ABRUPTO

30.4.04
 


COMO DE COSTUME

na TSF, hoje à tarde, a habitual diferença de tratamento noticioso conforme as pessoas (e, claro, conforme as políticas). Neste caso, entre Durão Barroso, Jorge Sampaio e Louçã.

As declarações do Presidente da República sobre a Europa e os EUA são, pelo menos, tão polémicas como as de Durão Barroso sobre Espanha. Só que, no segundo caso, “gera-se” a polémica indo imediatamente perguntar a terceiros sobre se pensam que elas vão “prejudicar” as relações com Espanha. O mote é dado pelas perguntas dos jornalistas e, neste caso, mais que justificado. Não seria normal fazer o mesmo e ir perguntar a terceiros se as palavras de Jorge Sampaio não prejudicam as nossas relações com os EUA, e se os conselhos aos novos países europeus não são paternalistas? Também me parece mais que justificado Só que ninguém o faz.

E quanto a Louçã? Porque é que ninguém se lembra de lhe perguntar se, depois dos desmentidos da CGD e da ausência de provas que revelou para as suas graves acusações, não deveria tirar consequências e pedir, pelo menos, desculpa? Qual quê, o homem tem um estatuto especial, pode acusar todos de tudo, com a sua total arrogância moral, que ninguém se importa.
 


MEMÓRIA ELÁSTICA

Foi interessante o Barnabé lembrar-se de tudo e mais alguma coisa – e algumas memórias do 25 de Abril serão referidas pelo seu mérito e informação nos Estudos sobre o Comunismo – e esquecer-se do passado colectivo das organizações que lhe são próximas, em particular o Bloco de Esquerda.

Há muita gente que se incomoda com o seu passado, o que não é o meu caso, como se sabe. Também me irrita a mim essa falta de memória selectiva. O Barnabé, por causa disso, atacou Durão Barroso, que não é o melhor exemplo dessa amnésia. Mas, e as organizações que também se esquecem do seu passado? Onde é que há qualquer memória colectiva do que foram e porque é que mudaram? Ou não mudaram? Por exemplo, quando é que a UDP deixou de ser maoísta? Sabem? E quando é que deixou de ser marxista-leninista, com aquele “partido comunista” a controlar a “frente”? Quando é que o PSR deixou de ser trotsquista, ou, como eles diziam, “marxista-revolucionário”? Deixou?

É curioso que sabemos mais da genealogia das mudanças dos ex-comunistas, que se juntaram ao BE, do que sabemos dos seus esquerdistas. O que é que Fazenda ou Louçã disseram em 1975, 1976, 1980, 1990, de que não se lembram hoje? Onde está a reflexão que certamente fizeram? Ou tiveram sempre razão? Ou apenas “evoluíram” como o 25 de Abril?
 


GEHRY

Vendo o Guggenheim em Bilbau quem é que podia alguma vez imaginar que um edifício de Gehry não fosse caríssimo? Claro que o Parque Mayer tinha que encravar, ou , em alternativa, gastar-se-á tanto dinheiro que o seu impacto visual, qualidade e uso tem que estar garantidos. Eu não digo que não valha a pena, mas exige-se muito mais prudência ou então aquela ousadia que vem de muito estudo e de uma grande intuição de gosto, que duvido tenha havido ou exista.
 


ASTROS

Para breve: um eclipse da Lua, dois cometas, uma passagem de Vénus em frente ao Sol.

Para os cometas, ainda não se sabe se como vai ser o espectáculo.

Para a Lua, as palavras enviadas por José Matos:

Na próxima Terça, vamos ter um eclipse total da Lua. O nosso satélite entrará na sombra da Terra às 19:48. Pouco a pouco, irá escurecer até atingir a fase de totalidade às 20:52. A essa hora a Lua acabou de nascer no nosso horizonte, o que quer dizer que não vamos ver o começo do eclipse. Mesmo assim, vale a pena ver o meio e o fim.

Para o trânsito de Vénus, o livro de Nuno Crato/Fernando Reis/Luís Tirapicos da Gradiva, tem as explicações e os óculos que permitem ver o pequeno ponto a atravessar a orbe solar. Sem esses óculos, olhar para o Sol cega.
 


AQUI TÃO PERTO 5 / BIBLIOFILIA





O livro publicado por Basta Ya, Euskadi, Del Sueño a la Verguenza. Guia Útil del Drama Vasco, Barcelona, 2004, é uma boa introdução actualizada ao “drama basco”.
 


MOVING PICTURES

O Guggenheim em Bilbau tem fama de valer a pena ser visitado pelo edifício de Gehry, mas de, como museu, “ter poucas coisas”. Tem de facto “poucas coisas”, mas as que tem – na grande sala de pop arte por exemplo, exigem aquele espaço interior imenso para se “verem”. A dimensão conta e muito para se verem as Venus de Dine ou o ferro ondulado dos caminhos interiores das esculturas.


Mas, como a sorte me protege, está no museu uma exposição das mais interessantes para se perceber, a quente, o frio devastador do discurso estético contemporâneo. Solidão, morte, terror, gestos áridos, perplexidade sem respostas, fealdade, solidão, outra vez em tudo, aparece nas fotografias, nos filmes, e nos objectos de Moving Pictures.

As fotos de James Casebere de espaços interiores artificiais, espaços-tipos que não existem em lado nenhum, espaços-tipo da prisão perfeita, da cela perfeita, do asilo-perfeito, da arrumação-perfeita.

Um pequeno filme de vídeo de Patty Chang, duas figuras humanas que frente a frente comem um ovo ou uma cebola, com as bocas quase sem distância no que podia ser um jogo, mas é uma encenação corporal da violência.

Uma imagem ao espelho de Douglas Gordon sobre um pecado mais original do que o original: “Guilty”.

De novo, o corpo como nunca o vemos em pequenos vídeos minimalistas de Ann Hamilton. Agua a escorrer, seixos na boca. Não é natural ter seixos na boca. Nada é natural, tão próximos da trivialidade e nesse pequeno gesto de mastigar, mover, seixos redondos na boca, e há um calafrio de estranheza. Nós somos assim / nós não somos assim / nós não queremos ser assim / nós somos assim, irreconhecíveis.

Mas o mais devastador é um vídeo de desenhos animados de William Kentridge, entre a banda desenhada e o desenho expressionista. Só visto.



 


AQUI TÃO PERTO 4

Com excepção do "domina o árabe", o que não é verdade, uma síntese fiel do que disse em Espanha está aqui.
 



Pieter Bruegel, o Velho
 


EARLY MORNINGT BLOGS 193 / "I will twist the tongue of Truth"

Para os meus amigos bascos e navarros, esta poesia sobre a "besta" que tão bem conhecem.

The Rhyme of the Beast

Lo, the Beast that rioteth,
Sick with hate and coveting --
To the sons of men he saith,
I will show you a new thing.

This, the Earth, which was the Lord's,
Prodigal of rose and vine,
I will desolate with swords
Till it own that it is mine.

Every brow must bear my brand
Every wrist must wear my steel,
Every throat be for my hand,
Every neck be for my heel.

I will thrust into your souls
Unnamed terrors and despairs --
Populate the air with ghouls
And the sea with murderers.

While I prove that war is war,
Saints shall mourn and angels weep,
Star commiserate with star,
Deep cry out to shuddering deep;

Tigers marvel in their lust
At the tale of blood and pain,
Pity move the insensate dust,
And the very stones complain.

I will twist the tongue of Truth
Till her speech be nought but lies,
I will kill the faith of Youth,
And the hope in Age's eyes.

Not the altar, nor the tomb,
Nor the Sufferer on the Tree,
Nor the babe within the womb
Shall be sacred unto me.

I will rend and rage and cog,
Rob and ravish till I die;
I will be the Supreme Hog,
And the world shall be my sty.


(Thomas William Hodgson Crosland)

 


AQUI TÃO PERTO 3

as paredes com palavras de ódio numa língua estranha, o euskera, uma língua inventada pela política nacionalista. Lá longe, escrito num muro do cemitério, “gora ETA”. Por uma vez num sítio apropriado.
 


AQUI TÃO PERTO 2

onde, para fazer uma vulgar conferência sobre o terrorismo, tenho que ter protecção policial.
 


AQUI TÃO PERTO

há uma geografia do medo. Em Portugal ninguém liga. Só quando há mortos passa um pequeno sobressalto. Mas os mortos são só a parte de cima do iceberg, a maioria do gelo está debaixo de água. Ninguém liga. Preferem-se causas exóticas, politicamente mais aceitáveis, ideologicamente correctas, multiculturais, altermundialistas.

O que a ETA conseguiu só se consegue entender completamente lá. Quando as conversas sobre política se transformam num sussurro incomodado, quando num restaurante ou num bar passa perto outra pessoa. Quando, por todo o lado, aparece uma história de violência ou coragem.

Sabe, foi aqui, vinha a entrar e dois etarras metralharam-no. Levou vinte e oito tiros e sobreviveu.” (à porta do Diário de Navarra)

Tinha estado a ver as fotografias do casamento dele. Depois mataram-no”. (No parlamento regional.)

É preciso ser valente para ser alcaide em X. É uma mulher valente.” (Em X.)

29.4.04
 



Guillaume Vogels
 


PORQUÊ?

O Abrupto esteve interrompido porque o seu autor foi falar de terrorismo, a terras onde ele existe.
Detalhes em breve.

27.4.04
 


25 DE ABRIL EM PUTEAUX

Sala de espectáculos da municipalidade. Madame la maire adjointe na sala. No palco, a Orquestra Ligeira do Exército, resumindo OLE. Sem acento, mas está lá subentendido. Começa a função para comemorar o 25 de Abril. E aqueles militares, homens e mulheres, alinhadinhos nas suas fardas, transfiguram-se numa orquestra que envergonha a do Casino Estoril. Desde a soldado Biscoito, que canta de Amália ao Elvis, passando pela cabo Tuca, até a um sargento que enche o palco com uma bela voz e é daquelas pessoas que se sabe que se estiver numa sala toda a gente se diverte, tudo se torna "ligeiro".Benny Goodman, Elvis, canções de cabaret, os nossos sargentos - a patente dominante - fazem muito bem o que estão a fazer. Mas estava-se em Puteaux e quando a cabo Tuca anunciou que se iria tocar e cantar música portuguesa, um medley da Amália, e uma rapsódia de canções do Minho ao Algarve, a sala soltou um som de agrado fundo, de pertença.
 


25 DE ABRIL EM ACHÈRES

Espaço Boris Vian. Municipalidade comunista com dez por cento de portugueses. Grande fábrica da Peugeot. Uma rapariga portuguesa/francesa? pergunta mesa a mesa: "Você quer morue ou pintade?". Os nossos bravos compatriotas na festa do 25 de Abril organizada pela Associação Cultural Desportiva dos Portugueses Benfica de Achères querem "morue", não querem a "pintada" e emocionam-se com a "Grândola , vila morena".
 


