ABRUPTO |
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31.1.04
ORGULHO 7 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Bernardo está cansado, tem febre, tem frio. Mas, no grau do orgulho sobre o qual está a escrever, estão as grandes verdades de Deus e da experiência humana dos erros do “curioso”, do “culpado”. Bernardo sabe que não está a escrever para ninguém. Passados meia dúzia de séculos, tempo irrisório para a verdade, ninguém sequer o vai entender. A sua pena paira no vazio, como a maldição que Jorge Luís Borges encontrou para Melanchton em “Um teólogo na Morte”: Os anjos me disseram que, quando Melanchton morreu, lhe foi oferecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual àquela que possuíra na Terra. (A quase todos os recém-chegados à eternidade acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram). Os objetos domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Quando Melanchton despertou nessa casa, reatou suas tarefas literárias como se não fosse um morto e escreveu durante alguns dias sobre a salvação pela fé. Como era seu hábito, não disse uma palavra sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram pessoas a interrogá-lo. Melanchton lhes falou: "Demonstrei de maneira irrefutável que a alma pode dispensar a caridade e que para entrar no céu basta a fé". Dizia isso com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram essa afirmativa o abandonaram. Em poucas semanas, os móveis começaram a se encantar até se tornarem invisíveis, com exceção da poltrona, da mesa, das folhas de papel e do tinteiro. Além disso, as paredes do aposento se mancharam de cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito mais ordinária. Continuava, entretanto, escrevendo, mas como persistia na negação da caridade, foi transferido para uma sala subterrânea, onde estavam outros teólogos como ele. Ali ficou preso alguns dias e começou a duvidar de sua tese e lhe deram permissão de voltar. A roupa que vestia era de couro cru, mas procurou imaginar que a que tivera antes fora uma simples alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Uma tarde, sentiu frio. Então percorreu a casa e comprovou que as demais peças já não correspondiam às de sua casa na Terra. Uma delas estava cheia de instrumentos desconhecidos; outra estava tão reduzida que era impossível entrar nela; outra não tinha sofrido modificação, mas suas janelas e portas davam para grandes dunas. A do fundo estava cheia de pessoas que o adoravam e lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio quanto ele. Essa adoração agradou-o, mas como uma das pessoas não tinha rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas. Determinou-se então a escrever um elogio da caridade, mas as páginas que escrevia hoje apareciam apagadas amanhã. Isso aconteceu porque eram feitas sem convicção. Recebia muitas visitas de gente morta recentemente, mas sentia vergonha de mostrar-se num lugar tão sórdido. Para fazer-lhes crer que estava no céu, entrou em acordo com um feiticeiro dos que estavam na peça dos fundos, e este os enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Era só as visitas se retirarem, reapareciam a pobreza e a cal; às vezes isso acontecia um pouco antes. As últimas notícias de Melanchton dizem que o mágico e um dos homens sem rosto o levaram até as dunas e que agora ele é como que um criado dos demônios. Mas Bernardo tem uma missão, como Melanchton. Agora defronta um dos mais intímos sinais do pecado do orgulho: as “desculpas”, a que o Profeta chamava as “palavras da malícia”.
HOJE , NOTÍCIAS DE BLOOMSBURY
Hoje, 31 de Janeiro de 1932, Harold Nicholson vê um rato morto na “lily-pond” (como traduzir?). Escreve no seu diário : “I feel like that mouse – static, obese and decaying.”Vita Sackville-West, a mulher de Nicholson, não se impressiona, discute as finanças caseiras. Mas Nicholson está mal disposto. “Arrange my books sadly. Weigh myself sadly. Have put on eight pounds. Feel ashamed of myself, my attainements, and my character. Am I a serious person at all?”. Vita quer que ele escreva, podia ganhar 2000 libras num romance. Nicholson quer lá saber. Não é um dia brilhante em Bloomsbury.
ORGULHO 6 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Presunção. A presunção é o último grau do orgulho antes de entrarmos no pecado, nos graus do pecado. Bernardo sabe que agora já não é apenas a ilusão do “curioso”, a sua agitação, o seu progressivo autismo, a perda de exigência, a facilidade cómoda, o conforto psicológico que estão em causa. Agora trata-se de escolhas fora da graça divina, agora trata-se de cair numa vertente inclinada sem retorno. Bernardo pergunta-se: com que mão escrevo? A que pune ou a que esquece? A do fogo ou a da água? Bernardo olha para a neve lá fora. Na primeira frase está a palavra “culpado”, porque Bernardo preza a severidade, uma alta exigência consigo próprio, detesta as flutuações do humor. (Não é de sensibilidades antigas que falamos?) O “culpado” continua a justificar-se, agora no patamar de se perder : Je n'ai point fait cela; ou bien il dit: Je l'ai fait il est vrai, mais j'ai bien fait, ou si j'ai eu tort de le faire, la faute n'est pas grande, d'autant plus que je ne l'ai pas fait avec mauvaise intention. Palavras, palavras servem para tudo – pensa o monge. Bernardo fora poeta na sua juventude, agora já não é. Sabe bem como há palavras para justificar tudo (como as minhas? Hesita). E continua: Si, comme Adam et Ève, il est convaincu de l'avoir fait, il s'efforce d'en rejeter la faute sur un autre qui l'a conseillé. Or, comment celui qui entreprend avec cette audace de justifier les fautes les plus manifestes, pourra-t-il jamais aller découvrir avec humilité, à son abbé; les mauvaises pensées qui se glissent secrètement dans son coeur?
EARLY MORNING BLOGS 127
Fragmento de um dos grandes poemas do século XX, Zone, de Apollinaire, esta “rua industrial”, para os meus momentos urbanos matinais: J'ai vu ce matin une jolie rue dont j'ai oublié le nom Neuve et propre du soleil elle était le clairon Les directeurs les ouvriers et les belles sténo-dactylographes Du lundi matin au samedi soir quatre fois par jour y passent Le matin par trois fois la sirène y gémit Une cloche rageuse y aboie vers midi Les inscriptions des enseignes et des murailles Les plaques les avis à la façon des perroquets criaillent J'aime la grâce de cette rue industrielle Située à Paris entre la rue Aumont-Thiéville et l'avenue des Ternes * Bom dia, les belles sténo-dactylographes! 30.1.04
OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: ESPÍRITO E OPORTUNIDADE A TRABALHAR
As duas sondas começam a fornecer elementos sem precedentes na exploração espacial: primeira análise microscópica de uma rocha num planeta que não a Terra (Spirit), primeira análise do espectro de uma rocha num planeta que não a Terra (Spirit), e primeiro modelo a três dimensões feito no interior de uma cratera (Opportunity). Está tudo aqui. 29.1.04
ENCONTRO
com vítimas do terrorismo. Corpos estragados, sem pernas. Cicatrizes na cara. Lábios reconstruídos. Apertar uma mão que quase não tem ossos, com os dedos em posições impossíveis. Como se faz? Que pressão se usa? Em que posição coloco os meus dedos? Não há nada como ver. Ver bem. Sentir. Apertar a mão.
ORGULHO 5 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
A jactância é descrita por Bernardo como uma excitação permanente, uma vontade de se mostrar, uma permanente publicidade de si mesmo. O "curioso", preso pelo orgulho, procura intensamente interlocutores, procura conversas, procura polémicas. O "curioso" moderno podia telefonar muito ou ter um blogue: "Il a faim et soif de gens qui l'entendent, à qui il débite toutes ses vanités; devant qui il répande toutes ses pensées et à qui il dise ce qu'il est et ce qu'il vaut. L'occasion de parler lui est-elle offerte, si la conversation roule sur les lettres, on l'entend citer les anciens et les modernes, les jugements se succèdent sur ses lèvres, et les expressions ampoulées résonnent. " O monge mais grave observa com humor - Bernardo trai-se aqui - o "rio de vaidades", a torrente de "graças", o "fluxo de palavras" que revela a jactância. Observa o "curioso" a soçobrar no grau seguinte do orgulho : a singularidade. Acha-se único, acha-se predestinado, acha que o que lhe acontece é singular. Passa de imediato à arrogância. O "curioso" arrogante convence-se: "ele acredita em tudo o que lhe dizem, louva tudo o que faz e torna-se desatento sobre o caminho que segue". Perdeu o seu verdadeiro caminho, segue o caminho dos outros, mas não o sabe. Desde que sinta que agradou a alguém, distrai-se de procurar em si o caminho de Deus. Torna-se susceptível à lisonja. Caminha para a presunção. ( Em que pensa Bernardo na sua cela? Pensa em Abelardo, o adversário, pensa nos monges, o exército de Deus, pensa nos homens pelos quais não tem caridade. Ou melhor , pelos quais não começa por ter caridade. No fim do Tratado rezará por eles.)
EARLY MORNING BLOGS 126
Há manhãs assim. De Cesare Pavese (cortesia de Maria Teresa Goulão): Pensieri di Deola Deola passa il mattino seduta al caffè e nessuno Ia guarda. A quest'ora in città corron tutti sotto il sole ancor fresco dell'alba. Non cerca nessuno neanche Deola, ma fuma pacata e respira il mattino. Fin che è stata in pensione, ha dovuto dormire a quest'ora per rifarsi le forze: la stuoia sul letto la sporcavano con le scarpacce soldati e operai, i clienti che fiaccan la schiena. Ma, sole, è diverso: si può fare un lavoro più fine, con poca fatica. Il signore di ieri, svegliandola presto, l'ha baciata e condotta (mi fermerei, cara, a Torino con te, se potessi) con sè alla stazione a augurargli huon viaggio. E' intontita ma fresca stavolta, e le piace esser lihera, Deola, e bere il suo latte e mangiare brioches. Stamattina è una mezza signora e, se guarda i passanti, fa solo per non annoiarsi. A quesr'ora in pensione si dorme e c'è puzzo di chiuso - la padrona va a spasso - è da stupide stare lì dentro. Per girare Ia sera i locali, ci vuole presenza e in pensione, a trent'anni, quel pò che ne resta, si è perso. Deola siede mostrando il profilo a uno specchio e si guarda nel fresco del vetro. Un po' pallida in faccia: non è il fumo che stagni. Corruga le ciglia. Ci vorrebbe la voglia che aveva Marì, per durare in pensione (perchè, cara donna, gli uomini vengon qui per cavarsi capricci che non glieli toglie nè la moglie nè l'innamorata) e Marì lavorava instancabile, piena di brio e godeva salute. I passanti davanti al caffè non distraggono Deola che lavora soltanto la sera, con lente conquiste nella musica del suo locale. Gettando le occhiate a un cliente o cercandogli il piede, le piaccion le orchestre che la fanno parere un'attrice alla scena d'amore con un giovane ricco. Le basta un cliente ogni sera e ha da vivere. (Forse il signore di ieri mi portava davvero con sè). Stare sola, se vuole, al mattino, e sedere al caffè. Non cercare nessuno. (Poesie, Einaudi, Torino 1961)
VER A NOITE
Neve, neve, neve. Diferente da chuva, a neve com o vento sobe, contra a gravidade. Contra a gravidade. 28.1.04
ORGULHO 4
Ele mergulhou a mão na neve, para a limpar do contacto com o impuro, e continuou. Ele, servo de forças terríveis, ele, a voz da obediência, ele, o inclemente, ele. Prossigamos. Sigamos a ordem. A jactância.
ORGULHO 3 / NOTAS SOBRE AS FORMAS DE SENSIBILIDADE ANTIGAS
Os textos de Bernardo sobre o segundo e o terceiro graus do orgulho são muito claros na descrição da natureza humana do orgulhoso, preso na "ligeireza do espírito " e na "alegria imbecil". Escrevendo há mil anos, o nosso monge sabe do que fala. O "curioso", dominado pela "mobilidade dos seus olhos", começa então a olhar para cima e para baixo, num momento de contradição que em breve abandonará: “ d'un côté il sèche misérablement de jalousie et de l'autre il sourit dans son orgueil à de puérils sentiments de grandeur; vain ici, mauvais là, il est partout orgueilleux ; car ce n'est que par amour de sa propre excellence qu'il ne peut voir sans douleur qu'il a des supérieurs, de même qu'il ne peut songer qu'il a des inférieurs sans en ressentir de la joie. » Fala então por todo o lado , com "palavras tão abundantes quanto vãs, tanto cheias de risos como de lágrimas, mas sempre insensatas". Mas este é um momento de transição , porque o olhar do “curioso” sofre uma interessante mutação : com o tempo deixa de olhar para cima e passa apenas a olhar para baixo. « Il restreint donc sa curiosité, du côté où elle e ne peut lui montrer que son propre néant et l'excellence d'autrui, pour la reporter; tout entière dans le sens opposé, afin de noter avec soin en quoi il lui semble qu'il excelle lui-même sur les autres et de ne rien perdre de sa joie en ne voyant plus rien de ce qui l'afflige. De cette manière, son coeur qui avait commencé par être tour à tour en proie à la joie et à la tristesse, commence à ne plus éprouver qu'une sotte joie. » Bernardo compara o orgulhoso neste estado a um balão cheio de ar, cheio do “vento da vaidade”, explodindo de actividade: « Il y a de la bouffonnerie dans ses manières, l'enjouement brille sur son visage et la vanité éclate dans toute sa démarche; il plaisante volontiers, volontiers aussi il s'abandonne au rire ; cela se conçoit, car en même temps qu'il a effacé de sa mémoire le souvenir de tout ce qu'il y a en lui de méprisable et de triste, il a groupé sous les yeux de son âme tout le bien qu'il se connaît ou qu'il se suppose, attendu qu'il ne pense que ce qu'il lui plaît et se met peu en peine du reste, s'il le peut; enfin il ne peut plus ni retenir ses rires ni dissimuler sa sotte joie. » Abre-se o caminho à jactância, o grau (o degrau) seguinte do orgulho.
NEVE
Neve, neve a perder de vista. Finalmente. Camus dizia que o vento era a "coisa mais limpa do mundo". A neve também. Coisa lustral, primeira, de gente dura e "limpa". 27.1.04
PITON DE LA FOURNAISE HOJE
De regresso aos vulcões. Acabou a erupção do Piton de la Fournaise do fim do ano passado. Foi pequena. Começou agora outra.
