perder o partido, seguem uma estrita lógica pessoal e de grupo partidário. A esses pouco importa que Sócrates e o PS possam governar quatro anos, ou que Santana Lopes ferido possa arrastar o PSD para uma vendetta colectiva. Quem pensa na situação nacional tem urgência.
 


AR PURO


Levitan
 


EARLY MORNING BLOGS 376

Waiting


Today I will let the old boat stand
Where the sweep of the harbor tide comes in
To the pulse of a far, deep-steady sway.
And I will rest and dream and sit on the deck
Watching the world go by
And take my pay for many hard days gone I remember.

I will choose what clouds I like
In the great white fleets that wander the blue
As I lie on my back or loaf at the rail.
And I will listen as the veering winds kiss me and fold me
And put on my brow the touch of the world's great will.

Daybreak will hear the heart of the boat beat,
Engine throb and piston play
In the quiver and leap at call of life.
To-morrow we move in the gaps and heights
On changing floors of unlevel seas
And no man shall stop us and no man follow
For ours is the quest of an unknown shore
And we are husky and lusty and shouting-gay.


(Carl Sandburg)

*

Bom dia!

2.12.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: JUVENTUDE



Temos pois aqui uma jovem galáxia, fulgurante nos seus apenas 500 milhões de anos, fotografada por esse velho telescópio Hubble um pouco voyeur. O azul é novo, o vermelho é velho.
 


INÉRCIA

A mim da política interessam-me as reformas. Nem sequer é preciso dizer quais são, toda a gente sabe quais são, ou, pelo menos, o sentido que devem ter. Sei também que tudo está organizado para que não se façam. Partidos, sindicatos, corporações não querem que se mexa nem um átomo nos seus pequenos poderes. Uma população com fracos recursos, com uma memória próxima da pobreza, com baixos níveis de literacia, adormecida pelo garantismo do estado e por uma sociedade dominada por mecanismos de cunha e patrocinato, também não se mobiliza facilmente para a mudança.

O estado é uma poderosa máquina de geração e manutenção da mediocridade e pesa sobre todos, distribuindo os mínimos e castrando o mérito e a diferença, favorecendo a dependência subsidiada. Os governos preferem ter este estado, com os seus inúmeros cordelinhos e fios de poder, e não querem perder nem um só deles, mesmo que tudo seja frágil. A inércia é muita.

Só há três antídotos a esta situação: poder forte, com a força dos votos, autoridade que vem da credibilidade, e vontade de mudança. A conjugação é raríssima, mas existe.
 


DESTINO (ESTE É QUE ESTÁ MESMO ESCRITO NAS ESTRELAS)

O nosso caminho não é a miséria. Disso estamos mais ou menos protegidos pela UE. É a mediocridade, e a mediocridade implica a miséria para alguns, o remediamento sem folga para uma vasta maioria, e o remediamento com folga para a classe média. Quanto aos ricos, esses defendem-se sempre bem. São internacionalistas e por isso podem viver em Portugal, com mudanças, ou sem elas. O nosso atraso e mediocridade estão-se a agravar e vão continuar a agravar-se. Esta situação é particularmente grave (e vergonhosa) porque isto ocorre ao fim de milhões e milhões de contos de apoios comunitários que não se repetirão. É um lugar comum dizer que temos uma última oportunidade numa ecologia ainda não inteiramente desfavorável, antes da UE ou implodir ou realmente se voltar a Leste. Talvez tenhamos mais “últimas oportunidades”, mas desconfio que não abundem.
 


SAMBA DE UMA REFORMA SÓ

Não me importava que houvesse um governo minimalista que tocasse o samba de uma reforma só. Que dissesse: vou gerir tudo como é habitual os governos gerirem, com competência, mas sem veleidades de mudar nada. No entanto, reformarei de fundo um aspecto da vida pública. Vou, por exemplo, desburocratizar. Onde são precisos cem papéis ficarão um ou dois. Onde demora um ano, vai demorar uma semana. E todas as pedras necessárias serão viradas. E durante quatro anos serei julgado por objectivos, como agora se diz. Talvez alguma coisa mudasse.
 