EARLY MORNING BLOGS 192

Cada Coisa


Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.


(Ricardo Reis)


*

Bom dia!

26.4.04
 


ITINERÂNCIAS

por causa do 25 de Abril. Em breve, haverá notícias sobre alguns pequenos 25 de Abril em que participei junto com emigrantes. Com "morue" e sem "morue", com música ou sem ela, com maires comunistas e em "zonas livres de armas nucleares" e com o fundo de... Paris é uma festa.

25.4.04
 


25 DE ABRIL DE 1974

o dia singular, fora da intimidade, que mais mudou a minha vida.

23.4.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: PARA CIMA



Sobe, sobe, pequeno "Espírito", para as montanhas altas. Não são altas? São, são. Tão longe que são sempre altas.
 



Degas, Le bureau de coton
 


EARLY MORNING BLOGS 191

Dr. Sigmund Freud Discovers the Sea Shell


Science, that simple saint, cannot be bothered
Figuring what anything is for:
Enough for her devotions that things are
And can be contemplated soon as gathered.

She knows how every living thing was fathered,
She calculates the climate of each star,
She counts the fish at sea, but cannot care
Why any one of them exists, fish, fire or feathered.

Why should she? Her religion is to tell
By rote her rosary of perfect answers.
Metaphysics she can leave to man:
She never wakes at night in heaven or hell

Staring at darkness. In her holy cell
There is no darkness ever: the pure candle
Burns, the beads drop briskly from her hand.

Who dares to offer Her the curled sea shell!
She will not touch it!--knows the world she sees
Is all the world there is! Her faith is perfect!

And still he offers the sea shell . . .

What surf
Of what far sea upon what unknown ground
Troubles forever with that asking sound?
What surge is this whose question never ceases?


(Archibald MacLeish)

*

Bom dia!

22.4.04
 


POEIRA DE 22 DE ABRIL

Hoje , há oitenta e nove anos, duas divisões coloniais francesas na frente de Ypres notaram que as granadas lançadas pelos alemães espalhavam um fumo diferente. Os soldados começaram a cair no chão, com um enjoo intenso seguido de desmaio. Muitos morreram. O Tribune de Nova Iorque chamava-lhe gases “asfixiantes”. Era um composto de cloro. O primeiro ataque generalizado com gases da guerra tinha sido realizado. A mãe de todas as armas do nosso século, nosso, do XXI, começara a sua tenebrosa função.
 


DE REPENTE

e quase em silêncio, muda quase tudo. Isto será votado hoje por uma maioria PSD-PP-PS, no âmbito de uma revisão constitucional que abre o caminho à Constituição europeia.

• Os tratados da União Europeia e as normas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna portuguesa.
• Portugal pode exercer "em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, os poderes necessários à construção e aprofundamento da União Europeia".


Verdadeira votação de “sistema”, de establishment. O PSD e o PS evitam fazer barulho, do PP nem um sussurro. Como se não fosse importante.

Agora é ainda mais vital a luta pelo referendo, logo que haja o texto definitivo da Constituição, com os arranjos finais dos governos no Conselho. Se houver coragem de levar o texto da Constituição a todos os votos possíveis, referendos, parlamentos, etc., na maioria dos países europeus – e deste ponto de vista a decisão de Blair é muito positiva - a UE ganha um acrescento de legitimidade democrática, de que bem precisa há muito tempo. Mas duvido que o texto, de génese duvidosa numa Convenção que se arrogou poderes que não tinha, e fruto de todas as ambiguidades da Europa de hoje, passe esse escrutínio.

 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: MAIS UM NOVO OLHAR



em algo que nunca nenhum mortal tinha visto. O mundo cresce. Um pouco mais de esforço, senhor Malthus, que ainda não é desta.
 


1500

Hoje prevê-se a ida a plenário, no Parlamento Europeu, de um documento que exige, só ele, mil e quinhentas votações. Fazem-se esforços de bom senso para as diminuir, mas ninguém quer prescindir da sua emenda sobre a divisão do artigo X ou Y.
 



Albrecht Dürer
 


EARLY MORNING BLOGS 190

Everyday she takes her morning bath, she wets her hair
Wraps a towel around her as she's heading for the bedroom chair
Slipping into stockings, stepping into shoes,
Dipping in her pocket of her rain coat...

It's just another day...

At the office where the papers grow, she takes a break
Drinks another coffee and she finds it hard to stay awake

It's just another day...

So sad, so sad... Sometimes she feels so sad
Alone in her apartment she'd dwell
Till the man of her dreams comes to break the spell

Ah... Stay... Don't stand around
And he comes and he stays but he leaves the next day
So sad... Sometimes she feels so sad

As she posts another letter to the sound of five,
People gather round her and she finds it hard to stay alive

It's just another day...


(Paul Mc Cartney e os Wings, cortesia de A.)

21.4.04
 


BIBLIOFILIA: MUT ZUR ANGST VOR DEM NICHTS / "A CORAGEM DE DEFRONTAR O TERROR DO NADA" (HEIDEGGER)

Joachim Fest, Inside Hitler´s Bunker. The Last Days of the Third Reich, Londres, Macmillan, 2004.

Não sei quantas vezes li descrições dos últimos momentos de Hitler no seu bunker berlinense, mas o próprio facto de ter acabado de ler mais uma mostra o fascínio que esses momentos têm. Não sou só eu, é uma multidão de pessoas que esgota e torna em best sellers tudo o que diga respeito a estes dias de Abril de 1945. Em bom rigor, sabe-se muito, e o que não se sabe dificilmente se irá saber. Não é sequer o mistério das versões contraditórias sobre os momentos finais de Hitler que explicam, nos dias de hoje, o interesse pelo fim do Reich. É o pathos da personagem Hitler e da sua corte final, e a tentativa de explicação de algo muito difícil de explicar: a pulsão destrutiva, o Gotterdamerung macabro desses dias. Pode também ser que procuremos encontrar uma racionalidade para algo intrinsecamente irracional e inexplicável, e o nosso fascínio seja afinal o traço de uma recusa psicológica face ao que não tem explicação, ao que de todo não controlamos.

O livro de Joachim Fest é magnífico porque combina uma descrição narrativa depurada dos últimos dias do bunker , incluindo o que se sabe das fontes soviéticas entretanto tornadas disponíveis, com uma interpretação sobre Hitler e os seus companheiros dos últimos dias, em particular Goebbels. A sua tese - Hitler nunca "construiu", só destruiu, era movido por uma vontade de destruição que nos últimos dias da guerra se voltou também contra os alemães - salienta a singularidade da personagem. Sem Hitler tudo seria diferente, mas Hitler é uma excepção histórica, nunca quis deixar qualquer "obra" que não fosse a terra queimada, onde povos e nações sucumbiram. Pouco a pouco, a força da sua personalidade, a sua vontade inquebrável, seleccionou uns poucos seguidores que espelhavam a mesma vontade de destruir, hipnotizou muitos outros numa obediência cega, e depois, pela corrupção do dinheiro e do poder, alargou essa base dos fanáticos para os oportunistas. Estes deixaram-no no fim , os outros acabaram com ele ou como ele. E não foi só Goebbels e a mulher, que se suicidaram depois de matarem os seis filhos, mas muitos outros oficiais das SS, motoristas, secretárias, que ficaram até ao fim, quase cem pessoas nos últimos dias de Abril.

Fest retrata bem essa comunidade alucinada, que tentou continuar a guerra até ao último berlinense, até ao último alemão, uma guerra já perdida. Uma das perplexidades nesta atitude é o seu carácter pouco "moderno", numa época em que as guerras terminam quase de forma burocrática, algo para que o regime nazi tinha também apetência. Veja-se Eichmann revisto por Hanna Arendt.

Mas não. Hitler queria levar tudo e todos consigo, num acto de imolação que incluía uma suprema vingança contra todos os que o tinham "traído", inclusive o povo alemão, e, de certo modo, contra si próprio, porque tinha mostrado "fraqueza", tinha-se enredado em compromissos a que agora atribuía a derrota.

(Continua)

 


EARLY MORNING BLOGS 189

La synagogue


Ottomar Scholem et Abraham Loeweren
Coiffés de feutres verts le matin du sabbat
Vont à la synagogue en longeant le Rhin
Et les coteaux où les vignes rougissent là-bas

Ils se disputent et crient des choses qu'on ose à peine traduire
Bâtard conçu pendant les règles ou Que le diable entre dans ton père
Le vieux Rhin soulève sa face ruisselante et se détourne pour sourire
Ottomar Scholem et Abraham Loeweren sont en colère

Parce que pendant le sabbat on ne doit pas fumer
Tandis que les chrétiens passent avec des cigares allumés
Et parce qu'Ottomar et Abraham aiment tous deux
Lia aux yeux de brebis et dont le ventre avance un peu

Pourtant tout à l'heure dans la synagogue l'un après l'autre
Ils baiseront la thora en soulevant leur beau chapeau
Parmi les feuillards de la fête des cabanes
Ottomar en chantant sourira à Abraham

Ils déchanteront sans mesure et les voix graves des hommes
Feront gémir un Léviathan au fond du Rhin comme une voix d'automne
Et dans la synagogue pleine de chapeaux on agitera les loulabim
Hanoten ne Kamoth bagoim tholahoth baleoumim


(Guillaume Apollinaire)

*

Bom dia!

20.4.04
 


BIBLIOFILIA: PORQUE É QUE OS INTELECTUAIS NÃO GOSTAM DO LIBERALISMO?



Vale a pena, vale mesmo a pena, porque as respostas à pergunta dizem muito sobre os intelectuais, mais do que sobre o liberalismo.

 


NO PARLAMENTO EUROPEU 2

Que votações são estas? Um pouco de tudo, muita matéria ambiental, muita regulamentação. Um dos núcleos mais importante da votação de hoje foi um "relatório sobre a proposta de directiva do PE e do Conselho relativa às pilhas e acumuladores assim como às pilhas e acumuladores usados". Porquê tão elevado número de emendas e tão grande afã dos deputados sobre estes textos? Em grande parte, devido à movimentação dos grupos de interesse europeus ligados às indústrias respectivas e, num outro sentido, às cada vez mais poderosas e fortemente subsidiadas indústrias ambientais. Cada grupo de interesses encontra, nos partidos políticos, diferentes "ecologias", umas mais próximas da "indústria", outras mais próximas do "ambiente" (e também da "indústria" do ambiente). O conflito entre estes interesses traduz-se numa chuva de emendas, pró ou contra a "indústria", com os deputados a actuar em função de grupos de interesse. Se isto, na cultura política portuguesa, é visto como vergonhoso, nos países mais industrializados, em particular do norte da Europa, é tido como normal.