SOBRE A "A MINHA RÚSSIA"
"Se percebi bem, das diferentes crueldades do passado vividas pela população russa, a atenção prioritária deveria ser dada à da "grande guerra patriótica", pelo argumento de que está naturalmente mais presente o impacto emocional (nomeadamente nas famílias das vítimas) do que em outros momentos de grande dor. Das minhas leituras e reflexões, e dos dois anos e tal que levo de viver em Moscovo, conversas com russos incluídas, confesso que continuo a ter o mesmo préjugé com que aqui cheguei: enquanto a Rússia não fizer o "trabalho de casa" do que foi realmente a Revolução, a conquista e manutenção no poder dos bolcheviques, a Guerra Civil, a perversão de valores que se instalou durante o Stalinismo (como a resignação à cobardia, como alertou Bulgakhov) - não haverá futuro democrático como o entendemos. A análise (ou auto-análise pelos russos) de outros períodos-chave (como a invasão do território nacional russo pelos alemães ou a Guerra Fria) parece-me, perdoe-me a franqueza, uma distracção, como aqueles devaneios que desviam o estudante da obrigacão mais chata de estudar a matéria principal. Muita e boa historiografia concorda que a Grande Guerra Patriótica foi um enorme balão de oxigénio para o regime stalinista, que lhe deu uma legitimidade (imerecida) por ter desempenhado a função de salvaguardar a independencia da Nação. Como um evento brilhante que apagasse as mazelas anteriores que ninguém quer revisitar. Assim como se apelou, muito justamente, ao fim do processo de "denial" em França relativamente à repressão na Argélia, ao "denial" americano em relação ao Vietname, ou até ao nosso em relação à experiência colonial, há que ver a importância de superar o imenso "denial" russo em relação aqueles momentos anteriores de dor, mesmo se desses está já quase tudo morto." (Jorge Torres Pereira)
MASTURBAÇÃO DA DOR 2 (Actualizado)
"Há quem se enoje, sim. Só espero que receba dezenas de milhar de respostas como a minha e delas dê nota no ABRUPTO, para reconforto de quem faz da decência o ideal possível desta vida. Tão assediada pelas "estratégias velhacas" de que falava Camilo (a propósito de gatos, mas não interessa, o epigrama assenta como luva ao comportamento, hoje generalizado, dos nossos concidadãos)." (J V Mascarenhas) "As reacções em termos de comentários, oscilaram entre o insultuoso - "Quem diria: a flor mais sensível da blogosfera a dar uma de durão, que nem quer saber. És obtuso, estúpido, bruto e, ainda por cima, finges que não és. Os meus parabéns, deves ter feito o pleno" - o indignado - "Se for estupidez ficar comovido com a morte, em directo, de um homem, então eu sou muito estúpido. Como fui estúpido no 11 de Setembro de 2001. Uma morte é triste. Uma morte em directo é comovente. Lamento que não seja capaz de o sentir! Lamento por si" - o do espectador empatizante - "Às vezes são acontecimentos como este que no abanam e nos fazem perceber que nos andamos a preocupar com coisas que não valem a pena e aí voltamos a casa de damos um abraço especial a quem amamos porque fomos abanados" - e o apoiante - "Nunca pensei dizer isto, mas concordo inteiramente contigo. Só a vida em directo é perceptível??! E o resto? Nunca morreu ninguém antes disto? Mas devemos ser opinião isolada na blogoesfera" Poucos ficam indiferentes. É quase como se o húngaro fosse a nossa Princesa Diana. E pergunto-me: e se fosse o Figo ou o Nuno Gomes? Teriam direito ao mesmo tipo de emoção caso se tratasse da morte em combate de um dos nossos GNR's no Iraque? Agora que é um caso passível de sofrer um bom estudo sociológico, é. Lembro-me que o que me deixou mais perto deste estado catatónico em que vejo as maior parte dos meus concidadãos, alimentados que são pela verdadeira shark frenzy dos OCS, numa serpente ourobouros de sentimentos exacerbados, foi assistir à explosão da Challenger - fiquei de boca aberta, descrente, frente ao televisor. E não sei dizer o porquê desta diferença; só posso invocar o facto de o futebol me ser perfeitamente indiferente." (Alexandre Monteiro) "O problema da nossa comunicação social vem sempre depois… Assisti a um realizador da SportTV que se recusou durante essa perturbadora emissão a fazer um grande plano do jogador que lutava pela vida. Ouvi os locutores da Rádio (TSF) sem conseguirem racionalizar tudo a que assistiam. Vi o ar transtornado do jornalista da TVI e do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa quando deram a notícia durante o habitual comentário. Ouvi os repórteres de pista (Rádio e TV) com imensa dificuldade em descrever tudo que se passava. Penso que no meio desta atmosfera emotiva se um de nós pensar, sentir que a ambulância demorou mais um minuto daquilo que poderia demorar, que faltava aparentemente um aparelho qualquer, não será natural um momento de interrogação de indignação, mais ligada ao desespero do que à razão? Nada disso é racional, poderá ser extremamente injusto, mas nada tem haver com o que li algures na blogesfera e descrevia a atitude dos jornalistas como; “avidamente procurada num eventual bode expiatório que daria alimento aos abutres por muitos e largos dias.” Durante aqueles breves, mas eternos momentos não acredito na existência de qualquer tipo de “raça de abutres”. O problema vem depois. Quando a mesma imagem (uma imagem de morte) é repetida centenas de vezes. Minuto após minuto, hora após hora, dia após dia, até deixar de nos chocar/emocionar e deixar de “vender”. Será que ninguém nas nossas televisões se questiona?" (Rui M.) "Porquê polemizar até na morte ? Bastava um “até sempre Fehér “ em vez do post com o infeliz titulo que escolheu ." (Jorge Bento)
ORGULHO 2
Antes de entrar na “ligeireza do espírito”, leia-se este fabuloso texto em que Bernardo se dirige a Lúcifer, tratando-o por tu, e como o Anjo perdido, com uma familiaridade sem sombra de medo. Para Bernardo, o demónio parece ser ainda um deles, irremediavelmente perdido pelo orgulho, mas feito da matéria dos anjos. Usa os três nomes para o designar: o que traz a luz, o que traz a noite, o que traz a morte. “O toi qui te levais le matin, Lucifer, ou plutôt Noctifer et même Mortifer, jadis tu prenais ton essor de l'Orient au Midi, et voilà que, changeant de direction, je te vois tendre vers l'Aquilon! Mais plus ton vol est rapide pour t'élever, plus je te vois tomber vite vers le Couchant. je voudrais bien pourtant, ô ange curieux, examiner moi-même de plus près la pensée intime de ta curiosité : «J'élèverai, dis-tu, mon trône à l'Aquilon (Isa., XIV, 13). » Il ne peut être question dans ta bouche d'un Aquilon ni d'un trône matériels, puisque tu es un pur esprit; « l'Aquilon » pourrait donc bien signifier les futurs réprouvés et « ce trône, »le pouvoir qui t'est accordé sur eux. Plus ta science te rapproche de la prescience de Dieu, en comparaison du reste des anges, plus aussi tu distingues avec perspicacité ceux qui ne reçoivent pas un rayon de la sagesse et ne se font point remarquer par la ferveur de l'esprit. Les trouvant vides, tu établis en eux ton empire, tu les remplis de la lumière de ton astuce, tu les enflammes des ardeurs de ta malice et, de même que le Très-Haut se trouve par sa sagesse et sa bonté à la tète de tous les fils de l'obéissance, ainsi tu te trouves à la tête de tous les fils de l'orgueil; tu es leur roi, tu les gouvernes par ton astucieuse perversité et par ta perverse fourberie, et voilà comment tu prétends ressembler à Dieu. “ “Encontrando-os vazios, tu estabeleceste neles o teu império”, tu “estás à frente de todos os filhos do orgulho” e leva-los para a condenação. Como o orgulho é uma forma de cegueira, dominados pela falsa segurança, os homens esquecem-se que Lúcifer não detém os “fios” últimos do poder, os “fios da obediência”. Lúcifer não foi capaz de prever a sua queda. A sua surpresa é o acto do poder de Deus, a punição do orgulho, a mais humana das punições “Mais je me demande si tu as prévu ta chute en présence de Dieu aussi bien que tu avais prévu ta principauté sous ses yeux? Si tu l'as prévue, quelle ne fut point ta folie de vouloir dominer au prix de semblables malheurs et d'aimer mieux régner à des conditions si misérables que de servir dans la félicité? Ne valait-il pas mieux pour toi participer à ces plaies lumineuses que d'être le prince des ténèbres? Mais j'aime mieux croire que tu n'as rien prévu, soit, comme je l'ai dit plus haut, que ne songeant qu'à la bonté de Dieu, tu te sois dit: Il ne me punira point, et que cette pensée impie t'ait porté à l'irriter ou, qu'à la vue du premier rang à occuper, la poutre de l'orgueil se soit tout à coup tellement accrue dans ton oeil qu'elle t'ait empêché de voir le précipice.” Em que teria pensado Lúcifer enquanto caía? Reproduziria a sua soberba, explicando-se, justificando tudo pela inevitabilidade das coisas, pela fraqueza de si? Ou teria percebido? Bernardo não responde; Milton fê-lo mais tarde, de outra maneira.
CADERNOS DE CAMUS 11
Novos textos publicados. O que escrevi ontem em "Dois Caminhos" não significa que vá abandonar os Cadernos de Camus. Enquanto não existir uma equipa que tome conta deles, e já há vários voluntários, garanto a sua publicação com as contribuições enviadas.
EARLY MORNING BLOGS 125
Quando as manhãs são as mesmas e trazem consigo o benefício dos gestos de sempre, os poetas ingleses contam-nas com forte dose de secura atenta. Hoje há um poema de Jonathan Swift, meio sórdido, meio feito do habitual, mas o tom não é tão diferente como pode parecer de um poema de Eliot que aqui se publicou. A Description of the Morning Now hardly here and there a hackney-coach Appearing, show'd the ruddy morn's approach. Now Betty from her master's bed had flown, And softly stole to discompose her own. The slip-shod 'prentice from his master's door Had par'd the dirt, and sprinkled round the floor. Now Moll had whirl'd her mop with dext'rous airs, Prepar'd to scrub the entry and the stairs. The youth with broomy stumps began to trace The kennel-edge, where wheels had worn the place. The small-coal man was heard with cadence deep; Till drown'd in shriller notes of "chimney-sweep." Duns at his lordship's gate began to meet; And brickdust Moll had scream'd through half a street. The turnkey now his flock returning sees, Duly let out a-nights to steal for fees. The watchful bailiffs take their silent stands; And schoolboys lag with satchels in their hands. (Swift) * Bom dia à Betty e à Moll! 26.1.04
MASTURBAÇÃO DA DOR
Será que ainda há alguém saudável a quem enoje esta gigantesca encenação de masturbação da dor, em que fora de qualquer respeito, equilíbrio, genuína e recatada tristeza, se entrega o país sob o comando do espectáculo televisivo? Há, de certeza. Com vontade de fugir desta insuportável mediocridade. Desta falta de respeito pelos mortos. Desta falta de dignidade. Desta falta de ar.
TRIÂNGULO AMOROSO
Dizia-se antigamente que o triângulo amoroso perfeito era entre a Kolkoziana, o operário e o tractor. A minha versão moderna é entre mim, a sonda Spirit e a sonda Oportunity. Enquanto durar, este é o sítio que mais visito para ver os meus dois outros lados.
ORGULHO 1
Continuando. O melhor texto que conheço sobre o orgulho é de Bernardo de Clairvaux. É um texto severo , como se podia esperar, impregnado de uma disciplina última face ao divino, mas, em cada linha , um retrato inultrapassável dum sentimento que , se pensarmos um pouco, é estranho. Se o virmos do lado prometaico, como os românticos o viam, ele é o fundamento da humanidade: sem orgulho o homem não rouba o fogo divino. Mas essa forma de orgulho não é a mais interessante. Bernardo percebe essa estranheza, mas vê-a com uma sensibilidade diferente. O orgulho não é para ele um sentimento evidente nos homens, é, num certo sentido, um sentimento puramente diabólico. Como nasce o orgulho? Na parte II do Tratado dos Doze Graus do Orgulho (utilizo a versão francesa das obras de Bernardo que se encontra aqui ) ele começa onde menos se esperava, mas acertando completamente. Começa na “curiosidade” , na “curiosidade” como “agitação do corpo”: "Le premier, degré de l'orgueil est la curiosité. Vous la reconnaîtrez à ces signes. Si vous voyez un moine dont jusqu'alors vous étiez parfaitement sûr, commencer, partout où il se trouve, debout, en marche ou assis, à tourner les yeux de côté et d'autre, à lever la tête et à avoir s l'oreille au guet, tenez pour certain que ces changements extérieurs sont le signe d'un changement intérieur ; car « l'homme qui se pervertit, fait des signes des yeux, frappe du pied et parle avec les doigts (Prov., VI, 12); » cette agitation inaccoutumée du corps est l'indice d’une maladie de l'âme qui débute et qui la rend moins circonspecte, insouciante de ce qui la concerne et curieuse, au contraire, de ce qui a rapport aux autres. " A que se deve esta desatenção? Aos sentidos, à distracção dos sentidos, à desatenção de si, à perda do “coração” por via dessas “duas aberturas”, os olhos e as orelhas. Eva e Lúcifer foram curiosos e perderam-se por isso. Bernardo procura um espelho capaz para essas “duas aberturas”, encontra-o na terra "Où vas-tu donc, ô curieux, quand tu sors de toi et, pendant ce temps-là, à quel gardien te confies-tu? D'ailleurs comment oses-tu bien lever les yeux au ciel contre lequel tu as péché ? Regarde la terre pour apprendre à te connaître; elle te remettra en face de toi, car tu n'es que de la terre et tu retourneras à la terre." O que ele diz é : antes de te distraíres no mal, antes de cederes ao orgulho de olhar para cima, confronta-te com a tua mortalidade, porque é mais verdadeira. Mas, se continuares “curioso”, chegarás ao “segundo grau” do orgulho : a “ligeireza de espírito”. (Continua)
DOIS CAMINHOS
Nestes dias de dois caminhos, às vezes penso que devia deixar Camus a outrem. Gosto de Camus porque escreve sobre a culpa sem culpa, contrariamente a quase tudo que se faz e diz hoje, que construímos um mundo impregnado pela culpa. (O Mystic River, para usar um exemplo contemporâneo, retrata isso mesmo, um mundo mergulhado em culpa, no que não se fez e devia fazer, no que nos aconteceu e a culpa é nossa, na culpa dos outros que também é nossa, como se um pecado universal de omissão fizesse parte da comunidade dos homens, ou o pecado original nos conduzisse a um mundo sem salvação. O nosso destino é sentir culpa. Muito judeu, muito católico-americano, muito americano pós-guerra civil, muito Nova Iorquino das classes altas, muito Woody Allen, sem o humor e sem a mãe judia.). Camus é demasiado dos nossos dias. O seu absurdo é quotidiano, está também inscrito no modo como se vê tudo hoje. A descrença preparou o mundo para a “existência”, para esse mundo angustiado da permanente medida com o que nos falta. De novo, Camus faz a diferença com o culto da alegria, com uma sensibilidade que quase é nietzschiana sem a confiança dos golpes de martelo de Zaratustra. Mas tudo medido, talvez me deva voltar para outro lado. A mim interessam-me as formas de sensibilidade arcaicas, alheias, antigas, não este mundo pegajoso da culpa, ou o ar cinzento do absurdo. Devia dedicar-me a outros escritos que nos são tão alheios como Plutão. Como, por exemplo, os desse homem tão terrível como Bernardo de Clairvaux, S. Bernardo para os cristãos. Era sobre ele que devia abrir um blogue.