AS NOSSAS FORMAS PARTICULARES DE CEGUEIRA

Nas crises o que mais discutimos é a parte da economia que depende do estado, por singular coincidência a área da política onde os governos têm menos margem de manobra e o comando é de Bruxelas e da globalização. A parte da política onde o comando nacional é quase total e que é mais importante para nos arrancar da mediocridade – como por exemplo a educação e a formação profissional – nunca é discutida. Ouvimos economistas e empresários sobre a crise e nunca professores, estudantes ou operários.
 


AR PURO / LUZ PURA


Levitan

O mais parecido com a luz de ontem.
 


EARLY MORNING BLOGS 375

Parlez-Vous Francais?


Caesar, the amplifier voice, announces
Crime and reparation. In the barber shop
Recumbent men attend, while absently
The barber doffs the naked face with cream.
Caesar proposes, Caesar promises
Pride, justice, and the sun
Brilliant and strong on everyone,
Speeding one hundred miles an hour across the land:
Caesar declares the will. The barber firmly
Planes the stubble with a steady hand,
While all in barber chairs reclining,
In wet white faces, fully understand
Good and evil, who is Gentile, weakness and command.

And now who enters quietly? Who is this one
Shy, pale, and quite abstracted? Who is he?
It is the writer merely, with a three-day beard,
His tiredness not evident. He wears no tie.
And now he hears his enemy and trembles,
Resolving, speaks: "Ecoutez! La plupart des hommes
Vivent des vies de desespoir silenciuex,
Victimes des intentions innombrables. Et ca
Cet homme sait bien. Les mots de cette voix sont
Des songes et des mensonges. Il prend choix,
Il prend la volonte, il porte la fin d'ete.
La guerre. Ecoutez-moi! Il porte la mort."
He stands there speaking and they laugh to hear
Rage and excitement from the foreigner.


(Delmore Schwartz)

*

Bom dia!

 


VER A NOITE

Sem luz, porque caiu a rede eléctrica. Com esta Lua brilhante, iluminando as nuvens por detrás, com as nuvens escuras da chuva, está uma luz esbranquiçada que se espalha por tudo. Parece o ambiente do "Noivado do Sepulcro".

1.12.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: COMO É QUE SE FICA



ao ver isto?
 


OUVINDO CANÇÕES DE BOURVIL

enquanto escrevo sobre a crise da incubadora. Apropriado. Não tenho a letra, mas seria uma boa contribuição para o debate da "excepção cultural" a Chanson Anglaise de 1948. Mas fica agora a Tactique du Gendarme do filme Le Roi Pandore de 1949

Un gendarme doit avoir de très bons pieds.
Mais c'est pas tout
Mais c'est pas tout.
Il lui faut aussi de la sagacité.
Mais c'est pas tout
Mais c'est pas tout.
Car ce qu'il doit avoir et surtout
C'est d'la tactiqu',
De la tactiqu', dans la pratiqu'
Comm' la montre a son tic tac
Le gendarme a sa tactiqu'.
Attendez un peu que j'vous expliqu'
La taca taca tac tac tiqu'
Du gendarme
C'est de bien observer
Sans se fair' remarquer.
La taca taca tac tac tiqu'
Du gendarme
C'est d'avoir avant tout
Les yeux en fac' des trous.
Contravention
Allez, allez,
Pas d'discussion
Allez, allez,
Exécution
Allez, allez,
J'connais l'métier
La taca taca tac tac tiqu',
Du gendarme
C'est de verbaliser
Avec autorité.