Um exemplo da forte pressão dos interesses é uma banda desenhada feita com um grafismo muito semelhante ao de uma outra editada pelo PE. Nessa banda desenhada, intitulada Powerless for once, editada pelo grupo de interesse European Portable Battery Association, uma jovem deputada europeia tem um sonho em que nada funciona. Não toca o despertador, não há luz na garagem, não há comando para abrir o carro, etc., etc. Um pesadelo, sem pilhas. Acorda estremunhada e diz "Sem electricidade! Sem baterias! Que pesadelo! TENHO que ir ao meu Grupo e votar contra as emendas." A imagem final é o Plenário de Bruxelas (por acaso o voto foi em Estrasburgo hoje), em que o Presidente diz:" A posição do PE é clara: as emendas ao relatório sobre as pilhas foram rejeitadas pela maioria dos membros!"

É por essas e por outras que há quase cem emendas ao relatório das pilhas.
 


CORREIO

Desde ontem que a Telepac resolveu avariar-me a caixa do correio, e, numa fabulosa demonstração de como as questões dos bits se podem tratar como as dos átomos, apesar de avisada, ainda não conseguiu resolver o problema. Por isso, amigos que enviaram correio verdadeiro, vírus que dizem "hi" e "hello" , e vendedores de Vicodin e Xanax, têm que esperar mais um pouco, não se sabe bem porquê.
 


NO PARLAMENTO EUROPEU

hoje, votou-se, em duas horas, seiscentos e vinte artigos, emendas, resoluções, etc. Seiscentas e vinte e duas votações.
 


PAPEL DOS TROTSQUISTAS EM FRANÇA

Um filme muito interessante sobre os trotsquistas passou na televisão francesa. Ou melhor, apenas sobre um grupo trotsquista, a ex-OCI / Parti des Travailleurs, os "lambertistas", e ficaram de fora os trotsquistas do grupo de Krivine, a que está ligado o PSR de Francisco Louçã, na IV Internacional.

Os "lambertistas" têm uma fama muito própria e uma "cultura" de partido que lhes vem da conjugação de serem um grupa ultra-conspirativo, muito fechado e sectário, com uma prática de "entrismo" nos sindicatos e partidos "burgueses", sem revelarem as suas reais convicções ideológicas. Os "lambertistas" tiveram a sua hora de glória quando se soube que Leonel Jospin, então primeiro ministro, tinha mentido sobre a sua pertença ao grupo e, já secretário geral do PS, reunia clandestinamente com Lambert para lhe passar informações e receber instruções.

A reportagem da televisão mostrava as extensas relações, pactadas ou escondidas, entre o PSF, o sindicato Force Ouvriére, e o grupo de Lambert, e o modo como este actuava fornecendo serviços de segurança, "limpando" as salas de opositores, organizando grupos para vaias, etc., etc. Não em 1968, mas hoje. O Parti des Travailleurs tem uma face menos simpática do que a LCR de Krivine, mas os métodos e as tradições não variam muito. Em Portugal, ninguém faria uma reportagem deste género sobre o amável Bloco.
 


COMO DE COSTUME

Ontem, a TSF passava uma peça da sua correspondente italiana sobre as reacções em Itália à decisão de Zapatero de retirada das tropas espanholas do Iraque. A peça, informativa e rigorosa, referia que, "por um lado", havia "alguns analistas" que entendiam que a Itália devia seguir o caminho da Espanha, sem citar nomes, e, "por outro", a maioria dos editorialistas da imprensa italiana, incluindo os jornais hostis a Berlusconi, criticavam Zapatero. Seguia-se uma lista dos argumentos desses editoriais, incluindo o "parecer" que se cedia aos grupos terroristas, até à quebra de uma posição comum europeia por Zapatero, numa altura decisiva para a negociação com os EUA, coisas de que se fala pouco em Portugal, dominados que estamos pelo noticiário prosélito sobre o Iraque.

Até aqui tudo bem. Só que, nos noticiários seguintes da TSF, esta peça passa a ser introduzida apenas pelo primeiro "lado", aquele que notoriamente quase não tem papel na economia informativa da correspondente, ou seja, tudo se resume aos italianos quererem seguir o exemplo de Zapatero. Bem sei que isto é uma gota de água numa chuva contínua, mas era tão clara a manipulação da própria peça jornalística, que merece ser registada.

*

No Mar Salgado outros exemplos do "costume" sobre Bush e Kerry.
 


ABRUPTO

Fim do grosso dos trabalhos manuais, princípio do fino. O Abrupto volta hoje à normalidade, se é isso que se lhe pode chamar.
 


EARLY MORNING BLOGS 188

Ali Não Havia

Ali não havia eletricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a "Primeira Epístola aos Coríntios".
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A "Primeira Epístola aos Coríntios" ...
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim...
Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
"Se eu não tivesse a caridade."
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre...
"Se eu não tivesse a caridade..."
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade! ...


(Álvaro de Campos)

*

Bom dia!

19.4.04
 


EARLY MORNING BLOGS 187

Drum


In the early morning before the shop
opens, men standing out in the yard
on pine planks over the umber mud.
The oil drum, squat, brooding, brimmed
with metal scraps, three-armed crosses,
silver shavings whitened with milky oil,
drill bits bitten off. The light diamonds
last night's rain; inside a buzzer purrs.
The overhead door stammers upward
to reveal the scene of our day.Philip Levine
We sit
for lunch on crates before the open door.
Bobeck, the boss's nephew, squats to hug
the overflowing drum, gasps and lifts. Rain
comes down in sheets staining his gun-metal
covert suit. A stake truck sloshes off
as the sun returns through a low sky.
By four the office help has driven off. We
sweep, wash up, punch out, collect outside
for a final smoke. The great door crashes
down at last.
In the darkness the scents
of mint, apples, asters. In the darkness
this could be a Carthaginian outpost sent
to guard the waters of the West, those mounds.
could be elephants at rest, the acrid half light
the haze of stars striking armor if stars were out.
On the galvanized tin roof the tunes of sudden rain.
The slow light of Friday morning in Michigan,
the one we waited for, shows seven hills
of scraped earth topped with crab grass,
weeds, a black oil drum empty, glistening
at the exact center of the modern world.


(Philip Levine)

*

Bom dia!

18.4.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: ENDURANCE



Com novas cabeças, embora o corpo esteja já na meia idade, o “Espírito” e a “Oportunidade” correm mais depressa. Depois não digam que não é a cabeça que manda. Pittura é cosa mentale. Este é o caminho para a cratera Endurance, e “Oportunidade”, boa sonda americana, aprendeu as suas lições de história. Recordou-se da marcha dos mórmons para o lago salgado. "Também eu lá chegarei". Ao outro lado.
 


EARLY MORNING BLOGS 186

A Joana Pereira de Castro devo esta lembrança de “ uma das mais belas “early morning” jamais escritas.” Tem toda a razão: “De tão óbvia, sempre pensei que já tivesse sido incluída no Abrupto e na altura nem a sugeri. Qual não foi o meu espanto quando, na minha leitura integral, não a vi. Como é possível ainda não ter sido incluída? Anda alguém distraído? “. Eu, que ainda há pouco a tinha lido como "never ending story".



Juliet.
Wilt thou be gone? it is not yet near day:
It was the nightingale, and not the lark,
That pierc'd the fearful hollow of thine ear;
Nightly she sings on yond pomegranate tree:
Believe me, love, it was the nightingale.

Romeo.
It was the lark, the herald of the morn,
No nightingale: look, love, what envious streaks
Do lace the severing clouds in yonder east:
Night's candles are burnt out, and jocund day
Stands tiptoe on the misty mountain tops.
I must be gone and live, or stay and die.

Juliet.
Yond light is not daylight, I know it, I:
It is some meteor that the sun exhales
To be to thee this night a torch-bearer
And light thee on the way to Mantua:
Therefore stay yet, thou need'st not to be gone.

Romeo.
Let me be ta'en, let me be put to death;
I am content, so thou wilt have it so.
I'll say yon gray is not the morning's eye,
'Tis but the pale reflex of Cynthia's brow;
Nor that is not the lark whose notes do beat
The vaulty heaven so high above our heads:
I have more care to stay than will to go.--
Come, death, and welcome! Juliet wills it so.--
How is't, my soul? let's talk,--it is not day.

Juliet.
It is, it is!--hie hence, be gone, away!
It is the lark that sings so out of tune,
Straining harsh discords and unpleasing sharps.
Some say the lark makes sweet division;
This doth not so, for she divideth us:
Some say the lark and loathed toad change eyes;
O, now I would they had chang'd voices too!
Since arm from arm that voice doth us affray,
Hunting thee hence with hunt's-up to the day.
O, now be gone; more light and light it grows.


(Shakespeare)
 


ESTUDOS SOBRE COMUNISMO

Em actualização.

17.4.04
 


ABRUPTO

Continuam os trabalhos manuais, com prejuízo do Abrupto. Vamos ver se melhoram as coisas neste fim de semana.
 


EARLY MORNING BLOGS 185

Comme le champ semé en verdure foisonne,
De verdure se hausse en tuyau verdissant,
Du tuyau se hérisse en épi florissant,
D'épi jaunit en grain que le chaud assaisonne :

Et comme en la saison le rustique moissonne
Les ondoyants cheveux du sillon blondissant,
Les met d'ordre en javelle, et du blé jaunissant
Sur le champ dépouillé mille gerbes façonne :

Ainsi de peu à peu crût l'empire Romain,
Tant qu'il fut dépouillé par la Barbare main,
Qui ne laissa de lui que ces marques antiques,

Que chacun va pillant : comme on voit le glaneur
Cheminant pas à pas recueillir les reliques
De ce qui va tombant après le moissonneur.


(Joachim du Bellay)

*

Bom dia!

16.4.04
 



Alexandre François Desportes

15.4.04
 


EARLY MORNING BLOGS 184

Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.

Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...

Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi...
Eu próprio sou aquilo que perdi...

E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri...


(Fernando Pessoa)
 


RTP

Ouvindo a auto-propaganda elogiosa que a RTP Internacional ( e a nacional) passa incessantemente sobre os méritos de si própria ( o que no contexto actual, significa elogiar o governo que a “reformou”), no intervalo dos sucessivos jogos de futebol, dos concursos, etc, ouvindo as palmas socialistas e bloquistas em nome da ideologia do “serviço público”, penso: quando eu for grande e se for do governo quero ter uma televisão como esta.

14.4.04
 


ABRUPTO

tem sido um pouco abandonado, porque o autor tem estado a fazer trabalho manual, na tradição maoista dirão os amargos e os cínicos, na tradição monástica dirão os benévolos. Pouco a pouco voltará aos eixos, eixos muito próprios mas constantes.
 


BIBLIOFILIA

Hoje a Waterstone’s estava cheia de novos livros ingleses e americanos. Cada estante tinha livros a chamar: “comprem-me”. Foi-lhes feita a a vontade. Como resistir, nestes dias de aniversário do saque de Constantinopla, a Jonathan Phililips, The Fourth Crusade and the Sack of Constantinople, Londres, Jonathan Cape; ou a John Keegan, The Iraq War, Londres, Hutchinson, por aquele que melhor escreve sobre a “face da batalha” na guerra; ou a mais uma biografia de peter Ackroyd, Chaucer, Londres , Chatto and Windus e a …e a ...