EARLY MORNING BLOGS 124
Há dias, há manhãs, de dois caminhos. Como em Robert Frost, há um que não se segue. Prefere-se sempre o Holzwege. The Road Not Taken Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth; Then took the other, as just as fair, And having perhaps the better claim, Because it was grassy and wanted wear; Though as for that the passing there Had worn them really about the same, And both that morning equally lay In leaves no step had trodden black. Oh, I kept the first for another day! Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back. I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I-- I took the one less traveled by, And that has made all the difference. (Robert Frost) 25.1.04
HOJE, EM 1851,
Leão Tolstoy foi a uma festa e perdeu a cabeça – apaixonou-se “ou imaginou” que se apaixonara. A cabeça não devia de facto estar muito boa, porque também comprou um cavalo, “que não precisava de todo”.
CADERNOS DE CAMUS 8
Il les exécutait de sa propre main : “II faut, disait-il, payer de sa personne.” (Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
CADERNOS DE CAMUS 7
Pour rester un homme dans le monde d'aujourd'hui, il ne faut pas seulement une énergie sans défaillance et une tension ininterrompue, il faut encore un peu de chance. (Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
PIDES ALFARRABISTAS
"Há dias, em conversa com um antigo colega de curso, este contou-me uma história que lhe foi contada pelo professor José Morgado (um excelente professor, de quem fui aluno em cinco cadeiras) que imediatamente me fez lembrar o seu texto «PORTUGAL NO SEU MELHOR – OS PIDES FILATELISTAS». Por diversas vezes, agentes da PIDE que fizeram rusgas em casa do professor Morgado roubaram-lhe livros (e realço que estou a falar realmente de roubos e não de apreensões) que depois venderam a livrarias. Por mais que uma vez o professor Morgado teve que fazer uma ronda pelas livrarias para os recuperar, pagando-os, naturalmente. Chegou a haver livros que teve que comprar por três vezes: uma em condições normais e duas voltando a comprá-los a livreiros." (José Carlos Santos)
O PS JÁ TEM CANDIDATO PRESIDENCIAL
Nos tempos mais recentes, é difícil ver iniciativa mais estúpida do que a do PS, ao encher Lisboa de cartazes atacando Santana Lopes nominalmente, dando-lhe o relevo político e a visibilidade que ele (mais que tudo) pretende. Os cartazes são inócuos como ataque político. O PS devia compreender que, num município, nunca se faz oposição eficaz cá fora se não se faz lá dentro. E lá dentro a teia de interesses paralisa a oposição municipal socialista, que até agora não se ouviu. O advogado que suscitou as questões do túnel criou mais incómodo do que o PS todo junto. Mas causou-o também ao PS porque revelou a enorme ambiguidade do seu discurso de oposição que, em tudo o que é relevante, balbucia ao lado.
TORTURAS DA PIDE
Num artigo de hoje do Público, São José Almeida escreve o seguinte sobre as torturas utilizadas pela PIDE: “Os métodos [de tortura] usados passavam, por exemplo, por queimar os presos com cigarros. Era também usual interrogar os presos despidos, sobretudo quando se tratava de mulheres.” Nenhuma destas coisas é verdade, a não ser excepcionalmente. A PIDE torturava e torturava por sistema, não é isso que está em causa. Mas não utilizava queimaduras que deixavam marcas e muito menos despia as mulheres “usualmente”. Há um ou outro relato , muito raro, de queimaduras de cigarro, e, a não ser num caso de mulheres presas do Couço, em que humilhações directas de carácter sexual foram utilizadas, desconhecem-se testemunhos nesse sentido. A PIDE insultava as “companheiras” de tudo quanto havia, mas não as despia. Afirmar isto é não compreender de todo os quadros de mentalidade que presidiam ao regime. A lei não chegava à PIDE, como os PIDEs se gabavam, mas chegava a mentalidade e a “moral” sexual (ou a falta dela). É completamente inverosímil o que se diz no artigo.
EARLY MORNING BLOGS 123
Pouco para dizer, muito para ler, muito para fazer. Muito para dizer. Como as marés e as manhãs. The Tide Rises, the Tide Falls The tide rises, the tide falls, The twilight darkens, the curlew calls; Along the sea-sands damp and brown The traveller hastens toward the town, And the tide rises, the tide falls. Darkness settles on roofs and walls, But the sea, the sea in darkness calls; The little waves, with their soft, white hands, Efface the footprints in the sands, And the tide rises, the tide falls. The morning breaks; the steeds in their stalls Stamp and neigh, as the hostler calls; The day returns, but nevermore Returns the traveller to the shore, And the tide rises, the tide falls. (Henry Wadsworth Longfellow) 24.1.04
A MINHA RÚSSIA
Esta é a minha Rússia, à qual me preparo para voltar em breve. Intensa, emotiva, violenta, uma terra sem indiferença, moldada pelo espaço e pela morte, ainda ferida pelas crueldades do passado, da “grande guerra patriótica”, esse momento peculiar de grande dor. Teve outros antes, mas desses está já quase tudo morto. Desta guerra não, ainda vive muita gente, ainda são os pais, os irmãos, os primos, que caíram nas ceifas de 1941-5. Preparo-me. Não se visita a Rússia sem preparação. Olho para um dos “meus” sítios, no número 20 da rua Jdanov (agora Malaya Pokrovskaya), na cidade tártara de Yelabuga, para a pequena casa reconstruída onde, em 1941, Tsvetaeva se matou.
CADERNOS DE CAMUS 4
La liberté sexuelle nous a apporté au moins ceci que la chasteté et la supériorité de la volonté sont maintenant possibles. Toutes les experiences, les femmes retenues ou libres, ardentes ou réveuses, et soi-même déchainé ou circonspect, triomphant ou incapable de desir, le tour est fait. Il n'y a plus de mystère ni de refoulement. La liberté de l'esprit est alors presque complete la maîtrise presque toujours possible. (Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
CADERNOS DE CAMUS 3
Les Anciens et les Classiques féminisaient la nature. On y entrait. Nos peintres la virilisent. Elle entre dans nos yeux, jusqu'â les déchirer. (Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
CADERNOS DE CAMUS 2
30 avril. [1958] Martin du Gard. Nice. Il se traîne avec son rhumatisme articulaire. 77 ans. “Devant la mort rien ne tient plus, non pas même mon oeuvre. Il n'y a rien, rien...” “Oui c'est bon de ne pas se sentir seul “ (et ses yeux se remplissent de larmes). Nous prenons rendez-vous pour juillet au Tertre “Si je suis en vie. “ Mais toujours ce méme coeur s'intéressant a tout. (Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
CADERNOS DE CAMUS
Maman. Si l'on aimait assez ceux qu'on aime, on les empêcherait de mourir. (Carnets III , Mars 1951- Décembre 1959)
EARLY MORNING BLOGS 122
Passando mais pela cidade do que o costume, a manhã amanhece urbana. Para recordar “the halcyon late mornings”, passadas e por vir, este belo poema de Lawrence Ferlinghetti: The Changing Light The changing light at San Francisco is none of your East Coast light none of your pearly light of Paris The light of San Francisco is a sea light an island light And the light of fog blanketing the hills drifting in at night through the Golden Gate to lie on the city at dawn And then the halcyon late mornings after the fog burns off and the sun paints white houses with the sea light of Greece with sharp clean shadows making the town look like it had just been painted But the wind comes up at four o'clock sweeping the hills And then the veil of light of early evening And then another scrim when the new night fog floats in And in that vale of light the city drifts anchorless upon the ocean (Lawrence Ferlinghetti) 23.1.04
BLOGUE SOBRE OS CADERNOS DE CAMUS 3
Coloquei novas contribuições recebidas nos Cadernos de Camus. A partir de agora, para não sobrecarregar o Abrupto, colocarei aí as novas notas sobre Camus.
BLOGUE SOBRE OS CADERNOS DE CAMUS - ENTRADAS TIPO
Les collines au-dessus de Mers-el-Kébir comme un paysage parfait. (Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942) * Le vent, une des rares choses propres du monde. (Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942) * Sur l'échafaud, madame du Berry : "Encore un minute. monsieur le bourreau". (Carnets I , Mai 1935-Fevrier 1942) [A frase completa parece ter sido "Encore un moment, monsieur le bourreau, un petit moment." Para que queria a du Barry o "petit moment" ? Ou será que na hora da morte mesmo um minuto é bem vindo? (JPP)]
BLOGUE SOBRE OS CADERNOS DE CAMUS
Começam a aparecer as primeiras contribuições para um blogue sobre os Cadernos de Camus. Numa fase ainda experimental, estou a publicá-las no Abrupto e simultaneamente em Cadernos de Camus , um blogue inteiramente provisório apenas para teste. Utiliza um template de série e não tem qualquer trabalho gráfico, nem ligações, nem nada. Serve só para arrancar, depois arranja-se uma “casa” mais digna para Camus. Como tenho dito, a minha contribuição é apenas para o arranque; espero que depois uma equipa tome conta do projecto e lhe dê continuidade. Nesta fase inicial, para além dos comentários, era igualmente importante que fossem colocados mais fragmentos dos Cadernos em linha, para suscitar outros comentários. Eduardo Graça - Cadernos de Camus Releio o Caderno nº 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) e anoto os meus sublinhados vigorosos, aquando da primeira leitura, na segunda metade dos anos 60. Achei que nesta primeira abordagem não os devia ignorar. Eis o meu primeiro sublinhado: “Jovem eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente. Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras. E as suas emoções, a sua amizade, os seus gestos nobres mantêm a meus olhos o seu autêntico valor de milagre: um absoluto resultado da graça.” Tenho dificuldade em interpretar as razões que me levaram, com 20 anos, a fazer esta escolha mas seria capaz, hoje, de sublinhar de novo com acrescidas razões. Com respeito às escolhas de JPP é curioso que os meus sublinhados de juventude se situam imediatamente antes e depois das citações escolhidas por JPP. Sublinhei a frase imediatamente anterior à citação de JPP com o título “A civilização contra a cultura”, ou seja, “As filosofias valem aquilo que valem os filósofos. Maior é o homem, mais a filosofia é verdadeira.” E ainda mais extraordinário a coincidência de ter sublinhado as citações imediatamente anterior e posterior daquela outra que JPP escolheu com o título: “Poder consolador do inferno”, quais sejam: “Combate trágico do mundo sofredor. Futilidade do problema da imortalidade. Aquilo que nos interessa, é de facto o nosso destino. Mas não “depois”, “antes”.” E esta outra: “Regra lógica. O singular tem valor de universal. -ilógica: o trágico é contraditório. -prática: um homem inteligente em certo plano pode ser um imbecil noutros.” As minhas escolhas de juventude podiam ser as minhas escolhas actuais. As minhas escolhas actuais vão mais além mas encaminham-se, quase sempre, para uma faceta da reflexão em que Camus olha a natureza e os outros com assumido desprendimento pelas coisas materiais sempre deixando transparecer um problema nunca resolvido na sua vida: a sua relação com o sucesso. Como transparece no texto final deste Caderno nº 1 quando escreve: “…Não é necessário entregarmo-nos para parecer mas apenas para dar. Há muito mais força num homem que não parece senão quando é preciso. Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por ter guardado o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria!...” Extractos, in Cadernos (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições “Livros do Brasil”, incluindo: Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937), Caderno nº2 (Setembro de 1937 a Abril de 1939) e Caderno nº3 (Abril de 1939 a Fevereiro de 1942). (Eduardo Graça)
DIÁRIOS E MÁQUINAS DO TEMPO
Hoje, em 1935, a neve caiu sobre as rosas em Nova Orleans. Edward Robb Ellis , um dos grandes diaristas americanos, registou no seu diário a excitação. “Estes sulistas dificilmente poderiam estar mais excitados, a não ser que começasse uma outra guerra entre os Estados”. Outro diarista. Arthur F. Munby, hoje, em 1864, ouviu, pela primeira vez, o barulho do comboio na nova linha de Charing Cross, o “dull wearing hum” da “maldita máquina”. Hoje, em 1848, a Charles Greville, contaram-lhe umas histórias sobre as crianças reais. Grenville anota que “talvez” possam ser interessantes para julgar o seu carácter quando crescerem. Também sei que amanhã, em 1662, Pepys conheceu a mulher do seu tio Fenner. Não gostou. Também amanhã , em 1927, Virgínia Woolf toma chá com Vita Sackville-West. Esta mostra-lhe umas cartas de Dryden e, no meio delas, aparece uma carta de amor de Lord Dorset. Da carta cai uma madeixa de cabelo dourado. Virgínia pega nela : “One had a sense of links fished up in the light which are usually submerged”. Ligações, links. 22.1.04
LIVROS – PELOS LEITORES DO ABRUPTO
“Curiosa e interessante (para mim) a sua referência ao livro de Karl Lowith Histoire et Salut...Acabei de ler a semana passada um outro seu livro, My Life in Germany Before and After 1933, London, The Athlone Press, 1994. No momento actual em que se discute na Europa o renascer do anti-semitismo, das novas leis em França sobre a laicidade, este pequeno livro é de uma actualidade impressionante: uma espécie de autobiografia desde a República de Weimar passando pelo seu exílio, primeiro na Itália de Mussolini, e acabando no Japão. Neste "relatório" (é assim que Lowith o classifica) ele conta , de uma forma assustadora, como é que um alemão culto e refinado (não só ele mas toda uma geração de pensadores brilhantes) se vê transformado num judeu abjecto perseguido pelos nazis no seu próprio país e, mais tarde, em Itália. O drama do que Lowith aí conta não reside tanto na crítica ao regime nazi mas nas reacções individuais ao fenómeno do nazismo: a sua família, o seu quotidiano, os colegas e amigos, confrontados com opções terríveis onde a vida e a morte se misturam com o dia a dia de cada um. Aquilo de ele refere, com uma notável clareza descritiva , como "the political zoology of racial percentages". Como disse, impressionou-me a actualidade deste pequeno livro na Europa dos nosso dias.(…). Um apontamento final: existe uma tradução portuguesa de um livro dele, O Sentido da História, Edições 70, Lisboa, 1991, que eu creio ser o mesmo livro Histoire et Salut . Mas não tenho a certeza. O meu exemplar não refere o título original em alemão." (João Costa) "The Civil War - An Illustrated History, de Geoffrey C. Ward, Ken Burns e Ric Burns é o "reading companion" de uma série documental ("The Civil War") que foi exibida em 1991 pelo PBS americano. A avaliar pelo livro, que comprei há uma série de anos em Nova Iorque - e que é um monumento documental e pictórico fantástico, que recomendo vivamente - a série, (que nunca vi, mas é considerada "a film masterpiece and landmark in historical storytelling") deve merecer ser vista. Não sei se é a mesma que agora seguiu e a que se refere no seu post. De qualquer modo, e como deve acontecer com os bons produtos de boas televisões (sejam públicas ou privadas) está disponível em DVD. Já agora, a PBS, até tem uma página sobre a série." (Miguel Almeida Motta)
CORREIO
está irremediavelmente atrasado. Muitas cartas ficarão por responder, apesar de eu estar a fazer uma revisão, pelo menos desde o início do ano, entre as cerca de 2800 missivas com atraso desde Maio do ano passado. Depois, por um vicio antigo meu, quanto mais quero responder a uma mensagem ou carta, quanto mais eu a marco como de resposta obrigatória, mais ela se atrasa. Vou ver se me redimo durante os próximos quinze dias, com disciplina prussiana a responder ao correio. É que não queria que desistissem porque o correio é uma das mais vivas recompensas de escrever o Abrupto.