Il y a ceux qui n'ont pas d'plaque à leur vélo.
Mais c'est pas tout
Mais c'est pas tout.
Faut courir après tous les voleurs d'autos.
Mais c'est pas tout
Mais c'est pas tout.
Les gens disent oh les gendarmes quand on a
Besoin d'eux, ils ne sont jamais là.
Je réponds du tac au tac
Car pensez j'ai ma tactiqu',
Attendez un peu que j'vous expliqu'

Refrain

La taca taca tac tac tiqu',
Du gendarme
C'est d'être toujours là
Quand on ne l'attend pas.
La taca taca tac tac tiqu',
Du gendarme
C'est d'être perspicac'
Sous un p'tit air bonnac'
Contravention
Allez, allez,
Pas d'discussion
Allez, allez,
Exécution
Allez, allez,
J'connais l'métier
La taca taca tac tac tiqu',
Du gendarme
C'est d'être constamment
A ch'val sur l'règlement.
 


NOTAS DA CRISE DA INCUBADORA

Assisti a uma série de debates sobre a situação política com alguns dos mais importantes jornalistas portugueses na SIC Notícias. São pessoas bem informadas, conhecedoras e quase todas capazes na sua difícil profissão. São jornalistas do topo da profissão. Muito do que discutiram foi sensato, mas falta qualquer coisa, em grande parte porque abunda outra: o cinismo. A forma peculiar do cinismo dos jornalistas que comunica mas não é semelhante à descrença dos portugueses com os políticos.

Talvez do longo convívio com os políticos – estes jornalistas fazem parte de uma pequena minoria dos portugueses (os outros são os políticos) que passam o dia inteiro a falar de política – nasça uma parte importante desse cinismo. Desconto já os seus posicionamentos políticos, que se percebem com clareza. Não é daí que vem o mal. É do cinismo.

O cinismo gera um grande conservadorismo nas análises. O cinismo leva-os a valorizar a continuidade, a esbater as diferenças e o resultado é que as suas análises resultam pouco dinâmicas. Existe a tendência para enunciar aquilo que chamei no passado o argumento hegeliano: o que está tem muita força. (Seria aliás interessante ouvir o que os mesmos jornalistas disseram quando se constituiu o governo Santana Lopes para ver como o que previram esteve longe de acontecer. Uma das linhas de raciocínio foi “vão ver como Santana Lopes vai ser diferente do que foi até agora…” Viu-se.)

Um exemplo que me parece típico foi a forma abstracta como analisaram a próxima campanha eleitoral, com PSD e PP a concorrerem separados, como se fosse possível fazê-lo sem acrimónia ou conflito, uma impossibilidade prática a não ser que o PP se queira suicidar, o que é improvável. Os efeitos da bipolarização, inevitável em campanha, estiveram também em grande parte ausentes da análise.

O papel dos conflitos internos dentro dos partidos igualmente. Por exemplo, não disseram uma linha sobre aquilo que hoje está na cabeça dos dirigentes dos aparelhos partidários, dos deputados, que não são grandes análises, nem é sequer ganhar as eleições, mas fazer as listas de deputados. Os factores de perturbação internos para uma direcção como a de Santana Lopes são consideráveis, até porque nunca assumiu esta função e é visto dentro do partido como um chefe de facção.

(Continua)
 


AR PURO / UMA JANELA EM ROMA


Johan Tischbein, Goethe à janela da sua casa em Roma
 


EARLY MORNING BLOGS 374

Dream Song 29


There sat down, once, a thing on Henry's heart
só heavy, if he had a hundred years
& more, & weeping, sleepless, in all them time
Henry could not make good.
Starts again always in Henry's ears
the little cough somewhere, an odour, a chime.

And there is another thing he has in mind
like a grave Sienese face a thousand years
would fail to blur the still profiled reproach of. Ghastly,
with open eyes, he attends, blind.
All the bells say: too late. This is not for tears;
thinking.

But never did Henry, as he thought he did,
end anyone and hacks her body up
and hide the pieces, where they may be found.
He knows: he went over everyone, & nobody's missing.
Often he reckons, in the dawn, them up.
Nobody is ever missing.


(John Berryman)

*

Bom dia!

© José Pacheco Pereira
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