A menina da caixa sorriu mais que o Smiley e disse-me “volte rápido”. Percebo-a muito bem.
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: "WHERE IS MY MIND?"

O "Espírito" mudou de "mente", lá na solidão marciana. Maravilhas do software, respondendo à dúvida de Descartes de como é que um "fantasma" podia mandar numa "máquina". O "Espírito" mudou de "fantasma", de "alma", de "mente" e fez reboot com sucesso. Está melhor agora, move-se com mais agilidade, dorme mais profundamente, lembra-se melhor. Deve andar a tomar qualquer coisa.

13.4.04
 



Cornelis van Dalem
 


ASSIM É FÁCIL – EXEMPLOS DE MÁ FÉ

Artigo de Domingos Lopes, “Iraque – um ano depois”, no Público de hoje. Em itálico, encontra-se o texto de Domingos Lopes, os comentários estão em tipo normal.

Foi mais ou menos unânime a ideia de que a resistência à ocupação do Iraque irrompeu de forma surpreendente logo após o Presidente dos EUA ter declarado o fim da guerra. Ninguém estaria a contar que, após a derrota espectacular do exército de Saddam Hussein, a resistência surgisse quase no dia seguinte a essa declaração.

Não é verdade. A julgar pelo que todos afirmavam, esperava-se resistência, até numa dimensão muito superior à que existe. Os que previam o apocalipse, agora valorizam a “surpresa”, o argumento muda conforme dá jeito. Assim é fácil.

A credibilidade da política externa dos EUA está cada vez mais abalada. A mãe de todas as justificações foi o perigo da existência das armas de destruição maciça.

Verdade.

Ora, hoje, os próprios defensores deste monumental embuste mudaram de agulha, deixando cair aquilo que consideram ser o motivo essencial para desencadear a guerra e a ocupação, e falam da importância da democracia no Iraque (partindo do pressuposto que o derrube da ditadura por via de uma guerra conduziu à tal democracia) e do combate ao terrorismo.

Não é verdade. Houve quem, na administração americana, falasse sempre da “mudança de regime” e da democratização, e fosse criticado por isso.

Vale a pena trazer para a tona desta discussão o quanto a propaganda dos EUA apostou na ideia de que o problema da resistência tinha a ver com o facto de Saddam andar à solta. Ele representava o alento para largos sectores da sociedade iraquiana que resistia.

Não é verdade que a “propaganda” fizesse depender tudo de Saddam. Assim é fácil.

Aconteceu a sua prisão, aliás do modo mais obsceno possível, inimaginável para todos os que se batem por valores tão importantes como os direitos humanos, incluindo o dos prisioneiros de guerra. A exibição do buraco onde foi apanhado mostrou a todo o mundo que não era aquele homem, vivendo como um rato, que dirigia a resistência que todos os dias explode em diversas frentes.

É verdade que a passagem das imagens não se devia ter feito (e não a captura, o que é diferente), mas será que justifica a descrição empolada: “a sua prisão, aliás do modo mais obsceno possível, inimaginável para todos os que se batem por valores tão importantes como os direitos humanos, incluindo o dos prisioneiros de guerra”, é mais uma falsa indignação. Como é que depois se descrevem violências como a morte e mutilação dos americanos em Falluja?

A prisão de Saddam Hussein não conteve em nada as acções da resistência, antes pelo contrário. Nos últimos tempos recrudesceram os seus actos, sendo hoje contabilizado em mais de 600 as baixas dos EUA, registadas depois de declarado o fim da guerra.

Não é verdade. Se exceptuarmos os acontecimentos das últimas semanas, os atentados contra os americanos tinham baixado significativamente, com uma viragem para alvos iraquianos, muitos deles tendo mais a ver com violência sectária do que com a ocupação.

Quando vemos as manifestações (via televisão) do povo iraquiano, imediatamente percebemos que não é a Al-Qaeda, nem outras organizações terroristas que conseguem mobilizar aquelas multidões. É a população que se move. É a sua identidade e cultura que sentimos que eles sentem humilhadas.

Nunca ninguém atribuiu as manifestações à Al Qaeda. As manifestações são pouco importantes e localizadas, a não ser que se contem como manifestações as peregrinações xiitas. Dizer que é a “população que se move” é puramente ideológico, porque a “população” inclui Basra, a segunda cidade, todo o norte curdo e muitas outras zonas e cidades em que existe acalmia, ou apenas pequenos incidentes e que, por isso, não fazem parte do mapa. Assim é fácil.

Naquele país, berço da civilização, as tropas dos EUA significam para os iraquianos um ultraje à sua arabicidade e ao seu carácter iraquiano.

Como é que se sabe? “Arabicidade”? E os iraquianos que não são árabes?

Em boa medida a questão pode ser esta: os EUA calcularam mal? A sua arrogância imperial levou-os a pensar que a sua tecnologia militar seria suficiente para vencer o povo iraquiano depois de derrubado o ditador? Os americanos desconheciam o poder dos xiitas, maioritários no Iraque? O desejo e a aspiração de autonomia e independência por parte dos curdos? O papel da minoria sunita, submetida à comunidade xiita? Quem pode ou podia ignorar que a tomada de poder pelos xiitas (bem provável) pode reforçar a liderança iraniana? E há outras perguntas que se colocam: na Administração da única superpotência mundial não se sabia isto?

São perguntas válidas.

Ou por se saber que tudo "isto" conduziria a um profundo agravamento da situação no Médio Oriente e no mundo desencadearam a guerra e a ocupação, porque a partir dessa instabilidade mantêm o domínio da região, mantêm a Europa fora dela, após terem conseguido dividi-la em velha e nova, segundo as palavras de Rumsfeld.

Teoria da conspiração pura.

É, porém, ponto assente que na situação reinante no Iraque e na Palestina o terrorismo não foi estancado, antes pelo contrário. Não se esqueça o Afeganistão, onde tudo vem mostrando que a guerra, para além de ter retirado os taliban do poder, quase nada resolveu. A instabilidade é total. Tal como no Iraque e na Palestina.

Do ponto de vista factual ou é adivinhação ou é falso. A “instabilidade no Afeganistão” é localizada, e dizer que a “guerra nada resolveu” é absurdo. Assim é fácil.

Por isso, um ano depois, o balanço da ocupação mostra que ela constituiu um enorme falhanço em todas as frentes: na descoberta das armas de destruição maciça; na democratização do Iraque; na luta contra o terrorismo; na implementação do Roteiro da Paz; na busca da estabilidade para a região e para o mundo.

Tudo misturado e tudo reduzido a um ano de validade. Ou se acerta num ano, ou se muda tudo. Quem é que estabeleceu este prazo? Assim é fácil.

A esta luz cabe com toda a justiça esta pergunta: que está a GNR a fazer naquele atoleiro? Em termos individuais cada um arrisca a vida como entende, incluindo por dinheiro... Em termos de política externa este passo coloca o país num contexto de hostilidade com o Iraque e todo o mundo árabe e muçulmano de modo absolutamente desnecessário e para defender a política dos EUA, a qual é hoje claramente repudiada em Portugal, na Europa e no mundo. A seguir a Bush outros virão, tal como a seguir a Aznar chegou Zapatero. Outros protagonistas chegarão ao Iraque e a todo o Médio Oriente. As contas serão feitas afinal.

Este é o recado político legítimo, não pode ser examinado factualmente.

No final, o autor identifica-se como vice-presidente do Conselho Português para a Paz e Cooperação. Esta organização tem uma história conhecida e ultra-documentada, sendo o principal instrumento da política externa soviética do “pacifismo” unilateral, a favor do Pacto de Varsóvia e contra a OTAN. Era financiada e controlada pela URSS. Nunca se afastou uma linha dessa política externa e por isso compreende-se a genealogia do seu anti-americanismo.

 


VULCÕES



Agora, agora mesmo, o sol já brilha no Piton de la Fournaise.
 


EARLY MORNING BLOGS 183

WHEN I HEARD THE LEARN'D ASTRONOMER.


When I heard the learn'd astronomer;
When the proofs, the figures, were ranged in columns before me;
When I was shown the charts and the diagrams, to add, divide, and measure them;
When I, sitting, heard the astronomer, where he lectured with much applause in the lecture-room,
How soon, unaccountable, I became tired and sick;
Till rising and gliding out, I wander'd off by myself,
In the mystical moist night-air, and from time to time,
Look'd up in perfect silence at the stars.


(Walt Whitman)

*

Bom dia!
Ainda na noite escura.

12.4.04
 


ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

José Matos enviou-me esta "poeira" especial:

"Há 43 anos um jovem cosmonauta de 27 anos de idade preparava-se para fazer um voo histórico. Devia estar nervoso a esta hora. Pela manhã partirá rumo ao espaço. A bordo da pequena cápsula Vostok dará uma volta à Terra em cerca de 90 minutos à velocidade espantosa de 28 000 km/h. Partirá às 9h07 da manhã e voltará à terra mãe às 10h55. Amanhã é o dia dele. Se fosse vivo teria 70 anos de idade. "

 


ESTUDOS SOBRE O COMUNISMO

Em actualização durante o dia de hoje.
 


EARLY MORNING BLOGS 182

Para Constantinopla, no dia do saque, e que coube, muitos anos depois, no "Je suis" de Verlaine.

Je suis l'Empire à la fin de la décadence...


Je suis l'Empire à la fin de la décadence,
Qui regarde passer les grands Barbares blancs
En composant des acrostiches indolents
D'un style d'or où la langueur du soleil danse.

L'ame seulette a mal au coeur d'un ennui dense,
Là-bas on dit qu'il est de longs combats sanglants.
O n'y pouvoir, étant si faible aux voeux si lents,
O n'y vouloir fleurir un peu cette existence!

O n'y vouloir, ô n'y pouvoir mourir un peu!
Ah! tout est bu! Bathylle, as-tu fini de rire?
Ah! tout est bu, tout est mangé! Plus rien à dire!

Seul un poème un peu niais qu'on jette au feu,
Seul un esclave un peu coureur qui vous néglige,
Seul un ennui d'on ne sait quoi qui vous afflige!


(Paul Verlaine)

*

Bom dia!
 


POEIRA DE 12 DE ABRIL

Hoje, há oitocentos anos, os cruzados, francos e venezianos na sua maioria, saquearam Constantinopla, rasgando de vez a divisão entre cristãos latinos e gregos. A cidade conheceu enormes destruições e ficou ferida de morte até à sua conquista pelos turcos, cerca de duzentos e cinquenta anos depois.