BLOGUE SOBRE OS CADERNOS DE CAMUS
Tenho estado a trabalhar na ideia. Reservei no Blogger o nome, embora a escolha da plataforma final possa ser noutro sítio, e com um tratamento gráfico melhorado dada a amável oferta do autor da Retorta. Rust never sleeps. Há já uma lista de pessoas interessadas em colaborar, incluindo alguns especialistas camusianos. A minha proposta é fazerem-se aqui algumas experiências e depois passar-se tudo, com armas e bagagens, para um blogue autónomo com uma equipa para o moderar, visto que eu não tenho condições de tempo, a não ser para colaborar. Seguem-se alguns exemplos, abertos ao comentário: três fragmentos do primeiro Caderno, datados de 1935-7. Os textos são tirados da edição francesa da Gallimard, mas no futuro podem-se usar traduções, incluindo a portuguesa (de há muito esgotada) dos Livros do Brasil, colecção Miniatura. Para não infringir os direitos de autor, os textos terão que ser usados fragmentariamente. * La civilisation contre la culture. Impérialisme est civilisation pure. Cf. Cecil Rhodes. “ L'expansion est tout “ - les civilisations sont des ilots - La civilisation comme aboutissement fatal de la culture (Cf. Spengler). Culture : cri des hommes devant leur destin. Civilisation, sa décadence : désir de l'homme devant les richesses. Aveuglement. D'une theorie politique sur la Méditerranée. “ Je parle de ce que je connais.” [Hannah Arendt refere-se a esta frase "Expansion is everything" e ao desespero de Rhodes com a sua vontade do todo: "these stars... these vast worlds which we cannever reach. I would annex the planets if I could". Para uma análise desta frase por Arendt veja-se aqui. (JPP)] * Pouvoir consolant de l'Enfer. 1) D'une part, souffrance sans fins, n'a pas de sens pour nous - Nous imaginons des répits. 2) Nous ne sommes pas sensibles au mot éternité. Inappreciable pour nous. Sinon dans la mesure où nous parlons de “seconde éternelle “. 3) L'enfer, c'est la vie avec ce corps – qui vaut encore mieux que l'anéantissement. * Etre profond par insincerité. [A discutir: a mentira é da natureza do humano. Aliás, a mentira é, por sua natureza, profundamente social. Nenhuma sociedade sobreviveria sem a mentira, porque a mentira protege. Mas os homens estão cada vez mais a permitir a generalização de tecnologias da “verdade”, sem perceber a disrupção que elas provocam. Telemóveis com GPS, com câmaras que filmam em tempo real. Continua a ser possível mentir com todos esses mecanismos, mas torna-se tecnologicamente mais difícil. Haverá excluídos da mentira, prisioneiros da verdade, com uma vida social mais pobre? (JPP)]
SERVIÇOS DE INFORMAÇÕES
Independentemente do mérito da última escolha para presidir ao SIS, não se compreende porque razão o Governo (e a oposição) entendem que juízes e magistrados são escolhas óbvias para estarem à frente dos serviços de informações. À frente daqueles serviços deve estar quem perceba, compreenda, tenha sensibilidade e conhecimento … de informações. Eles já estão tão fragilizados que não podem prescindir de alguma dinâmica … de informações. Este tipo de escolhas confunde o controlo da legalidade dos serviços com a sua direcção, sendo que o controlo, para ser eficaz, deve estar fora e não dentro dos serviços. Este tipo de escolhas revela que ainda persiste uma mentalidade complexada sobre o papel das informações de segurança.
ONDE ESTÁ O PROGRAMA?
Pretendendo escrever sobre a questão da liberdade de voto (ou não) dos deputados do PSD na Assembleia, quis consultar o Programa do PSD, de cuja última versão fui um dos co-autores. O texto é relevante para essa questão, assim como o dos Estatutos. Com surpresa, verifiquei que o Portal Social Democrata, que abunda de informação sobre o Governo, não tem em linha o documento mais importante para qualquer partido político. Estão lá uns “Princípios Programáticos” e os programas eleitorais e de Governo. Ainda procurei para ver se estava em qualquer remoto lugar do Portal. Nada. A não ser que esteja tão escondido que nem o motor de busca o encontra, este é um exemplo de degradação ideológica da actividade partidária. Depois não adianta jurar por Sá Carneiro.
EARLY MORNING BLOGS 121
Hoje estamos nas línguas próximas, para uma manhã de Lorca, escrita em Granada, em Abril de 1919 (cortesia de Filipe Castro, do longínquo Texas, USA). Também para este poema, Abril é o mês mais cruel. Ainda não estamos em Abril, temos distância, “el sueño de las distancias”. Continuemos ALBA Mi corazón oprimido Siente junto a la alborada El dolor de sus amores Y el sueño de las distancias. La luz de la aurora lleva Semilleros de nostalgias Y la tristeza sin ojos De la médula del alma. La gran tumba de la noche Su negro velo levanta Para ocultar con el día La inmensa cumbre estrellada. ¡Qué haré yo sobre estos campos Cogiendo nidos y ramas Rodeado de la aurora Y llena de noche el alma! ¡Qué haré si tienes tus ojos Muertos a las luces claras Y no ha de sentir mi carne El calor de tus miradas! ¿Por qué te perdí por siempre En aquella tarde clara? Hoy mi pecho está reseco Como una estrella apagada. (Federico Garcia Lorca ) * Bom dia!
SENA TRADUTOR DE CAVAFY
De uma carta de Roger Miguel Sulis (Professor convidado de língua e literatura grega moderna na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil, e um dos responsáveis pelo arquivo.cavafis ): “O público brasileiro também deve ao poeta Jorge de Sena a primeira versão dos poemas do alexandrino. É o próprio poeta português que lembra o fato ao escrever um artigo para o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, em 28 de junho de 1962, que creio possa ser de algum interesse. Cito: “Apliquei-me à tradução para o português dos seus poemas, e guardo como das melhores recordações da minha vida literária o convívio e a correspondência com aquele velhinho infatigável e extravagante, o dr. Mavrogordato, a quem fiquei devendo esclarecimentos, correções, verificações, e as fotografias inéditas de Cavafy que possuo. Feitas pelo texto de Mavrogordato, ignorante que sou de qualquer grego antigo ou moderno (para lá daquelas palavrinhas que o estudo da filosofia nos obriga a saber), as minhas traduções foram, com o auxílio dele, conferidas pelos originais, esses originais escritos numa língua viva para Cavafy, mas estranha mesmo para os gregos modernos, cuja crítica nunca abundou em reconhecer àquele vagabundo (que o era) de Alexandria, grandeza comparável à clamorosamente oferecida a ‘modernos’ como Seferis ou Palamas.” Esta primeira tradução para o português, portanto, foi feita através do inglês e não do grego pelo poeta que aqui havia chegado em 1959, fugido da ditadura salazarista e que daqui também iria fugir, seis anos depois, por causa de outra ditadura, para os Estados Unidos. O desconhecimento da língua grega está explicitado no poema “Em Creta, com o Minotauro”: “Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.” É sintomático que a poesia de um estrangeiro como Kaváfis chegue ao Brasil pelas mãos de um estrangeiro como Sena, constantemente atravessado pelo tema do exílio: “(...) Nem eu, nem o Minotauro,/ teremos nenhuma pátria”. Seu artigo para o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo contém a tradução de “A espera dos bárbaros” que assim chega ao Brasil no início da década de 60, um momento de conflito entre o fortalecimento dos laços com o capitalismo internacional e a força utópica de setores da esquerda, que nos levam à chegada dos bárbaros com o golpe militar de 64 e a novo exílio do poeta: “Nascido em Portugal, de pais portugueses, e pai de brasileiros no Brasil, serei talvez norte-americano quando lá estiver. Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem, se usam e se deitam fora, com todo o respeito necessário à roupa que se veste e que prestou serviço. Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua de que por acaso de gerações nasci. (...)” Kaváfis poderia assinar este texto.” (R.M.Sulis) 21.1.04
EARLY MORNING BLOGS 120
Auden falando do "flash / Of morning's levelled gun.", que se espera e não vem. That night when joy began Our narrowest veins to flush, We waited for the flash Of morning's levelled gun. But morning let us pass, And day by day relief Outgrows his nervous laugh, Grown credulous of peace, As mile by mile is seen No trespasser's reproach, nd love's best glasses reach No fields but are his own. Bom dia! 20.1.04
PROTO – BLOGUISMO
Mais nomes e obras a serem analisados: com prioridade, o diário de Paul Morand, Journal Inutile 1968-1972, publicado pela Gallimard. Forte candidato a juntar-se aos Cadernos de Camus e Valery.. Jünger, Benjamin, mesmo Stendhal. Portugueses poucos, para além de Pessoa, talvez malgré lui.
NAS TRADUÇÕES
ficamos quase sempre presos ao amor à primeira vista. Foi assim comigo, com os alemães que Quintela traduziu, Hölderlin e Rilke, os Quatro Quartetos da Ática, o Cavafy de Sena, Joyce e Pound de Haroldo de Campos, os gregos de Maria Helena da Rocha Pereira. Em cada um destes casos, depois é difícil desmontar o som original, mesmo que a tradução seja “melhor”. 19.1.04
SOBRE UMA TRADUÇÃO DE CAVAFY
A tradução de Cavafy, que reproduzi no "Early Morning Blogs 117", suscitou muita discussão sobre a sua qualidade e rigor. Várias notas em blogues se lhe referiram (por exemplo no Absorto , na Bomba Inteligente ) , assim como em correspondência que me foi enviada. Recebi igualmente uma cópia de uma carta de um dos tradutores (R. M. Sulis , responsável pelo arquivo.cavafis ), enviada à autora do Bomba Inteligente, e sobre a qual espero os comentários da destinatária original antes de eventualmente a publicar, caso a Carla Hilário entenda não o fazer ela própria. Por razões de longínqua autobiografia, conheço bem este poema e as suas traduções. Quando Jorge de Sena publicou as suas antologias de traduções, eu trabalhava na Editorial Inova no Porto e acompanhei a sua preparação, provas e correcções. Sobre dois dos autores traduzidos por Sena, Cavafy e Emily Dickinson, tenho correspondência com ele da época. Ora uma das maledicências associadas a Sena era saber de que língua fazia algumas traduções, visto que ele era omisso sobre se sabia grego ou não. Assisti a uma muito interessante discussão privada com ele, em que participou o Eugénio de Andrade, sobre uns poemas de Safo. Sena era uma personagem “larger than life” e quer o conhecimento epistolar, quer pessoal, que com ele tive, a primeira vez que veio a Portugal depois de um longo exílio, dava umas páginas de memórias bem animadas. Sabendo o carácter “criativo” das traduções de Sena, as traduções do arquivo.cavafis, como aliás as de Magalhães e Pratsinis, feitas directamente do grego, tinham uma tensão verbal que não existia nas mais fluidas traduções de Sena, reconstruídas num português mais fluente porque pouco preso ao original grego. Interessava-me a comparação.