Nicetas Choniates descreveu com fúria o saque das igrejas, a destruição das relíquias. Na Hagia Sophia, o altar foi destruído para os materiais preciosos poderem ser divididos pelos soldados. Os cruzados fizeram entrar dentro da igreja mulas e cavalos, para puxarem carros com o saque. Na confusão, alguns caíram, escorregando no pavimento de mármore. Os “odiosos bárbaros” roubaram as mais sagradas relíquias da cidade: um frasco com o sangue de Cristo, um fragmento da cruz, restos dos corpos de S. João Baptista e dos apóstolos. Os cristãos gregos ortodoxos lembram-se disto como se fosse hoje.

*

Hoje, há oitenta e cinco anos, Virginia Woolf lê com entusiasmo Moll Flanders, de Defoe: "a great writer surely to be there imposing himself on me after 200 years".

*

Hoje, há dez anos, John Gielgud comemora noventa anos e foi amoçar com o deputado conservador Gyles Brandreth, que também tinha convidado Glenda Jackson para a ocasião. Chegou à uma em ponto . Gyles disse-lhe que era uma grande honra que ele tivesse aceite o convite. Gielgud respondeu: "Oh, I'm delighted to have been asked. All my real friends are dead, you know".


11.4.04
 


UM BOM LIVRO SOBRE O IRAQUE ANO I

Pierre Rigoulot / Michel Taubmann (Coordenadores), Irak, An I . Un Autre Regard sur un Monde en Guerre, Paris, Editions du Rocher, 2004

Finalmente um bom livro publicado em França sobre o Iraque, à revelia do anti-americanismo dominante, com análises muito interessantes sobre o que se passou e passa. Para os que todos os dias falam dos “mentirosos”, há aqui uma lista impressionante de mentiras e desinformação em grande escala dos media franceses e de muitas outras instituições internacionais tidas como reputadas. Entre muitos exemplos dessas operações de desinformação, veja-se a célebre história dos saques dos museus de Bagdad, mas não só. Há muitas mais. Vale a pena ler.
 



Gustave Doré, L'Enigme
 


ALGUMAS NOTAS SOBRE “NATION BUILDING”


Manuel Carvalho escreveu ontem no Público um editorial com o título "A Derrocada da Nation Building", onde defende a ideia de que as nações livres e democráticas não têm qualquer legitimidade para desencadear políticas externas que levem à democratização do mundo árabe ditatorial e embrião das formas mais diversas do terrorismo actual emergente.
Afirma o jornalista que "o conceito de "nation building" não passa de uma ideologia extremista, uma combinação perigosa de messianismo com voluntarismo, que é completamente destituída de qualquer sentido da História". Ora, penso que com esta argumentação, apoiada no medo e no voltar costas ao medievalismo político em que está subjugado grande parte do mundo árabe, só engrandece os próprios terroristas, dando-lhes razão na afirmação por eles proferida de que "não queremos cá ninguém na nossa casa" (como se a casa deles fosse um antro de paz, democracia e liberdade).
Será que as nações mais desenvolvidas do mundo, onde a democracia e a liberdade são conceitos adquiridos, não têm a legitimidade de, em nome da segurança de um mundo cada vez mais globalizado e da defesa do combate à pobreza em que (sobre)vive a população árabe (pobreza essa que fomenta o ódio ao mundo ocidental), dizia, não têm a legitimidade de orientar políticas que levem à democratização do mundo árabe? Para mim, essa legitimidade é total... De facto, penso que, tal como aconteceu na Europa Ocidental, após a 2ª Guerra Mundial e na Europa de Leste após a queda do muro de Berlim, já para não falar dos casos do Japão ou da África do Sul, a melhor forma de se garantir um mundo mais pacífico e menos desigual em termos de desenvolvimento humano é, precisamente, através da criação de condições de fomento da democracia e da liberdade nos países onde reina a ditadura e a censura.
O exemplo do Iraque poderá ser o princípio de um processo de democratização de uma região do mundo onde a falta de uma educação dos jovens assente em pilares tão básicos como a democracia e a liberdade, tem levado ao fortalecimento do fundamentalismo islâmico e do ódio ao Ocidente. Urge, agora, travar esta batalha, para que as próximas gerações possam viver num mundo mais pacífico e harmonioso...


(Pedro Peixoto)

O intervencionismo político em nome de diversas variantes de “nation building” era (e é) considerado “natural”, desde que não tenha a mão do “império”, ou seja entendido contra o “império”, ou seja, os EUA. Hoje, a linha de demarcação de tudo é o americanismo / anti-americanismo, principalmente este último. Cada vez é mais importante esta demarcação, forma rediviva de nacionalismos e pós-comunismos, sob o “albergue espanhol” da anti-globalização. E quando se juntam “direitas” e “esquerdas”, quase sempre debaixo de mantos nacionalistas, ou “anti-imperialistas”, o conjunto é poderoso.

Porque “nation building” é o terminus de muito daquilo que é hoje a ideologia das relações internacionais. O “intervencionismo humanitário”, por exemplo. A guerra do Kosovo, por exemplo. A intervenção no Ruanda, na Serra Leoa, por exemplo. Se recuarmos ao passado, o que era o “internacionalismo proletário”, o programa revolucionário mundial, senão uma reconstrução do mundo feita pela revolução?

Depois a ONU, lugar actual de todas as ambiguidades. Repito o que disse ontem na SIC: caso a ONU "tomasse conta" do Iraque hoje, para além da questão crucial de saber com que tropas garantia a estabilidade do país, que “programa “ teria para a sua missão no Iraque? Seria diferente do das tropas da coligação? Entregaria o poder aos iraquianos, mas a quem? Às milícias armadas de Sadr? Aos torcionários do Baas? Deixaria a ONU as cidades iraquianas entregues aos bandos de kalashnikov que aterrorizam, antes de tudo, outros iraquianos? Abriria caminho para a guerra civil?

É demasiado simples: ou a administração da ONU seria uma fuga internacional de responsabilidades, significando uma forma disfarçada de retirada dos “estrangeiros” para os iraquianos se matarem uns aos outros, ou teria um programa muito parecido com o dos americanos. Faria “nation building” como fez em Timor, e está a fazer de facto no Kosovo.E que regime político deixaria atrás (ou tentaria deixar atrás)? Uma ditadura ou um regime democrático? Armas ou eleições?

Depois, à volta do “nation building” há os tabus que ninguém quer discutir. Por exemplo, as fronteiras. Não é verdade que ninguém mexa nas fronteiras: a Checoslováquia e a Etiópia fizeram-no. Mas em todo o resto do mundo, as mais absurdas fronteiras permanecem intactas mesmo quando são fontes de endémicos conflitos civis.
Por exemplo, a “limpeza étnica”. Tal prática era aceitável no passado: que o digam os gregos da Anatólia e os turcos da Europa, quando, sob a égide da Sociedade das Nações, se fizeram as transferências das populações. Alguém lhes perguntou se queriam ser mudados? Ninguém; os gregos do Mar Negro, que nunca tinham conhecido a Grécia, foram obrigados à força a sair das suas casas, das suas igrejas milenares, para irem para um país desconhecido. Pelas Nações Unidas da época.

(Continua)
 


POEIRA DE 11 DE ABRIL

Robert Bruce Lockhart, “cônsul” inglês na Rússia revolucionária, espião e conspirador, preso depois do atentado de Dora Kaplan contra Lenine, e que escapou por pouco de ser passado pelas armas, hoje, há setenta e cinco anos, escrevia no seu diário mais uma reminiscência bolchevique. Krupskaia teria pedido ao marido, Lenine, que tomasse conta da sua mãe, moribunda. Ela estava cansada. Disse-lhe: “se ela te pedir alguma coisa, chama-me”. Lenine sentou-se ao lado da cama, pegou num livro e começou a ler. Quando Krupskaia voltou para ver a mãe, esta estava morta. Krupskaia ficou furiosa com Lenine: “Porque é que não me disseste nada?”. “Mas a tua mãe não me pediu nada”.

Lockhart anota “Still Lenin was not inhuman”.



Hoje, há cinquenta e nove anos, os soldados da 8ª Divisão Blindada do Terceiro Exército americano chegaram às colinas que encimam Weimar. Lá em baixo, a cidade continha as sombras de Goethe, Schiller, Nietzsche, Bach, Liszt, seus ilustres moradores. Na colina de Ettersberg, encontraram os restos cuidadosamente preservados do carvalho que tantas vezes acolheu Goethe. As últimas mãos que tinham acariciado o tronco da árvore tinham sido as dos SS que salvaram os restos do carvalho destruído depois de um bombardeamento. Os membros das SS estimavam a memória de Goethe, ou então sabiam que Mefistófeles rondara a árvore.

À sua volta estendia-se Buchenwald, o primeiro campo de concentração que os americanos encontraram. Os soldados americanos vomitavam, incapazes de ver o que viam. Face à barbárie, a cultura pode muito pouco.
 


EARLY MORNING BLOGS 181

O Florir

O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos...

O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida ...

O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída...

As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem ...

Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminho sem fim...


(Álvaro de Campos)

*

Bom dia!

10.4.04
 


ESTÁ LÁ SEMPRE


J. C. Dahl
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES (Actualizado)

Neste momento difícil, em que se torna cada vez mais evidente que se cometeu um erro estratégico com a “Operação Iraque”, torna-se pertinente saber o que é essencial e o que é acessório. O fantasma do Vietname está compreensivelmente presente. Nenhuma guerra se ganha sem mobilização da sociedade que a sustenta! Não estou seguro, de modo nenhum, que o 11 de Setembro constitua um marco de sustentação para mobilizar a sociedade norte-americana para aguentar este desafio no Iraque. Fugir aqui seria ainda mais catastrófico do que foi no Vietname, mas pode muito bem suceder… O problema é que não me parece que haja, nem mesmo na sociedade norte-americana, consciência do que significa estar em guerra contra a selvajaria nihilista. Mais do que nunca haveria que ter presente a natureza desta “guerra de civilização” (não se trata tanto de civilização contra civilização, mas da CIVILIZAÇÂO contra o nihilismo. As citações seguintes do filósofo André Glucksmann são um contributo para tal:

”Todos somos pasajeros de um Titanic en potencia”, dado que “los terroristas se han arrogado ante el mundo el derecho a matar a quien sea”. Distinguir entre una Europa “preocupada por los derechos del ciudadano, serena, al abrigo de cualquier avión suicida” y un “Estados Unidos, tan pronto imperialista y belicoso, tan pronto aislacionista y egoistamente autista, rapidamente castigado allí donde peca”, aumentando, como tan miserablemente ha hecho Francia, la tensión transatlântica, equivale, para Glucksmann, a esconder la cabeza debajo del ala. Algo a lo que, según nuestro autor, se unen tantos cuantos pretenden distinguir, entre varias civilizaciones “recortadas siguiendo una línea de puntos de religiones… igualmente impotentes para contener los desbordamientos de violência que provocan” como quienes buscan “fusionar el conjunto inmaculado de los desfavorecidos y de los pequeños contra el Império (americano) de los poderosos y ricos”.