EARLY MORNING BLOGS 119
Hoje, o primeiro poema de “Sunday Morning” de Wallace Stevens, quando o dia ainda parece “wide water”. Já não é , mas parece. Complacencies of the peignoir, and late Coffee and oranges in a sunny chair, And the green freedom of a cockatoo Upon a rug mingle to dissipate The holy hush of ancient sacrifice. She dreams a little, and she feels the dark Encroachment of that old catastrophe, As a calm darkens among water-lights. The pungent oranges and bright, green wings Seem things in some procession of the dead, Winding across wide water, without sound. The day is like wide water, without sound, Stilled for the passing of her dreaming feet Over the seas, to silent Palestine, Dominion of the blood and sepulchre. (Wallace Stevens)
VER A NOITE (Corrigido)
Está uma noite muito fria, escura, quase silenciosa. Pela primeira vez, de há muito tempo, o céu mostra parte do seu esplendor, com as constelações bem vincadas. Com os olhos mais habituados ao escuro, começam a delinear-se a Via Láctea, Orionte, Escorpião, as Ursas. Orionte, como sempre, manda na noite e em mim, pela voz de Robert Frost: “You know Orion always comes up sideways. Throwing a leg up over our fence of mountains, And rising on his hands, he looks in on me Busy outdoors by lantern-light with something I should have done by daylight, and indeed, After the ground is frozen, I should have done Before it froze, and a gust flings a handful Of waste leaves at my smoky lantern chimney To make fun of my way of doing things, Or else fun of Orion's having caught me.”
NOTÍCIAS DA SUBSÍDIO - DEPENDÊNCIA E NÃO SÓ
Com algum espanto, - ainda me resta algum face à “lata” (desculpem o plebeísmo, mas é a palavra mais apropriada) do nosso mundo dos subsídios culturais - li este anúncio no Público: “ARTE EM CAMPO 0 Instituto das Artes comunica que se encontra em elaboração o seu programa de actividades artísticas e culturais descentralizado, paralelo ao evento Euro 2004. Este projecto denomina-se Arte em Campo. 0 Instituto convida os criadores residentes em Portugal apresentarem projectos em volta da temática do Euro 2004 nas diversas áreas de acção do Instituto (Arquitectura, Artes Visuais, Dança, Design, Música, Teatro, Transdisciplinaridade e Arte Experimental) até dia 2 de Fevereiro, com vista ao seu possível apoio e integração na programação. A avaliação da viabilidade das propostas será efectuada por uma equipa transdisciplinar do Instituto das Artes. Paulo Cunha e Silva, Director 14 de Janeiro de 2004” Para além do espantoso jargão do texto (o que são as categorias “Transdisciplinaridade”, ou “Arte Experimental”?), este “concurso paralelo ao evento Euro 2004”, ou seja aos jogos de futebol, deve de facto ser muito estimulante à “criação”. Em quinze dias, entre a data do anúncio e o fim do prazo, os “criadores”, animados de súbita inspiração futebolística, devem fazer propostas ao dito Instituto, devidamente orçamentadas presume-se. Depois “uma equipa transdisciplinar do Instituto das Artes” fará a avaliação, com certeza na base de um protocolo de gosto “criativo” e dos bons costumes futebolísticos. Será que se pode fazer um cartaz provocatório – categoria Design - denunciando os milhões que foram para o Euro, para ser colocado diante de todos os estádios ? Será que se pode fazer uma performance – categoria Teatro - com uma bancada em fúria a fazer de macaco quando aparece um futebolista negro? Nem pensar, isto é arte do Estado e o Estado patrocina o "evento". Ah, grandes “criadores”! Tanto dinheiro deitado fora! 18.1.04
PORTUGAL NO SEU MELHOR – OS PIDES FILATELISTAS
Os frequentadores dos arquivos da PIDE e dos Tribunais Plenários podem verificar que muita correspondência apreendida pela PIDE e que é anexada como prova tem os selos cortados nos envelopes. Os PIDEs filatelistas lá iam coleccionando uns selos nacionais e estrangeiros. Então a correspondência de origem internacional, nos anos sessenta, motivada pelas campanhas da Amnistia Internacional, está toda cortada. Fabulosa concepção de provas, fabulosa mesquinhez, pequenez, mediocridade de pacóvios mangas de alpaca, de pistola e mão para a bofetada. Grande retrato do Portugal da ditadura: os PIDEs filatelistas.
PIRAMO E TISBE OU O QUE TORNOU AS AMORAS COR DE SANGUE
Sobre a história de Piramo e Tisbe (referida no poema de Gongora dos Early Morning de hoje), para o Tempo Dual. A história é, como todas as histórias clássicas, simples, quase trivial. Um par de namorados adolescentes, Piramo e Tisbe, contrariados pelas suas famílias, vivem lado a lado. “Falam” através de uma fenda na parede da casa que é mútua. Mais do que falam, respiram juntos. Depois decidem fugir e marcam um ponto de encontro, junto de um túmulo. Tisbe chega primeiro e encontra uma leoa que acabara de matar uma presa e tem as garras ensanguentadas. Foge, mas deixa cair o seu véu. A leoa rasga-o e suja-o de sangue. Chega Piramo e pensa que Tisbe foi morta e suicida-se. Tisbe chega e, encontrando o amante a morrer, mata-se também. São enterrados junto a uma amoreira cujos frutos ficam para sempre tintos de sangue. A fenda, o equivoco trágico, a cor das amoras. Depois , como é uma história primeira, primeva, como é inventada pela primeira vez, tão carregada de símbolos, de metáforas, de espessura, de sentido durante dois mil anos vive e se reproduz e se reinventa sem cessar. Por ela passaram todos mas a melhor fonte é Ovidio nas Metamorfoses. Aqui fica um excerto da parte mais dramática Pyrame, clamavit, quis te mihi casus ademit? Pyrame, responde! tua te carissima Thisbe nominat; exaudi vultusque attolle iacentes! ad nomen Thisbes oculos a morte gravatos Pyramus erexit visaque recondidit illa. Quae postquam vestem suam cognovit et ense vidit ebur vaccum, "tua te manus" inquit "amorque perdidit, infelix! est et mihi fortis in unum hoc manus, est et amor: dabit hic in vulnera vires. persequar extinctum letique miserrima dicar causa comesque tui: quique a me morte revelli heu sola poteras, poteris nec morte revelli. (Vou ver se arranjo uma tradução portuguesa.) Em seguida, história fez caminho em toda a literatura clássica e renascentista. Está por todo o lado, em Dante , em Petrarca (I Trionfi) , Boccacio, Chaucer, Shakespeare. Existe na Internet um exaustivo ensaio sobre a sua influência na literatura espanhola. Vem , por exemplo , no Quixote, neste soneto de Cervantes; El muro rompe la doncella hermosa que de Píramo abrió el gallardo pecho; parte el Amor de Chipre, y va derecho a ver la quiebra estrecha y prodigiosa. Habla el silencio allí, porque no osa la voz entrar por tan estrecho estrecho; las almas, sí, que amor suele de hecho facilitar la más difícil cosa. Salió el deseo de compás, y el paso de la imprudente virgen solicita por su gusto su muerte; ved qué historia: Que a entrambos en un punto, ¡oh extraño caso!, los mata, los encubre y resucita una espada, un sepulcro, una memoria E o mesmo acontece em Portugal, a mesma história, a mesma influência. Camões nos Lusíadas: Os dons que dá Pomona, ali natura Produz diferentes nos sabores, Sem ter necessidade de cultura, Que sem ela se dão muito melhores; As cerejas purpúreas na pintura; As amoras, que o nome têm de amores; O pomo, que da pátria Pérsia veio, Melhor tornado no terreno alheio. Numa redondilha Tisbe morreu por Píramo, a ambos matou o Amor; a mim, vosso desfavor. Tisbe pelo seu amante morreu com amor sobejo; mas eu mais morto me vejo. E na Écloga VII Olhai, Ninfas, as árvores alçadas, A cuja sombra andais colhendo flores, Como em seu tempo foram namoradas, Que inda agora o tronco sente as dores. Vereis também, se fordes alembradas, Como a cor das amoras é de amores; Em sangue dos amantes na verdura Testemunha é de Tisbe a sepultura. E agora continua aqui.
NÃO ERA BEM ISSO …
que eu pretendia, mas agradeço a todos que me felicitaram por ter conseguido colocar em silêncio um canal de televisão durante dez segundos em horário nobre. Também não penso que tenha sido a primeira vez desde o 25 de Novembro, alguém já o deve ter feito. Obra era ter "tocado" integralmente o 4' 33''. O mérito é de John Cage e , claro, da SIC.
EARLY MORNING BLOGS 118
Vamos para Gongora e para uma poesia saudável dos prazeres ( e não para uma poesia dos prazeres saudáveis, uma contradição nos seus termos) numa bela manhã de inverno, “naranjada y aguardiente”. Já não falo de Tisbe que os costumes não o permitem. As duas primeiras linhas são o mote. Ande yo caliente, y ríase la gente. Traten otros del gobierno del mundo y sus monarquías, mientras gobiernan mis días mantequillas y pan tierno, y las mañana de invierno naranjada y aguardiente, y ríase la gente. Coma en dorada vajilla el príncipe mil cuidados como píldoras dorados, que yo en mi pobre mesilla quiero más una morcilla que en el asador reviente, y ríase la gente. Cuando cubra las montañas de plata y nieve el enero, tenga yo lleno el brasero de bellotas y castañas, y quien las dulces patrañas del rey que rabió me cuente, y ríase la gente. Busque muy en hora buena el mercader nuevos soles; yo conchas y caracoles entre la menuda arena, escuchando a Filomena sobre el chopo de la fuente, y ríase la gente. Pase a media noche el mar y arda en amorosa llama Leandro por ver su dama; que yo más quiero pasar de Yepes a Madrigar la regalada corriente, y ríase la gente. Pues Amor es tan cruel, que de Píramo y su amada hace tálamo una espada, do se junten ella y él, sea mi Tisbe un pastel, y la espada sea mi diente, y ríase la gente. (Luis de Gongora) 17.1.04
PÁGINA DE DONATIVOS DO WEBLOG
Este é o endereço da página de donativos voluntários do serviço Weblog.com.pt, resultado do trabalho dedicado de Paulo Querido, a que muita gente deve o facto de ter blogues alojados em Portugal gratuitamente. É o caso dos Estudos sobre o Comunismo. Existe uma página de donativos para minimizar os custos suportados, que creio dever ser apoiada sem reservas, porque sou da escola dos que pensam que “não há almoços grátis”; felizmente posso pagar os meus, e mais alguma coisa para que mesmo os que não os podem pagar, os recebam. Felizmente o Estado ainda não é dono da blogosfera portuguesa - lá chegará um dia, ou já chega com o Sapo - e por isso pretendo contribuir para uma das raras actividades culturais que não vive de subsídios. Embora o Abrupto esteja alojado no Blogger, coloco este apelo aqui porque penso ser mais eficaz.
EARLY MORNING BLOGS 117
De há muito tempo que faltava Cavafy na manhã, arrastando um mundo que se vê sempre a acabar como se estivesse a começar, o mundo que se olha com os olhos do fim, mas que não sabemos se está apenas no principio. Quando esse olhar está nas terras certas, onde à frente está o mar, o mar onde tudo aconteceu, o mar dos deuses, o mar de Ulisses , o mar dos náufragos, o mar dos marinheiros, “hei de deter-me aqui”. MAR DA MANHÃ Hei de deter-me aqui. Também eu contemplarei um pouco a natureza. Do mar da manhã e do céu inube azuis brilhantes, e margem amarela; tudo belo e grandiosamente iluminado. Hei de deter-me aqui. E me enganar que os vejo (em verdade os vi por um momento ao deter-me) e não também aqui minhas fantasias, minhas recordações, as imagens do prazer. [51, 1915] ΘΑΛΑΣΣΑ ΤΟΥ ΠΡΩΙΟΥ Εδώ ας σταθώ. Κι ας δω κ’ εγώ την φύσι λίγο. Θάλασσας του πρωιού κι ανέφελου ουρανού λαμπρά μαβιά, και κίτρινη όχθη• όλα ωραία και μεγάλα φωτισμένα. Εδώ ας σταθώ. Κι ας γελασθώ πως βλέπω αυτά (τα είδ’ αλήθεια μια στιγμή σαν πρωτοστάθηκα)• κι όχι κ’ εδώ τες φαντασίες μου, τες αναμνήσεις μου, τα ινδάλματα της ηδονής. [51, 1915] (Tradução de R. M. Sulis, M. P. V. Jolkesky, A. T. Nicolacópulos, em arquivo.cavafis) Nota: sendo esta atmosfera o que é, muita gente se vai irritar com o grego, muita gente se irrita com o que ignora. Mas há quem saiba grego (não é o caso do Abrupto que tem escassos conhecimentos escolares de grego) e, quando se pode dar mais informação em vez de menos, dá-se mais. 16.1.04
PERGUNTA COMPLETAMENTE PROVOCATÓRIA
Qual será a situação do "não pagamos, não pagamos", com entoação?
LUA, MARTE, TUDO 3 (FEITO PELOS LEITORES DO ABRUPTO)
Constatei que de facto a missão da ISS perdeu muita da sua popularidade nos EUA após o acidente ocorrido com o Vaivém no passado Verão. Os custos desde esse acidente aumentaram brutalmente do lado americano, visto que e' o Vaivém o principal veiculo usado para chegar ate' 'a ISS. Para alem disso parece ter havido uma derrapagem geral das contas da missão. Li o seu texto "Lua, Marte, Tudo" depois de ter assistido ontem na CNN ao debate sobre o discurso feito por George Bush. Parece-me haver um óbvio entusiasmo na NASA com este anúncio, basta ver o sítio da NASA, mas alguns dos cientistas entrevistados mostraram-se bastante cépticos e acharam algumas declarações confusas. E' difícil definir a fronteira entre a boa vontade de empreender um projecto destes e a campanha eleitoral para as próximas presidenciais americanas. Os intervenientes no debate mostraram de forma clara esta preocupação. Como ja referi em email anterior a ESA tem um programa ja ha dois anos com o objectivo de levar uma missão tripulada a Marte, o programa Aurora. Nesta página pode ver o calendário previsto. Chegada entre 2030 e 2033. O Canada já se associou 'a missão. Por isso não faz muito sentido a sua classificação de "o habitual", em relação aos objectivos europeus. A Europa/ESA/ESO neste momento esta envolvida em todas as "aventuras" mais importantes que se seguem nos próximos anos, a saber: - O programa Aurora que culminara com uma missão tripulada a Marte. - O projecto ALMA ao qual se vão juntar os EUA e o Japao. - O próximo telescópio espacial para o visível, em conjunto com os EUA Para alem disso neste momento a Europa através da ESA e do ESO tem dois projectos que são lideres: o VLT (ESO) que e' só o melhor "telescópio" jamais construído pelo homem, e o INTEGRAL que e' o melhor instrumento que temos no espaço para observar radiação de alta energia (raios X e raios gama). Estes não são projectos menores ou missões habituais. São grandes projectos, que representam em si grandes aventuras técnicas, menos mediáticas do que pisar um planeta, mas cientificamente bem mais relevantes. (Rui Silva , Klepsydra) Creio que ninguém contesta – pelo menos aqui – a ideia de se tentar ir a Marte. Eu não tenho perdido uma única das conferencias de imprensa da NASA, desde que o primeiro rover deu sinal de vida e a maioria dos meus amigos esta tão excitada como eu. O que se discute e o facto desta administração andar a retirar dinheiro das universidades, ter metido um yuppie do CityBank a frente do Smithsonian, nao honrar a promessa do Bill Clinton de dar dinheiro a NOAA (a NASA do fundo do mar) e vir agora falar de Marte em ano de eleições. Ainda por cima ninguém percebe porque e que esta administração quer excluir a Europa do programa espacial (American supremacy in space foi a expressao do presidente). Sobretudo quando o deficit já vai a caminho de meio trilião de dólares, a guerra e um atoleiro sem saída, e cada vez e mais claro que quem vai pagar a factura e a classe media. (Filipe Castro , Texas, USA ) O cidadão comum não está em condições de poder formular juízos acerca do mérito científico, tecnológico ou mesmo civilizacional, do programa ora anunciado pelo Presidente do EUA. Contudo, qualquer cidadão, nomeadamente se for potencial eleitor em Novembro próximo, o que nos está vedado a nós - portugueses -, pode e deve questionar-se sobre o significado desse anúncio e do momento escolhido. Se o Chefe de Estado dos EUA não nos tivesse habituado, nas últimas décadas, a inúmeros anúncios sobre os mais diversos assuntos que dizem respeito à vida da sociedade estadunidense e por arrastamento a uma parte significativa da comunidade humana, eu ficaria surpreso: Afinal alguém assumia a responsabilidade de apontar um rumo a uma Humanidade carente de ideias catalisadoras que dessem um novo sentido à sua difícil Existência. Mas, afinal, confesso, não passa de um logro:A actual comunidade humana vai, dia-a-dia, continuar a defrontar-se com os mesmos problemas de sempre, independentemente de estarem reunidas ou não as condições políticas, orçamentais,científicas e tecnológicas para iniciar tão utópico projecto. Crédito teria se tal anúncio fosse antecipado de humilde manifestação de vontade de líderes incontestados da comunidade científica e tecnológica ao apresentar uma proposta fundamentada da real necessidade presente e/ou futura de tal aventura. (João M. Farias da Silva) Uma das mais fortes emoções da minha vida, tive-a ao ver partir uma das missões do Space Shuttle. Não é tanto o ambiente de grande festa popular e de alegria genuína que se instala à volta, em pequenas cidades «com vista» para o lançamento ou nas estradas próximas, com «six-packs», e música, e risos e conversas. Nem as chamas dos foguetes, que de repente fazem dia a meio da noite. Nem o som que chega uns segundos mais tarde, reverberando, fazendo tremer o chão. É sobretudo pensar-se que gente sonha uma coisa daquelas, e lhe dedica a vida, a a realiza, e que gente vai lá no nariz de toda aquela força e perigo terrível. É gente do melhor, seguramente, valentes, sonhadores, poetas, grandes corações e cabeças. Um anti-americanista primário (e secundário também) ficaria perplexo vários dias antes de voltar a acoitar-se na sua rotina e azedume. (José Mendonça da Cruz) Um programa de pesquisa espacial bem feito, do tipo a que duma forma geral nos habituaram os americanos da NASA e, que infelizmente a Agência Espacial Europeia não o conseguiu em plenitude, é um feito de que os humanos se podem e devem orgulhar, porque demonstra engenho. Além do mais os resultados científicos e tecnológicos adquiridos, aplicados ao nosso quotidiano são sempre uma mais valia. Quem não se recorda das aplicações resultantes das tecnologias usadas nos projectos Gemini e Apolo e, ainda em fase de estudo do Space Shuttle, aplicadas às ciências que assistem o comum dos mortais? Os campos da meteorologia, da medicina, da cirurgia, das comunicações, da electrónica, ficaram enriquecidos por esses avanços tecnológicos. Em resumo, o programa espacial americano da NASA poderá certamente, mais uma vez, ter aspectos técnicos altamente positivos. É, portanto, de apoiar entusiasticamente este projecto, do ponto de vista científico e técnico. Cumpre aos especialistas analisar esse programa, de forma a criticar o que nele está mal e contribuir para o melhorar. Outra coisa é as considerações políticas acerca deste assunto. Neste caso, as aplicações militares, a oportunidade e, outros considerandos, são temas para análise política. Quanto aos custos deste investimento, porque se trata realmente dum investimento, que naturalmente são elevados, não devem ser discutidos na base de se não seria melhor a sua aplicação noutros projectos. Com efeito, o que se deveria discutir não são os custos deste programa, mas sim de outros, como por exemplo os de armamento, os custos de guerras preventivas, os de obras sumptuárias e quejandos. A qualidade de vida mede-se pelos resultados dos investimentos e uma racional utilização dos recursos e, por isso, um programa espacial é um meio para a melhorar. (Rui Silva)
LUA, MARTE, TUDO 2
Tenho recebido muita correspondência sobre esta nota. Não está esquecida, mas só amanhã poderei publicá-la. Obrigado pelo interesse. Vejam entretanto, no endereço da NASA , as primeiras fotos do "espírito" livre. 15.1.04
LUA, MARTE, TUDO
Muito do que se lê sobre o anúncio do programa espacial americano, para além do habitual anti-bushismo e das graçolas ignorantes, mostra uma enorme indiferença e insensibilidade ao tipo de desafio, ao tipo de aventura (esta é das poucas coisas que hoje merece esse nome), que é a exploração espacial. Pode-se contestar quase tudo no programa americano ( bom, poder pode, mas não deve, a coisa é feita por cientistas da matéria e, por muito estúpidos que se ache serem os políticos americanos, não foram eles que escreveram o papel), mas sem ele pouca coisa haverá no próximo meio século para além do habitual. O habitual é necessário, e aí os europeus têm um papel, mas sem o excepcional não se avança. Talvez a mais revolucionária proposta do programa seja o abandono do Space Shuttle e a construção de raiz de um novo veículo espacial. * "Estou de acordo que o programa espacial americano só deve ser criticado por pessoas com competência técnica para o fazerem, mas isto só se refere a críticas ao programa em si. Em contrapartida, se se levantar o problema de se querer saber se aquele dinheiro não seria melhor empregue noutra coisa, aí já estamos a discutir política e não ciência. E aí, numa sociedade democrática, todos podem expressar as suas opiniões. Quero acrescentar que, pessoalmente, tenho grande dificuldade em imaginar alguma actividade na qual aquele dinheiro fosse mais bem empregue. Quem, por exemplo, teria apostado em 1910 que a aviação teria o futuro que teve?" (José Carlos Santos)
EARLY MORNING BLOGS 116
É difícil escrever melhor sobre a noite como faz em "Insônia" o nosso Álvaro de Campos. É dificil escrever melhor sobre "a alegria dessa esperança triste" que vem com a madrugada. A juntar ao poema de Larkin, na série mais negra destes poemas matinais. Não durmo, nem espero dormir. Nem na morte espero dormir. Espera-me uma insônia da largura dos astros, E um bocejo inútil do comprimento do mundo. Não durmo; não posso ler quando acordo de noite, Não posso escrever quando acordo de noite, Não posso pensar quando acordo de noite — Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite! Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer! Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo, E o meu sentimento é um pensamento vazio. Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam — Todas aquelas de que me arrependo e me culpo; Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam — Todas aquelas de que me arrependo e me culpo; Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada, E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo. Não tenho força para ter energia para acender um cigarro. Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo. Lá fora há o silêncio dessa coisa toda. Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer, Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir. Estou escrevendo versos realmente simpáticos — Versos a dizer que não tenho nada que dizer, Versos a teimar em dizer isso, Versos, versos, versos, versos, versos... Tantos versos... E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim! Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir. Sou uma sensação sem pessoa correspondente, Uma abstração de autoconsciência sem de quê, Salvo o necessário para sentir consciência, Salvo — sei lá salvo o quê... Não durmo. Não durmo. Não durmo. Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma! Que grande sono em tudo exceto no poder dormir! Ó madrugada, tardas tanto... Vem... Vem, inutilmente, Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta... Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste, Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança, Segundo a velha literatura das sensações. Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança. O meu cansaço entra pelo colchão dentro. Doem-me as costas de não estar deitado de lado. Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado. Vem, madrugada, chega! Que horas são? Não sei. Não tenho energia para estender uma mão para o relógio, Não tenho energia para nada, para mais nada... Só para estes versos, escritos no dia seguinte. Sim, escritos no dia seguinte. Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte. Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora. Paz em toda a Natureza. A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras. Exatamente. A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras. Costuma dizer-se isto. A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece, Mas mesmo acordada a Humanidade esquece. Exatamente. Mas não durmo. 14.1.04
DELORS
Publicou uma espécie de memórias em entrevista, que não comprei e não li. Talvez venha a comprar, mas os livros políticos franceses deste tipo são sempre muito decepcionantes, feitos à pressa e demasiado jornalísticos. Mas, à noite, vi uma longe entrevista a Delors no terceiro canal francês, conduzida por Christine Ockrent e com o apoio de vários jornalistas como Serge July. A entrevista era amável e respeitosa, mas Delors mostrava todas as suas qualidades, rápido, irónico e experiente. Aquele homem já viu muito, já teve que aturar muito, já negociou muito. Não custa reconhecer a marca de um político de qualidade, mesmo que não se concorde com o que diz. Se a entrevista fosse mais curta, ficaria pelo parágrafo anterior. Mas, à medida que avançava, em particular quando entrou July a perguntar, ou a querer que Delors fizesse um eco das suas afirmações, numa cumplicidade incomodativa para quem via, alguma coisa se começou a deteriorar. Cada vez que Delors falava uma falta crescia, uma ausência se tornava cada vez mais real: os povos, os europeus, as pessoas... a democracia. E cada vez mais emergia esse traço do currículo dos politicos franceses, a alta administração pública, o pensamento de um burocrata sofisticado, efectivamente indiferente ao valor da legitimação democrática do que está a fazer. Ele está convencido de que está a fazer bem e conhece todos os mil e um mecanismos para fazer as coisas "andar". Mas também é ele que sabe qual é a direcção para onde devem "andar" e não lhe passa pela cabeça perguntar a ninguém.
EARLY MORNING BLOGS 115
genuinamente populares, do povo. Como o autor do Abrupto recebe muitas vezes conselhos bem intencionados para ser "mais populista", e menos "elitista", algum dia teria que ceder à tentação. Eis pois hoje quatro provérbios meteorológicos sobre a manhã, cheios da intensa sabedoria de quem se levanta cedo, anda nos campos e tem que prever o tempo e dorme (quando pode) a sesta: Aurora ruiva: vento ou chuiva. Rigor da noite: chuva de manhã. Sol que muito madruga pouco dura. Manhã de névoa: tarde de sesta. * Aqui onde estou está uma "manhã ruiva", logo vento e "chuiva". Não sei como está a pátria. Bom dia! 13.1.04
ONDE É QUE EU JÁ OUVI ISTO?
"Je sais que vous savez que j'ai su que vous aviez découvert celui qui savait que vous ne saviez pas ce que je savais, etc." Paul Valery, Cahiers 1894-1914 , v. VIII, p.399
PROTO-BLOGUISMO : CADERNOS DE CAMUS E DE VALERY 2
Há muitas diferenças de conteúdo, estilo e algumas na forma. De um modo geral, as entradas de Valery são mais afirmativas que as de Camus, mas os tempos também são outros: Valery concentra-se nos anos 1894-1914 e os de Camus vão de 1935 a 1959. As certezas de Valery são mais expostas, mas a verdade é que Camus também as têm, o que acontece é que as coloca muitas vezes como dúvidas. Nesse sentido os Cadernos de Camus estão mais próximos da nossa sensibilidade e os de Valery são de matéria mais "clássica". Há partes parecidas com as de textos de Goethe, preocupações semelhantes Mas isto são primeiras impressões que tem normalmente o defeito de desaparecerem à medida que a leitura vai progredindo.
PROTO-BLOGUISMO : CADERNOS DE CAMUS E DE VALERY
Tenho estado a comparar os Cadernos de Camus, com os de Valery, para ver da sua semelhança com esta espécie de proto-blogues. Não tenho dúvidas sobre a adequação dos de Camus, mas os de Valery, muito mais extensos - quase quatro vezes mais do que os de Camus - não os conhecia. Tenho estado a lê-los com a vantagem de andar para trás e para a frente, de volume em volume, e só esta forma de leitura já revela diferenças. Os Cadernos de Camus podem mais facilmente ser lidos sem ordem , os de Valery , como mantém uma unidade de matéria por muitas dezenas de notas, são mais difíceis de ler desta forma errática.
PROTO-BLOGUISMO
Interessa-me procurar uma espécie de genealogia do tipo de escrita dos blogues. Diários, cadernos de notas, colecções de ditos, aforismos, tem a forma próxima e, nalguns casos, mais do que a forma, dos blogues. E não só : obras fragmentadas também encaixam bem no modelo, obras que desapareceram e de que ficaram apenas fragmentos como as dos pré-socráticos.