Lo que configura una civilización no es, según Glucksmann, lo que la une, sino lo que busca destruirla. Y lo que hoy busca destruirnos a todos no es ya el adversario único y bien definido de la guerra fria, sino “una adversidad polimorfa no menos implacable”, para la que hay un nombre tajante: nihilismo.. En efecto: “Hitler ha muerto, Stalin está enterrado, pero proliferan los exterminadores. No olvidemos que casi la mitad de la humanidad ha celebrado más o menos discretamente la hazaña de Mohammed Atta. El porvenir está en suspenso. Para existir, Europa debe superar esse desafio posnuclear. Con – y no contra – Estados Unidos. No se trata de escoger entre multipolaridad o hegemonia, sino entre nihilismo y civilización”.


(Texto de Jacobo Muñoz com citações de André Glucksmann no Suplemento de El Mundo, El Cultural (1-7 Abril de 2004, páginas 14 e 15),

(Edmundo Moreira Tavares)

Poemas enviados / lembrados

The Double Shame

At first you did not love enough
And afterwards you loved too much
And you lacked the confidence to choose
And you have only yourself to blame.


(Stephan Spender)

(por Maria José Oliveira)

Desdém

Andas dum lado prò outro
Pela rua passeando;
Finges que não queres ver
Mas sempre me vais olhando

É um olhar fugidio
Olhar que dura um instante,
Mas deixa um rasto de estrelas
O doce olhar saltitante…

É esse rasto bendito
Que atraiçoa o teu olhar
Pois é tão leve e fugaz
Que eu nem o sinto passa!

Quem tem uns olhos assim
E quer fingir o desdém,
Não pode nem um instante
Olhar os olhos de Alguém…..

Por isso vai caminhando….
E se queres a muita gente
Demonstrar que me desprezas
Olha os meus olhos de frente!..


(Flor Bela Espanca)

( por Maria Rodrigues)


Um Portugal “numa imagem” enviada por José Martins




(...) a sua teimosia em relação à defesa dessa figura sinistra que foi o Savmbi, desculpe que lhe diga mas parece doença. Se soubesse e imaginasse quem ele foi, tinha mais cautela em fazer citações de um “serial killer” compulsivo, um racista empedernido, um psicopata como o Hitler, o Staline, o Pol Pot e outros membros da galeria de homens sinistros, que todos conhecemos da História. E olhe que nada disto é propaganda do regime comunista de Luanda. É a triste verdade. De resto, o Savimbi era “marxista”. Leia o “Guia Prático do Quadro” da autoria dessa figura sinistra e só por aí, poderá deduzir o resto. É conhecido o seu acervo documental. Se quiser um “manual”, tenho gosto em dar-lhe um exemplar fotocopiado.
Quero ainda revelar-lhe um facto horrível: nos meses que antecederam a Independência de Angola, a coligação da UNITA e FNLA, conseguiu expulsar o MPLA do Planalto Central. Por todo o Planalto, ainda se encontravam muitos portugueses, espalhados por vilas, aldeias e lugarejos. Quase todos eram comerciantes e acreditavam que podiam continuar em Angola, mesmo após a Independência.. Quando a sua vida se tornou impossível (falta de alimentos, violência orgíaca), procuraram os caminhos da Nova Lisboa. No percurso, foram todos mortos nos postos militares da UNITA/FNLA que existiam ao longo das estradas. Conheço um oficial superior da UNITA (que não tem interesse nenhum em mentir), a quem foi ordenado a assassinato de um comerciante português de quem era amigo e que num gesto de humanidade, salvou-o, vestindo-o com uma batina de padre. E assim, lá foi o homem passando pelos “contróis”, até chegar são e salvo a Nova Lisboa, de onde partiu para Portugal, na célebre ponte aérea. Sabe bem que isto é genocídio.


(António Augusto Oliveira)
 


VALE A PENA

ir / não ir ao my life is., um blogue verdadeiramente transparente / opaco.
 


ADDING FEATHER TO FEATHER / FOR THE PRIDE OF HIS EYE


Johann George von Dillis
 


EARLY MORNING BLOGS 180

The Realists

Hope that you may understand!
What can books of men that wive
In a dragon-guarded land,
Paintings of the dolphin-drawn
Sea-nymphs in their pearly wagons
Do, but awake a hope to live
That had gone
With the dragons?

I
THE WITCH

Toil and grow rich,
What’s that but to lie
With a foul witch
And after, drained dry,
To be brought
To the chamber where
Lies one long sought
With despair?

II
THE PEACOCK

What’s riches to him
That has made a great peacock
With the pride of his eye?
The wind-beaten, stone- grey,
And desolate Three Rock
Would nourish his whim.
Live he or die
Amid wet rocks and heather,
His ghost will be gay
Adding feather to feather
For the pride of his eye.


(Yeats)

*

Bom dia!

9.4.04
 


POEIRA DE 9 DE ABRIL

Hoje, há cento e trinta e nove anos, há tão pouco tempo, o general Robert E. Lee, comandante das tropas confederadas, chegou à casa de Wilmer McLean em Appomattox Court House, no estado de Virgínia. Levava o uniforme de gala. À sua espera estava outro general, Ulysses S. Grant, seu contraparte no exército da União, com o uniforme comum dos soldados da União, apenas com a sua patente. Lee vinha render-se, Grant concedeu-lhe os generosos termos da rendição que Lincoln tinha sugerido. Acabara a guerra civil.

Hoje, há vinte e quatro anos, Stephan Spender estava no aeroporto de Seattle e pagou uma conta com cartão de crédito. O empregado perguntou-lhe se era parente do “poeta”. “Sou eu”. “Gee, a near-celebrity”. Já não há empregados destes.
 


NEM ILUSÕES SEM INTERSTÍCIOS


Thomas Davies, Chateau-Richer, Canada
 


EARLY MORNING BLOGS 179

Poemas dos Dois Exílios


Paira no ambíguo destinar-se
Entre longínquos precipícios,
A ânsia de dar-se preste a dar-se
Na sombra vaga entre suplícios,

Roda dolente do parar-se
Para, velados sacrifícios,
Não ter terraços sobre errar-se
Nem ilusões com interstícios,

Tudo velado, e o ócio a ter-se
De leque em leque, a aragem fina
Com consciência de perder-se...

Tamanha a flama e pequenina
Pensar na mágoa japonesa
Que ilude as sirtes da Certeza.


(Fernando Pessoa)


*

Bom dia!

8.4.04
 


IRAQUE

Neste momento, o que me lembra sempre é um discurso que ouvi de Savimbi, na Jamba. Savimbi, que era um excepcional orador, fez um daqueles discursos torrenciais, em várias línguas (português, inglês, umbundo, e outras línguas nativas). Falava para todos, para os seus homens, para os jornalistas estrangeiros, para Luanda, para os seus convidados, para Pretória, para Washington. Falou para mim directamente uma ou duas vezes, uma delas pedindo-me a confirmação de que “Salazar também ao princípio tinha feito coisas boas, mas depois não se quis ir embora, não é verdade, dr. Pacheco? ”. Eu fiquei sem saber o que dizer, porque para mim Salazar nunca tinha feito “coisas boas”. Felizmente ele passou adiante.

Mas o que me lembra hoje foi uma parte em que Savimbi disse que os angolanos tinham pago um preço muito caro pelo Vietnam e pela forma como os americanos dele tinham saído. Para mim, que combatera a intervenção americana, participara na manifestação ilegal contra a guerra, escrevera panfletos, a frase de Savimbi era o reverso que não se pensara, não se vira: o destino dos angolanos, como dos outros povos, que pagavam o preço do refluxo americano, pelo campo aberto aos soviéticos (e aos cubanos) em África. Savimbi contava como ficara sozinho, e fora empurrado para os sul-africanos pelo abandono americano, que só mudara com Reagan.

No Iraque, tudo parece tão difícil, quase impossível. Na história há momentos assim, em que cresce a vontade de largar tudo, esquecer tudo e passar para outra. Foi esse também o efeito psicológico da ofensiva do Tet no Vietnam, que hoje se sabe ter sido um acto de desespero que colocou o chamado “vietcong” no limiar da exaustão militar. Mas politicamente foi um enorme sucesso psicológico. No Iraque, está-se nesse momento “vietnamita”, numa guerra muito mais crucial para o futuro mundial do que era a do Vietnam. Os dominós existiam e tombaram com Saigão, mas o comunismo já estava oco, não iria durar uma década. Hoje é diferente.

A história também mostra que, nesses momentos de derrotismo, alguém perde muito mais do que aqueles que se podem dar ao luxo de sair, feridos, é certo, mas vivos. No Vietnam, foram os vietnamitas transformados em boat people, e os povos como os angolanos a quem falava Savimbi. No Iraque, serão, em primeiro lugar, os iraquianos, que nenhum cenário de abandono deixa sem ser entregues a um banho de sangue sectário. Depois serão os alvos da Al Qaeda, todos nós, descendentes dos “cruzados”.
 



J. C. Dahl
 


EARLY MORNING BLOGS 178

Canciones de el alma que se goza de aver llegado al alto estado de la perfectión, que es la unión con Dios, por el camino de la negación espiritual


En una noche escura
con ansias en amores inflamada
¡o dichosa ventura!
salí sin ser notada
estando ya mi casa sosegada.

ascuras y segura
por la secreta escala, disfraçada,
¡o dichosa ventura!
a escuras y en celada
estando ya mi casa sosegada.

En la noche dichosa
en secreto que naide me veýa,
ni yo mirava cosa
sin otra luz y guía
sino la que en el coraçón ardía.

Aquésta me guiava
más cierto que la luz de mediodía
adonde me esperava
quien yo bien me savía
en parte donde naide parecía.

¡O noche, que guiaste!
¡O noche amable más que la alborada!
¡oh noche que juntaste
amado con amada,
amada en el amado transformada!

En mi pecho florido,
que entero para él solo se guardaba
allí quedó dormido
y yo le regalaba
y el ventalle de cedros ayre daba.

El ayre de la almena
quando yo sus cavellos esparcía
con su mano serena
en mi cuello hería
y todos mis sentidos suspendía.

Quedéme y olbidéme
el rostro recliné sobre el amado;
cessó todo, y dexéme
dexando mi cuydado
entre las açucenas olbidado.


(San Juan de la Cruz)

7.4.04
 


EARLY MORNING BLOGS 177

Lembrado por João Carlos Pascoinho, esta felicidade “matinal” de Raymond Carver. Uma tradução portuguesa de Jorge Sousa Braga, inédita fora da blogosfera, pode ser lida no Quartzo, Feldspato e Mica.

Happiness

So early it's still almost dark out.
I'm near the window with coffee,
and the usual early morning stuff
that passes for thought.

When I see the boy and his friend
walking up the road
to deliver the newspaper.

They wear caps and sweaters,
and one boy has a bag over his shoulder.
They are so happy
they aren't saying anything, these boys.

I think if they could, they would take
each other's arm.
It's early in the morning,
and they are doing this thing together.

They come on, slowly.
The sky is taking on light,
though the moon still hangs pale over the water.

Such beauty that for a minute
death and ambition, even love,
doesn't enter into this.

Happiness. It comes on
unexpectedly. And goes beyond, really,
any early morning talk about it.


(Raymond Carver)

*

Bom dia!
 


POEIRA DE 6 DE ABRIL

Hoje , há cento e nove anos, Oscar Wilde foi preso depois de ter perdido o processo de difamação que pusera contra o pai de um dos seus amantes, “Bosie”, Lord Alfred Douglas. O pai de “Bosie” provou em tribunal que Wilde era homossexual e este foi preso e condenado a dois anos de trabalhos forçados. Longe estão os tempos em que Wilde descrevia “Bosie” umas vezes como um “narciso”, outras como um “jacinto”: "he lies like a hyacinth on the sofa and I worship him."

6.4.04
 



Dankvart Dreyer
 


AMANHÃ, COM O PÚBLICO

uma obra genial, os Dubliners, de Joyce. Não sei de quem é a tradução, que espero seja boa. Mas que a obra é genial, é. Veja-se este início de "Eveline", uma das histórias:

"She sat at the window watching the evening invade the avenue. Her head was leaned against the window curtains, and in her nostrils was the odour of dusty cretonne. She was tired."

É preciso dizer alguma coisa? É (se não fosse, não havia história), mas quando se começa assim ...
 


EARLY MORNING BLO0GS 176

Este Seu Escasso Campo


Este, seu ‘scasso campo ora lavrando,
Ora solene, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, goza incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Per que concílios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as ervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica,
Filhos, diversa e sua.


(Ricardo Reis)

*

Eu sei que não é "early morning", mas mesmo assim, bom dia!



5.4.04
 


ESTA PEQUEÑA PERLA Y AMBICIOSA (...)/ ES DEFECTO DEL NÁCAR


Salvador Dali
 


POEIRA DE 5 DE ABRIL

Hoje, há quatro mil e duzentos e cinquenta e dois anos, um barco de madeira encalhou no cimo de um monte. O seu piloto tinha então seiscentos e um anos e acabara de salvar o mundo, como nós o conhecemos. Do barco saíram duas abelhas, e dois pássaros. Birds and bees. Saíram um elefante e uma elefanta, um sardão e uma sardanisca, um ornitorrinco e uma ornitorrinca, uma amiba, uma multidão de pequenas e grandes coisas a dois e umas a um. Os que estavam agora a sair eram os que tinham aceite o convite do homem, os que o recusaram tinham desaparecido da face da terra. Há momentos.

O homem que se chamava Noé, demorara cento e vinte anos a fazer aquele barco. Chovera quarenta dias, cento e cinquenta ficara a terra inundada. Depois Deus chamou um vento forte para secar a terra. Demorou também mais de um mês para secar. Noé então enviou um corvo e uma pomba como batedores do estado do mundo. A pomba regressou com um ramo de oliveira. Noé percebeu que era tempo de recomeçar. “Crescei e multiplicai-vos”. O mundo estava puro outra vez. Não ia durar muito assim.

(Agradeçamos ao bispo James Usser ter feito estes Annals of the World , para nosso sustento cronológico.)
 


EARLY MORNING BLOGS 175

La Templanza, Adorno Para La Garganta Más Precioso Que Las Perlas De Mayor Valor


Esta concha que ves presuntuosa,
por quien blasona el mar índico y moro,
que en un bostezo concibió un tesoro
del sol y el cielo, a quien se miente esposa;

esta pequeña perla y ambiciosa,
que junta su soberbia con el oro,
es defecto del nácar, no decoro,
y mendiga beldad, aunque preciosa.

Bastaba que la gula el mar pescara,
sin que avaricia en él tendiera redes
con que la vanidad alimentara.

Floris, mejor con la templanza puedes
adornar tu garganta, que con rara
perdición rica, que del Ponto heredes.


(Francisco de Quevedo)
 


VER A NOITE

A Lua com um halo perfeito. Para os que olham a noite, um pequeno prazer geométrico. O mundo está nos seus eixos.

4.4.04
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: SATURNO



"Enquanto os rovers andam por Marte à procura de água, a sonda Cassini continua a sua aproximação discreta a Saturno. E as imagens que chegam até nós são espectaculares. No seguinte site , pode ver-se a última das imagens. Além do planeta são visíveis três luas. À esquerda mesmo debaixo dos anéis vê-se Mimas, mais abaixo é visível Dione e à direita aparece Encélado. A imagem foi tirada no início de Março quando a nave estava a 56.4 milhões de km do planeta. As três luas surgem muito pequeninas no ecrã do computador, convém limpar o pó para se verem bem. "

(José Matos)
   



Jim Dine
 


POEIRA DE 4 DE ABRIL

Hoje, há duzentos e dez anos, 15 de Germinal do ano II, foram guilhotinados Pierre Dillon, como “brigand de la Vendée”, Jean François d’Arche , “ex-noble”, Michel Lacroix, desertor, os irmãos Louis, Nicolas e Michel, tecelões, como “sediciosos”, os “contra-revolucionários” de Tirpied, cantão de Avranches, um carpinteiro, um trabalhador rural, um “domestique du curé”, entre outros; os marselhenses Padre Barthelemi Vian, um proprietário, um “commis des domaines nationaux”, entre outros; uns “federalistas” do departamento das Bouches du Rhône; etc., etc. Este "etc." é grande. A Revolução continua.
 


EARLY MORNING BLOGS 174

Morning in the Burned House


In the burned house I am eating breakfast.
You understand: there is no house, there is no breakfast,
yet here I am.

The spoon which was melted scrapes against
the bowl which was melted also.
No one else is around.

Where have they gone to, brother and sister,
mother and father? Off along the shore,
perhaps. Their clothes are still on the hangers,

their dishes piled beside the sink,
which is beside the woodstove
with its grate and sooty kettle,

every detail clear,
tin cup and rippled mirror.
The day is bright and songless,

the lake is blue, the forest watchful.
In the east a bank of cloud
rises up silently like dark bread.

I can see the swirls in the oilcloth,
I can see the flaws in the glass,
those flares where the sun hits them.

I can't see my own arms and legs
or know if this is a trap or blessing,
finding myself back here, where everything

in this house has long been over,
kettle and mirror, spoon and bowl,
including my own body,

including the body I had then,
including the body I have now
as I sit at this morning table, alone and happy,

bare child's feet on the scorched floorboards
(I can almost see)
in my burning clothes, the thin green shorts

and grubby yellow T-shirt
holding my cindery, non-existent,
radiant flesh. Incandescent.


(Margaret Atwood)

3.4.04
 


TORTURAS DA PIDE A MULHERES

Numa nota publicada em 25 de Janeiro de 2004 no Abrupto e nos Estudos sobre o Comunismo, publiquei esta crítica:

Num artigo de hoje do Público São José Almeida escreve o seguinte sobre as torturas utilizadas pela PIDE:

“Os métodos [de tortura] usados passavam, por exemplo, por queimar os presos com cigarros. Era também usual interrogar os presos despidos, sobretudo quando se tratava de mulheres.”

Nenhuma destas coisas é verdade, a não ser excepcionalmente. A PIDE torturava e torturava por sistema, não é isso que está em causa. Mas não utilizava queimaduras que deixavam marcas e muito menos despia as mulheres “usualmente”. Há um ou outro relato , muito raro, de queimaduras de cigarro, e ,a não ser num caso de mulheres presas do Couço em que humilhações directas de carácter sexual foram utilizadas, desconhecem-se testemunhos nesse sentido. A PIDE insultava as “companheiras” de tudo quanto havia, mas não as despia.
Afirmar isto é não compreender de todo os quadros de mentalidade que presidiam ao regime A lei não chegava à PIDE, como os PIDEs se gabavam, mas chegava a mentalidade e a “moral” sexual (ou a falta dela). É completamente inverosímil o que se diz no artigo.”


Esta nota motivou uma reacção indignada de São José Almeida e de outros jornalistas do Público no Glória Fácil, reafirmando a veracidade e o fundamento do que se escrevera no artigo. Entendi nada dizer porque todas as pessoas que conhecem a história da repressão em Portugal sabem do completo infundado das afirmações de São José Almeida e não valia a pena qualquer comentário pelo que era uma manifestação de ignorância solidária.

Agora, no mesmo jornal, Irene Pimentel , que se prepara para terminar o estudo mais completo sobre a PIDE, vem dizer exactamente o mesmo. Há apenas um caso conhecido e nenhuma prática "habitual" como dissera São José Almeida:

Nos anos 60, a ideia da emancipação das mulheres também chega à PIDE e começaram as torturas às mulheres. As do Couço foram as primeiras", conta Irene Pimentel.. (…) A historiadora apenas tem conhecimento de um caso de tortura sexual a uma mulher. "É um caso conhecido, foi Conceição Matos, que foi submetida à tortura da estátua, estando menstruada, obrigada a despir-se e a limpar-se com a roupa, diante dos agente. Entre eles estava uma mulher, a célebre agente Madalena, que tinha fama de muito violenta com os presos".

Ficava bem, até pelo tom habitual de arrogância moral que foi usado, que se reconhecesse o erro.
 


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

Uma Aurora Borealis em Eau Claire nos EUA, enviada por Penélope que "desfaz de noite, o que faz de dia...."



"Sobre as questões esquerda/direita, nomeadamente sobre a moderna ascensão dos partidos extremistas, à esquerda e à direita, lembrei-me de ter lido num jornal espanhol (El Pais?) um cronista que fazia uma interessante analogia com o futebol: antes os jogadores preferiam conduzir a bola até à área do adversário pelo centro do campo, agora a estratégia é ir pelos extremos. Uma nova tendência que, segundo ele, surgiu primeiro no futebol e depois na politica."

(Sérgio Pinto)

"As imagens são de alguma forma mais chocantes do que as do 11 de Setembro. Porque não é uma mortandade à distância, sob a queda de aviões ou de edifícios. Há a intervenção directa de pessoas, no contacto com os cadáveres, cavando um fosso cultural maior do que tudo o resto. Mais do que pelo regozijo primal pela morte, acima de tudo repele o total desrespeito pelos mortos, o macabro brincar com os corpos, o horror da sua exposição pública. A diferente forma de encarar essa realidade torna aqueles iraquianos menos humanos os nossos olhos ocidentais: perpetua as difuldades de compreensão e impede a empatia."