TRIVIA (Actualizada)
De manhã, num carro, com dois amigos italianos. O motorista pára num semáforo. Ao lado um esgoto de águas pluviais entupido. Nada de especial, em Portugal ninguém ligaria nenhuma, só uma poça de água que leva os peões a terem que se desviar. Aqui não, a eficácia alemã é perturbada pela agua castanha à vista de todos. Um carro dos serviços municipais chega e dois homens tiram a tampa e enfiam uma mangueira no buraco para o desentupir. No carro, ninguém consegue tirar os olhos da operação, a mais trivial das tarefas, a não ser o motorista que não se interessa. Todos esperavam o momento em que a água se sumisse rapidamente pelo buraco desimpedido, o momento perfeito, a teoria das catástrofes em acto. O semáforo mudou antes do fim da operação, o carro arranca. Se a nossa cabeça mandasse ficaria ali, à espera. De facto , os homens gostam mesmo de ordem. Alguns homens. Intelectuais. * "Conclusão errada. Só tem a haver com o facto de vocês virem duma classe privilegiada que se pode preocupar com coisas como um esgoto entupido. O motorista estava a pensar em coisas mais sérias. " (Maria Cristina Perry) 12.1.04
OS CÉUS DA FRANÇA
estão inabitáveis. Aterrar em Paris com ventos quase ciclónicos é pouco recomendável. 11.1.04
BIBLIOFILIA 9 / FARENHEIT 451
Os livros que se estragam, apanham água e colam, comem-se por dentro, perderam sentido; sem capa, sem parte das folhas, estão irremediavelmente perdidos, mesmo para mim que os conservo até ao limite. Queimo-os. É um destino mais nobre que o papel a peso. As cinzas são um bom adubo. Hoje é dia de queima.
OBJECTOS EM EXTINÇÃO
“Agora que os seus objectos em extinção parecem estar extintos, gostava de lhe dar conta de um objecto extinto algo curioso para os nossos dias. Trata-se de um cartão do Ministério do Exército, do Serviço de Recenseamento e Mobilização de Solípedes, em que se descrevem os traços físicos de um solípede, cujo proprietário «Em caso de mobilização ou de emergência grave [...] deverá - sob pena de prisão militar ou na de incorporação em Depósito Disciplinar e da apreensão do solípede acima mencionado sem direito a qualquer indemnização - apresentá-lo no local, dia e horas que forem indicados por edital, jornais, rádio ou aviso individual.» Pelo mesmo documento, o proprietário é obrigado a levar o pobre solípede a uma inspecção anual. O cartão data de 1954.” (Alexandra Soares Rodrigues)
EARLY MORNING BLOGS 114
Eu que, em muitos dias, aqui desejo os bons-dias e que, no início do ano, desejei os bons-anos, encontro-me com este sermão do Padre António Vieira, no qual ele mostra a avareza do nosso desejar: "Em um Mundo, digo, tão avarento de bens, onde apenas se encontra com um bom-dia, ter obrigação de dar bons-anos, dificultoso empenho! E na minha opinião cresce ainda mais esta dificuldade, porque isto de dar bons-anos, entendo-o de diferente maneira do que comummente se pratica no Mundo. Os bons-anos não os dá quem os deseja, senão quem os assegura. A quantos se desejaram nesta vida, a quantos se deram os bons-anos, que os não lograram bons, senão mui infelizes? Segue-se logo, própria e rigorosamente falando, que não dá os bons-anos quem só os deseja, senão quem os faz seguros". (Como isto está tudo ligado, o genial padre fez este sermão cerca de quarenta anos antes dos trabalhos de Pepys, que temos acompanhado na Londres dos Fanáticos.) Bom dia!
VER A MESMA NOITE
outra vez, quando está a acabar. Há pássaros que só cantam nesta altura da noite.
VER A NOITE
Nevoeiro, poeira de água por todo o lado. Há um pássaro diferente a piar. Ou talvez um mocho, atrasado no seu dever.
COMO SE TIVESSE POUCAS COISAS PARA FAZER 2
agora vou todos os dias ler o “dia” de Samuel Pepys. Há 344 anos, no dia de hoje, Samuel Pepys andou a passear por Londres, de um lado para o outro, a tratar dos seus assuntos e a conversar sobre as malfeitorias dos Fanáticos. A sua mulher fez o mesmo, indo a casa do Senhora Hunt, uma amiga. Pepys encontrou-a aí: “So to Mrs. Hunt, where I found a Frenchman, a lodger of hers, at dinner, and just as I came in was kissing my wife, which I did not like, though there could not be any hurt in it..” 10.1.04
BIBLIOFILIA 8
David J. Eicher, The Longest Night. A Military History of the Civil War, Pimlico, 2002 Foi o meu companion book quando vi a série sobre a guerra civil americana, e confirmou a sensação de conflito épico, gigantesco e devastador, que os filmes davam. Centrado nos aspectos militares do conflito, mostra o papel inovador que tem a guerra quando, puxando os homens até aos limites, mobiliza recursos que a paz nunca traz e eleva a imaginação e a criatividade. É infeliz que seja assim, mas é muito assim, talvez porque o medo e o desespero sejam poderosos factores de invenção. Maurice Sartre, L’Anatolie hellénistique de l´Egée au Caucase, Paris, Armand Colin, 2003 É um livro escolar excelente, uma coisa que os franceses, que têm sólidas escolas de história antiga, produzem. Folheio-o para me recordar das pequenas aldeias da Anatólia, praticamente sem nunca terem sido escavadas, fora das rotas turísticas, melhor sinal do poder do tempo e da mudança. Escrevi no Abrupto sobre uma delas, Alexandria de Troas. Katl Löwith, Histoire et Salut. Les présupposés théologiques de la philosophie de l’histoire, Paris , Gallimard, 2002 Não li, olhei para um ou outro capítulo, mas tem o fôlego da grande filosofia alemã, uma mistura de sistematicidade e voo teórico, uma filosofia que respira o ar do mundo, e por isso se dá tão bem com a teologia, com uma vontade de totalidade que, aplicada à história, dá resultados muito interessantes. Voltarei a falar deste livro.
EARLY MORNING BLOGS 113
um pouco tardios. Aqui fica, de Castilho, incluída no Tesouro Poético da Infância de Antero, esta ilustração de que também há luta de classes nas manhãs, em que uns podem dormir e outros não têm direito ao sono. Para os amadores das viagens no tempo e da Idade Média, e da Terra Média, este tumulto matinal. Manhãs frescas de Setembro, Quando o orvalho está a cair, Frescas manhãs de Setembro, Quem as pudera dormir! Durma-as El-rei nos seus paços, E o pastor no seu redil, As aves nas suas folhas, As feras no seu covil; Coas damas os seus maridos; Cada qual segundo a si; Que para os tristes monteiros... Tais sonos não os há aí! Em. luzindo a estrela de alva, E ainda antes do seu luzir, Dom Fuas Roupinho alcaide Das mantas os faz sair. Voam corcéis e sabujos; Apupa, apupa clarim; Que esta sina de fragueiros Não tem descanso nem fim. Tremei, gândaras e montes, O feras, fugi, fugi; Que logo.., nem pés ao gamo, Nem val’ fúria ao javali; Só se lhes valer a névoa, Que maior nunca se viu! Indo todos lá perdidos, Buzina ao longe se ouviu... Buzina do alcaide é ela! Vai a chamar... e a fugir! Trás o som correi, cavalos, Enquanto se pode ouvir; Nem caminhos, nem atalhos; Rasgar fragas e alcantis, Que este apupar de Dom Fuas E de correr javalis! Tudo ia em redemoinho... Homens, corcéis e mastins, Ladridos, brados, relinchos, Fragor de armas e clarins! E encontra donde o som vinha Às cegas era o seu ir; E a buzina era já perto... Quando cessou de se ouvir! Pararam todos à escuta; E estando a escutar assim, Sentiram perto o mar fundo Quebrar com muito motim. Rompeu-se co sol a névoa, E ao resplandor que luziu, Sobre penha, que duzentas Braças pende ao mar, se viu Um cavalo! e o bom Dom Fuas, Que o remessara até ali, Saltar por terra, clamando: – Por ti, Senhora, é por ti! Prostrou-se humilde e deu graças, Depois benzeu-se e surgiu. E ora ouvireis que palavras Aos monteiros proferiu. * E mais não disse, se não metade do blogue atravessava o Rio Letes. Bom dia!
VER A NOITE
Está uma Lua cheia, violenta, poderosa, mas invisível. Todo o céu está coberto de nuvens, mas as nuvens reflectem a luz pálida dispersa, meio fluorescente, da cor dos telemóveis, embora menos intensa. As chuvas já trouxeram muita água para dentro da terra e o som da pequena corrente da mina ouve-se mais alto. Um cão ladra ao longe, como é costume nas noites. Está um vago nevoeiro lá em baixo.
COMO SE TIVESSE POUCAS COISAS PARA FAZER
agora vou todos os dias ler o “dia” de Samuel Pepys. Hoje, há 344 anos, Pepys mantém esta magnífica mistura entre a maldição dos “tempos interessantes” e as delícias do cabrito. Ontem, há 344 anos, “my wife and I lay very long in bed to-day talking and pleasing one another in discourse.” Hoje, os “Fanáticos” (seitas protestantes puritanas) estragaram-lhe o dia: “Waked in the morning about six o’clock, by people running up and down in Mr. Davis’s house, talking that the Fanatiques were up in arms in the City. And so I rose and went forth; where in the street I found every body in arms at the doors. So I returned (though with no good courage at all, but that I might not seem to be afeared), and got my sword and pistol, which, however, I had no powder to charge; and went to the door, where I found Sir R. Ford, and with him I walked up and down as far as the Exchange, and there I left him. In our way, the streets full of Train-band, and great stories, what mischief these rogues have done; and I think near a dozen have been killed this morning on both sides. Seeing the city in this condition, the shops shut, and all things in trouble, I went home and sat, it being office day, till noon. “ 9.1.04
NOTAS CHEKOVIANAS 9
Chekov, autor de blogue, na secção dos humorísticos. Chekov divertindo-se nas “perguntas colocadas por um matemático louco” (de The Undiscovered Chekhov. Fifty-One Newly Translated Stories, traduções da casa): “Ptolomeu nasceu no ano de 223 antes de Cristo e morreu depois de ter chegado à idade de oitenta e quatro anos. Levou metade da sua vida a viajar, e um terço a divertir-se. Qual é o preço de um quilo de pregos e será que Ptolomeu se casou?” “Na festa do Ano Novo, 200 pessoas foram expulsas do baile de máscaras do Teatro Bolshoi por brigarem. Se os rufiões foram 200, qual era o número dos convidados que estavam bêbados, vagamente bêbados, que praguejavam e que tentaram, mas não conseguiram , envolver-se em brigas?” E por aí adiante.
QUADRATURA DO CÍRCULO
tem "um flashback da semana" como subtítulo. O primeiro passa no próximo domingo e, para os amadores, pode-se aqui encontrar, em português, a enunciação do problema clássico da matemática que lhe dá o título. Um dia se fará a história do programa, que tem na sua versão actual dois dos membros originais - eu e José Magalhães. O jornalista moderador original foi Emídio Rangel, depois substituído por Carlos Andrade. O terceiro membro da quadratura foi o mais mutável: começou por ser Vasco Pulido Valente, depois Miguel Sousa Tavares, Nogueira de Brito e, por fim, António Lobo Xavier. Para responder às dúvidas de Vital Moreira, há que ter em conta que a composição política do programa foi sempre mudando com este terceiro elemento. O Vasco Pulido Valente vinha da candidatura de Soares e era tido como próximo do PS; só mais tarde, já fora do programa, teve a sua passagem parlamentar como independente nas listas do PSD. No início, Magalhães era comunista e fez a sua transição para o PS também nas discussões do programa. Miguel Sousa Tavares era independente, mas foi sempre mais próximo da área socialista do que do PSD. A composição actual fixou-se com Nogueira de Brito, e com António Lobo Xavier em sua substituição, mas também, no caso do PP, ambos entraram para o programa numa altura em que estavam bastante afastados da direcção do partido. Duvido que, se o Flashback tivesse a preocupação de assegurar uma representação ao espelho do parlamento, conseguisse a variabilidade de posições e discussões que por lá passaram.
MENSAGEM / MENSAGEIRO
A distinção mensagem / mensageiro é, nos meios de comunicação social modernos, uma falácia. "Electric circuitry profoundly involves men with one another. Information pours upon us, instantaneously and continuously. As soon as information is acquired, it is very rapidly replaced by still newer information. Our electrically-configured world has forced us to move from the habit of data classification to the mode of pattern recognition. We can no longer build serially, block-by-block, step-by-step, because instant communication insures that all factors of the environment and of experience co-exist in a state of active interplay." (McLuhan The Medium is the Massage: An Inventory of Effects) A desenvolver. 8.1.04
NOTAS CHEKOVIANAS 8
The Undiscovered Chekhov. Fifty-One Newly Translated Stories, Duckbacks, 2002. Lido com muito prazer, com um entusiasmo página a página crescente, com surpresa, porque nunca se sabe o que é que está na página seguinte. De fragmento em fragmento, Chekov diverte-se com pequenas anedotas, ou conta tudo que há de trágico no mundo, em meia dúzia de linhas, como só ele sabe contar.
SOBRE VICTOR SÁ
foram feitas actualizações e complementos na nota em baixo. Não queria que, pela inexorabilidade do esquecimento rápido do ecrã dos blogues, ficassem esquecidas a quem interesse.
EM COMPLEMENTO (Actualizado)
ao que escrevi hoje no Público, não escapa a ninguém que a notícia da Focus vem na mesma sequência de fugas de informação manipuladas. Três nomes escolhidos num álbum que tem mais de cem, para provocar escândalo, com o escândalo garantido na Assembleia da República, para ampliar ainda mais uma estratégia de politização do processo da Casa Pia. É tudo tão transparente. Espero que, se alguma vez houver uma acusação contra um “político de barbas”, o Ministério Público cumpra o seu dever e mostre a minha fotografia num álbum de “políticos de barbas”. Porque é que não o há-de fazer? Só se não procurar a verdade, nem investigar como deve ser. Espero em seguida, que essa circunstância, verificada ser irrelevante porque eu não sou o “político de barbas”, seja protegida pelo segredo de justiça, para não permitir que uma opinião popular, que distingue mal as minudências jurídicas, não me meta no mesmo saco dos eventuais culpados. Espero também que os órgãos de comunicação social, que nunca aprendem nada com a milionésima manipulação em que são levados a colaborar, em muitos casos deliberadamente porque sabem o que fazem e querem fazer o que fazem, percebam que não há nada de interesse público em nomear políticos que fazem parte obrigatória de um álbum que é mostrado a uma criança violada e que sabe que o foi por “um político conhecido”. A polícia não cumpria o seu dever se não mostrasse fotografias de políticos conhecidos, ou será que se espera que ela presuma quais são os que podem ser suspeitos ou não? Porquê? Porque são homossexuais? Porque frequentam o Elefante Branco? Porque são solteiros? Porque são diferentes e maus pais de família? Espero também que um órgão de comunicação social que, sem forte e justificada razão de interesse público, atentasse contra o bom nome de alguém através da violação do segredo de justiça para fins especulativos, tivesse duras penas, como acontece em democracias tão amigas da liberdade e tão consolidadas como a inglesa. Porque, deixemo-nos de subterfúgios, a existência de sanções para proteger um direito constitucional obrigaria à maior responsabilidade de uma comunicação social que, salvo honrosas excepções, chegada a estes momentos decisivos, não mostra nenhuma. Eu sei que espero demais, mas é assim que deveria ser. * Veja-se comentário em Aviz.