(Artur Furtado)

"Sobre Saramago quero esclarecer que tive, desde que me lembro, uma posição mais visceral do que racional: não li e não gosto. Só que com o tempo o visceral vai diminuindo e o racional consolidando-se, mas o resultado mantém-se inalterado: não li e não gosto. Se antes eu acreditava que não iria morrer sem ler o “Memorial do Convento” que até iria gostar, cada vez mais me apetece não ler…
Saramago falou e Portugal inteiro parou e escutou. Com a sua presumida e agora pomposa (desde o Nobel) “selfconsciousness” e atordoado com a sua lucidez contestatária vem glosar as vantagens do voto em branco. Que ele o faça, é inteiramente legítimo e a democracia que eu defendo dá-lhe esse espaço e esse direito. Que seja ouvido como um iluminado profeta (eu fico com a sensação que o Rei Vai Nu), que a televisão e a imprensa, e até os blogues (Causa Nossa) lhe dêem dimensão de acontecimento de Estado já contesto. Se de cada vez que um escritor, de mérito igual ou superior ao de Saramago, editasse um livro, Portugal parasse, não se fazia nada no País.
"

(Joana Pereira de Castro)

"Li ontem esta passagem "Do we have any right to know the painful details of Eliot´s marital problems just because he is famous and dead? Is such information necessary or even relevant to a propoer reading of his poetry? These are fascinating and intricate questions" Eu pensei nisso ao ler o que Martin Amis divulgou sobre o pai na autobiografia que publicou recentemente. Nessa altura senti-me incomodada ao aprender sobre os problemas que Kingsley Amis tinha em satisfazer sexualmente a segunda mulher. Também foi uma revelação saber sobre as suas fobias extremas, que por exemplo não conseguia estar sózinho em nenhum lugar. Imagino que o Martin se deve ter posto no lugar do pai e deve ter sabido que o pai não haveria de gostar que estas coisas se soubessem. Mas mesmo assim foi para a frente, desculpando-se que é a prática comum. É uma prática errada e imoral mas como toda a gente faz ninguém questiona. "

(MCP)
 


POEIRA DE 3 DE ABRIL

Hoje, há oito anos, um grupo de agentes do FBI e da polícia local assaltaram uma remota cabana no estado de Montana. Lá dentro estava Theodore Kaczynski Jr, o “Unabomber”, uma das faces do terrorismo contemporâneo, tão característico das suas tendências como a Al Qaeda. Reproduzo aqui o texto “Espelhos cruéis” que então publiquei, e que está incluído no livro Desesperada Esperança.

“Às vezes há espelhos cruéis. Em Kaczynski, o Unabomber, autor de três mortes e vinte e seis feridos com o envio de cartas bombas, algumas das coisas habitualmente escondidas no pensamento banal da esquerda estão cruelmente à vista. Não se compreende por isso que ninguém se interesse por ele e pelo seu destino. Ele que é a versão da esquerda de uma tradição clássica de terrorismo político, que encontra em Tim Mc Veigh, o bombista das milícias que fez ir pelos ares um edifício municipal, matando uma pequena multidão, o seu contraponto à direita.

Falei em “pensamento banal” já para me prevenir de alguma generalização abusiva, mas é muito por amabilidade, porque é tão “banal” como “essencial”. Banal aqui também quer dizer “comum”, que todos têm. O que Kaczynski fez, como o fez e porque o fez, tem uma profunda tradição nas raízes do terrorismo político, como instrumento de engenharia social, e esta tradição é mais constitutiva da esquerda do que se possa imaginar, e, para alguns, desejar .

Há em Kaczynski aquilo que, de há duzentos anos para cá, se pode denominar a determinação terrorista, a decisão sem hesitação em punir os males sociais como instrumento de exemplo e de alarme, ou de pura vingança e de medo, em nome de objectivos mais altos e puros de regeneração social. Os intelectuais são excelentes para estes objectivos, porque têm aquela dose de abstracção que faz esquecer os homens concretos em nome das construções ideais feitas em nome da utopia. Numa das suas últimas cartas a um grupo radical ecologista que se opunha ao corte de madeiras, Kaczynski anunciava-se dizendo que ele (no plural majestático do “nós”) fora o autor do assassinato do presidente da Califórnia Forestry Association. E afirmava que para ele a “Terra está primeiro”, a vida dos homens certamente que depois. A utopia tem as costas largas, até porque a “Terra” pesa muito .

Kaczynski é um intelectual acima da média, consistente e fanático, com aquela singularidade de propósito, sem desvios nem distracções, que permite criar uma obra. A de Kaczynski, para além do Manifesto anti-tecnológico, que, à força de ameaças, conseguiu publicar no Washington Post e no New York Times , eram as pequenas encomendas bomba contra cientistas, executivos de companhias de aviação, de computadores, e de serração de madeiras . O Manifesto ficará na história dos textos revolucionários e o seu sucesso no Internet é revelador da sua pertença a uma tradição consistente do pensamento anti-tecnológico americano. Mas os escritos de Kaczynski, em particular o seu diário descoberto na cabana em que vivia, são, no seu tom cruel e obsessivo, uma actualização de ideias muito antigas. Ouça-se o seu diário em 29 de Dezembro de 1979 : “nalgumas das minhas notas mencionei um plano de vingança contra a sociedade. O plano era destruir um avião em pleno voo. No fim do Verão, princípio do Outono, construí um engenho que me ficou caro porque tive que ir a Gr. Falls para comprar os materiais, incluindo um barómetro e muitos cartuchos para a pólvora “ … E continua por aí adiante com os detalhes dos materiais e do seu custo, com aquela mesma meticulosidade com que uma criança monta uma construção do Lego, ou um burocrata nazi calcula o custo per capita dos fornos crematórios .

Onde é que eu já ouvi isto ? No Catecismo Revolucionário de Netchaiev, elogiado por Bakunine; no anarquista do Agente Secreto de Conrad , empacotado em dinamite, pronto a explodir à primeira suspeita da polícia; no célebre diálogo de Sade junto de um vulcão em que se compara a capacidade de destruição da natureza (vulcões, terramotos, tempestades) com o poder das bombas que um químico pode construir. Kaczynski faz aqui o papel do químico anti-tecnológico, construindo as suas bombas segundo o príncipio do small is beautiful , cuidadosamente executadas com peças de madeira trabalhada, cujos estilhaços destruíram vários corpos. Porque, ninguém tenha ilusões, as bombas do Unabomber eram para matar .

Imagino alguns dos meus leitores a encolherem os ombros e a dizerem: mas o que é que a esquerda tem a ver com isto? Não condenou sempre a esquerda a violência “separada” da “luta de massas”? Não. O que na tradição da esquerda se faz é escolher o “bom” terrorismo, e rejeitar o “mau” terrorismo conforme as épocas, as conveniências, os mandantes e os executantes. Nunca à esquerda se estabeleceu uma verdadeira distinção de princípio contra o terror, nem tal se podia fazer, dada a visão da relação do homem “naturalmente bom” com uma sociedade “naturalmente má “. Os marxistas acham que a sua condenação do terrorismo individual e que a sua condição de aceitação apenas da associação do terror às “massas” e aos movimentos revolucionários lhes basta. Não basta, nem aliás na história estas distinções alguma vez tiveram verdadeiro sentido. Os partidos comunistas condenavam essencialmente o terrorismo que não controlavam , ou aquele que estrategicamente não lhes seguia os timings e os alvos. Quando “Carlos” se passeava pela Hungria, pela RDA e pela Roménia, e intervalava para ir a Damasco ou ao Yemen, e não ao contrário, os pacíficos burocratas da Stasi, do KGB ou da Securitate, com quem ele brindava nas festas de família, pediam-lhe só que não estragasse as visitas de estado de Brejnev. E ele não estragava.

Só que Kaczynski ainda era do tempo da pólvora e não do Semtex. Mas não é, a seu modo, um homem de “princípios”, de uma fé inabalável a mesma fé que a nossa esquerda ( e direita ) radical chic admira no dr. Cunhal ou em Che Guevara? Qual é a verdadeira diferença entre Kaczynski a matar cientistas por Express Mail da sua cabana do Montana e o Che a matar uns desgraçados soldados bolivianos, tão camponeses como os camponeses que ele queria trazer para a “sua” revolução? Ou de Kaczynski com o dr. Abigael Guzmán, o camarada Gonzalo, do Sendero Luminoso, ou com o comandante Marcos, do Exército de Libertação Zapatista, tão versado na Internet e no marketing da imagem revolucionária e da atracção sado-masoquista pela máscara? As “massas”? Mas que “massas”? Os “ideais”? Mas o que não falta a Kaczynski são “ideais”. A luta por uma sociedade “melhor”? Mas pensam que o Unabomber não está convencido de que destruir os malefícios da aviação e dos computadores não nos faz viver “melhor”?

Não, não é por aí. Porque o que une estes homens todos é uma mesma identidade obsessiva, contra a história, contra os factos, contra a realidade, contra os homens concretos, pela abstracção de uma utopia, com as melhores das intenções. Que só eles acham que o são. E de que o Inferno está cheio."
 


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: OLHOS QUE PASSEIAM ÁRDUOS



O “Espírito” atravessou esta planície pedregosa. Começa a ficar cansado, mas ainda tem umas colinas longínquas para onde se dirigir. Não se vêem nesta fotografia porque estão à sua frente e o olhar é para trás, para a travessia feita. Caminha, pois, pequeno “Espírito” para onde é mais alto.
 


EARLY MORNING BLOGS 173

Esta carta matinal de Juanico, dizendo "nós por cá todos bem", como em todas as guerras, todos os soldados fazem.


Llegué, señora tía, a la Mamora,
Donde entre nieblas vi la otra mañana,
Desde el seguro de una partesana,
Confusa multitud de gente mora.

Pluma acudiendo va tremoladora
Andaluza, extremeña y castellana,
Pidiendo, si vitela no mongana,
Cualque fresco rumor de cantimplora.

Allanó alguno la enemiga tierra
Echándose a dormir; otro soldado,
Gastador vigilante, con su pico

Biscocho labra. Al fin, en esta guerra
No vi más fuerte, sino el levantado.
De la Mamora. Hoy miércoles. Juanico.



(Luis de Góngora y Argote)


*

Bom dia !
 


VER A NOITE

Noite de luar húmido, humidade baixa, silenciosa, à volta das novas folhas das árvores.

2.4.04
 


POEIRA DE 2 DE ABRIL

Hoje, há cinquenta e sete anos, Simone de Beauvoir atravessa o sul dos EUA num autocarro expresso. Partiu às nove da manhã para chegar a Jacksonville, às duas da madrugada. Sentou-se na cadeira, reclinou-se, verificou que havia uma pequena lâmpada para ler à noite. Vendiam-se Coca Colas e sandes no interior do autocarro. Mais confortável do que os autocarros em França.

Tudo bem, menos a terra que atravessava – o Sul racista , a terra da “grande tragédia” que a perseguia como uma obsessão. Os brancos ressentidos pela beleza dos negros. Os brancos que ali perdiam toda a “gentileza americana”.
 



Peter Graham, Wandering Shadows

1.4.04
 


EARLY MORNING BLOGS 172

Reticências

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na ação.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...


(Álvaro de Campos)

© José Pacheco Pereira
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