SOBRE VICTOR SÁ (Actualizado)
"Quando, ontem à noite, fui confrontado com o seu texto sobre Victor de Sá, tive dificuldade em acreditar que estivesse a ler bem, tendo de relê-lo mais do que uma vez, para tentar apagar a impressão amarga que me deixou. Desde logo pela inoportunidade da coisa, à luz da formação da generalidade dos portugueses, que nos leva a não gostar de ouvir tratar mal aqueles que acabam de morrer. Venho à liça por duas razões: por ser filho do visado, e por ser, como ele, um construtor e defensor do 25 de Abril (já perceberá onde quero chegar !). Porque sou filho de Victor de Sá, tenho de dizer-lhe que o Senhor não o conheceu, pura e simplesmente. Ou nesse “pouco” que o conheceu ”pessoalmente”, o senhor estava fora do seu juízo… É que Victor de Sá nem era arrogante, nem dogmático, nem sectário. E desde sempre. Lembro-me bem de muitas vezes ter ouvido a gente da “Situação” dizer: ah…se todos os comunistas fossem como o senhor doutor! Meu Pai foi uma pessoa invulgarmente simpática no seu trato com toda a gente, tímida, até (que é o contrário de arrogante), dialogante, pedagogicamente anti-dogmática. A corrida dos alunos às suas aulas, quer na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, quer na Universidade Lusófona; o entusiasmo dos seus ouvintes e interlocutores, antes e depois do 25 de Abril, em tantos e tantos colóquios nas repúblicas de Coimbra, nas escolas secundárias, nas colectividades, nos sindicatos e outras muitas associações, são a negação da sua afirmação. Sempre combateu os dogmas: afastou-se muito cedo da religião, e, mais tarde, de outros dogmas que caracterizam o partido em que militou. Mas o mais notoriamente público das suas qualidades, é mesmo o seu pendor profunda e autenticamente pedagógico na busca da verdade. Foi isso uma das razões da sua partida para o exílio: poder estudar a História Contemporânea Portuguesa, liberto das mentiras que a envolviam no seu país mergulhado no obscurantismo. E assim, num notável afã científico, reescreveu a história do Liberalismo em Portugal, dando um contributo pioneiro para a releitura do nosso passado recente, e abrindo caminho a novas gerações de investigadores. A culminar essa apaixonante actividade, instituiu mesmo, em 1990, o Prémio de História Contemporânea Victor de Sá, que anualmente galardoa os mais qualificados trabalhos científicos que a ele concorrem, tendo acontecido no passado mês de Dezembro a sua 13ª edição, ao longo de cuja vida alcançou grande prestígio. No seu ensino, quer no formal (como professor universitário), quer no informal (como pai, ensaísta e orador) sempre praticou e estimulou o sentido crítico, como elemento essencial no difícil caminho da aproximação à Verdade. Aliás, foi essa exacta qualidade que, nos anos sessenta, na Sorbonne, o fez “deitar fora” o seu primeiro ano de investigação, ao constatar que havia factos que tinha descoberto, que não encaixavam na versão oficial da historiografia do nosso Século XIX; e, em consequência, enveredou pela busca de outros factos que, tendo ocorrido, não eram trazidos à luz da História oficial, e por isso distorciam o conhecimento, e o próprio entendimento do Liberalismo em Portugal. Antes disso, o seu empenho activo e criativo na actividade cultural, designadamente através da criação da Biblioteca Móvel (nos anos 40, senhor doutor, muito antes das Bibliotecas da Gulbenkian e obviamente sem apoios, ou seja, às suas exclusivas custas, para disponibilizar livros por empréstimo aos seus “assinantes”), é absolutamente uma “marca de água” da personalidade de Victor de Sá, de que faz igualmente parte a criação da Livraria Victor – Centro Cultural do Minho, também desde os anos 40, tantas vezes vasculhada pela PIDE, até uma vez encerrada, numa tentativa desesperada do Regime de vergar, pela fome de toda a família – que não tinha outros rendimentos – a força indomável daquele Cidadão pela Liberdade, e que teve a resistência activa dos próprios colegas livreiros (todos da Situação !), que, num corajoso gesto de solidariedade, venderam os artigos aos nossos clientes, debitando-os à nossa livraria, até à sua reabertura, vários dias depois. Poderia juntar outros elementos biográficos, mas não é altura disso. Como Filho, estou naturalmente demasiado magoado para o fazer agora. Se por estas poucas palavras se pode verificar que aquilo que o senhor diz no seu texto não tem qualquer fundamento, a minha 2ª razão de escrever isto diz-lhe respeito a si, apetecendo-me perguntar-lhe: quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão ?! Porque há-de V. escrever sobre tudo, o que sabe e o que não sabe? É doença ? Ou é uma incontrolável força interior ? Ou simplesmente uma expressão de possidonismo, característica dum sujeito que se julga superior aos outros, desde logo porque não é da Província ? Mas haverá pior provincianismo do que esse ? O seu texto, tão curto, aliás, expele um fel que lhe vem das entranhas, na forma de algumas poucas palavras: “comunistas provincianos do Minho, de Famalicão, Braga, mesmo do Porto”, que “depois do 25 de Abril, quando tiveram algum poder, eram intransigentes e bem pouco democratas”; a “ortodoxia agressiva” que “perpassava nos textos” “sobre o movimento operário”. Bom, sobre o Movimento Operário, Victor de Sá produziu investigação científica, na qual não cabe aquilo que o senhor diz. E os comunistas provincianos do Minho…serão diferentes dos de Viseu, Coimbra, ou do Sul ? Porque é que isola exactamente esses do Minho, especialmente de Famalicão e Braga (esqueceu-se dos de Guimarães !) ? Julgo perceber o seu ódio especial aos Democratas de Braga, retratados no importante volume “Intervenção Política”, selecção e edição de Humberto Soeiro para o período 1940-1970: eles, esses democratas, marcaram com coragem a iniciativa da Oposição, tantas vezes obrigando a definição de atitudes que seriam diferentes, ou até inexistentes, sem a sua iniciativa. E dando guerra sem quartel à Ditadura, criaram, com os democratas do resto do País, as condições para o 25 de Abril. De facto era diferente em Braga a luta contra a Ditadura, onde pesava o poder imenso da Igreja, terrivelmente fechada e com uma hierarquia profundamente irmanada com o Regime, onde só havia 2 estabelecimentos de ensino secundário oficiais (em contrapartida a 14 seminários), onde havia o tal Santos da Cunha, mas também o Cónego Melo. Mas curiosamente, o seu texto não se vira para a actividade dessa gente contra o Regime Democrático: apenas critica as suas vítimas, poupando os algozes. É por isso que escrevo este texto: para expressar a minha revolta pelo papel envenenador que o senhor realiza através das suas interpretações políticas. Dantes, a PIDE e o Santos da Cunha, agora … o democrata Pacheco Pereira ! Além disso, a honestidade intelectual manda, e o rigor científico exige, que se apeie do seu pedestal de "Deus" e reflicta sobre essa declarada (por si) contradição sobre o Homem Victor de Sá (permita-me que use a maiúscula, em vez da minúscula pequenamente utilizada por si). A sua Dúvida deveria levá-lo a ir mais longe no raciocínio, antes de se pronunciar sobre um Homem que acaba de morrer, e nos deixa Obra de vulto: "ainda hoje não sei como é que nesta rectidão, motivada pelas ideias, se define uma mora, se há uma moral" ... Ao menos por um momento, formule cientificamente uma hipótese: a sua tese estará certa, ou porque não se ajusta à pessoa visada, deve ser revista a tese?!" (Victor Louro) "Li com atenção o comentário do Dr. José Pacheco Pereira, “NECROLOGIAS”, publicado no Blog (www.abrupto.blogspot.com) sobre o meu avô Victor Sá. Não posso deixar de enumerar algumas inprecisões às suas notas biográficas (ver estudos sobre o comunismo e notas finais) e efectuar uma crítica ao Dr. José Pacheco Pereira por julgar que a sua liberdade de expressão (palavra tão cara ao meu Avô e à minha família) lhe serve para formular incompreensíveis adjectivações de carácter sobre um HOMEM, e passo a citar: “...tenho dele uma impressão de arrogância dogmática e sectária, muito comum nos comunistas provincianos do Minho, de Famalicão, de Braga, mesmo do Porto. Acresce que ele escrevia sobre o movimento operário, e a mesma ortodoxia agressiva perpassava nos textos. Depois do 25 de Abril, quando tiveram algum poder, eram intransigentes e bem pouco “democratas” - que marcou e foi um exemplo para várias Gerações. Victor de Sá, independentemente do Partido Político a que cada um pertence, foi e é reconhecido como um destacado vulto da vida cultural e política do Distrito de Braga e do País. É considerado um anti-fascista ímpar, na coragem e frontalidade e um lutador pela liberdade e democracia do século XX. Em 1942 iniciou a luta contra o regime salazarista. Os Democratas de Braga “um núcleo de resistência e formação ideológica”, do qual faziam parte Victor Sá, Armando Bacelar, Lino Lima, Francisco Salgado Zenha, Flávio Martins, Humberto Soeiro (entre outros), marcou a luta nacional contra o regime fascista. O documento dirigido “Aos Portugueses” e assinado por 100 democratas em 31 de Janeiro de 1959, que terminava dizendo a Salazar para “abandonar o poder” foi um dos documentos mais importantes da oposição ao regime fascista. O documento foi projectado e redigido por Lino Lima e Victor de Sá. Depois de impresso, foram distribuídos por diversas regiões do País, do Minho ao Algarve. Escreveu então no dia 3 de Janeiro de 2003 José Pacheco Pereira, que Victor Sá era “arrogante”, “sectário” e “pouco democrático”. Para esclarecer tamanha enormidade, nada melhor que uns pequenos excertos publicados no livro “testemunho de um tempo de mudança” promovido pelo Conselho Cultural da Universidade do Minho. Este livro reuniu alguns editoriais que Victor Sá publicou no “Correio do Minho”, no período compreendido entre 3 de Maio de 1974 e 2 de Fevereiro de 1975, durante o qual foi director provisório e não remunerado daquele diário bracarense. 1. Sobre o provincianismo de que fala Pacheco Pereira – “É preciso salvaguardar que a Universidade do Minho contribua efectivamente para uma actualização e cientificação do pensamento, e nunca para a consolidação dos valores regionais negativos, que muitas vezes são glorificados como tradicionais. Uma Universidade Regional não pode ser um centro de pensamento folclórico, mas sim um farol a irradiar, no meio das trevas, a luz patente e civilizadora da razão e da ciência. Doutro modo, mais se consagrará o pensamento provinciano – de que já estamos abundantemente servidos – do que o pensamento crítico e inovador. Esta á a problemática fundamental que tem de presidir à definição de objectivos da Universidade do Minho. Porque, quanto à sua existência e próximo funcionamento, isso nem sequer está posto em causa” (Correio do Minho, 29 de Janeiro de 1975) 2. A Arrogância, Sectarismo e falta de democracia de que fala Pacheco Pereira – “Os exemplos vindos do alto eram sempre os da subserviência e os da corrupção. Esses é que eram os bons, esses é que eram os triunfadores. Logo, quem quisesse passar por bom e ser triunfador, tinha de proceder a essa autêntica “actualização de carácter”. Os honestos e os capazes, esses não eram exemplo a seguir, porque eram os perseguidos e considerados como perigosos. Foi assim que, ao cabo de 48 anos de continuidade fascista, uma boa parte da população portuguesa embora cada vez mais revoltada contra a opressão do regime, encontrava-se na realidade incapacitada de fazer uma correcta avaliação em que o país se encontrava, incapacitado também de saber escolher caminhos novos para arrancar Portugal do atoleiro para que nos tinham atirado 13 anos já de guerra colonial. (Correio do Minho, 5 de Outubro de 1974) Pacheco Pereira tece ainda no seu blog e sobre Victor Sá o seguinte comentário “No entanto, quando se faz de Deus e se escrevem estes balanços de vida, fica uma sensação contraditória sobre o homem.” Digo-lhe com toda a certeza que o Mundo não é feito de “impressões”, muito menos das suas. Na Vida de Victor Sá não há contradições, pois o “balanço de vida” está cheio de causas onde a Liberdade, a Democracia e a Cultura foram a chama da sua força!" (...) (Marcos Sá) * O texto de Marcos Sá inclui algumas rectificações e complementos à biografia dos Estudos sobre o Comunismo, que serão aí analisadas (em particular, a questão da data da entrada de Victor Sá para o PCP). Veja-se igualmente o comentário de Vital Moreira em Causa Nossa .
UM BLOGUE SOBRE OS CADERNOS DE CAMUS 2
As respostas que tenho recebido são muito positivas. Vamos esperar mais algum tempo (virão certamente mais respostas e propostas) e depois enviarei uma nota para se começar a fazer uma experiência.
A FORÇA DO "ESPÍRITO"
Agora que nos entusiasmamos com as fotografias de Marte, enviadas pela força do “espírito”, vale a pena ler (ver) a colecção de 25 fotografias históricas consideradas pela Astronomy no seu último número como as “melhores” de sempre. A maioria das fotografias nada tem de espectacular. A que mais me impressiona – a vista do sistema solar pela sonda Voyager 1 a 4 biliões de milhas da terra - é tão difícil de perceber em formato pequeno que desisti de a colocar (pode ser vista aqui). Mas toda a história do nosso olhar pelo universo está lá, o lado escondido da Lua, Plutão pela primeira vez, os espectogramas que Hubble consultou, os vulcões de Io, e a sempre magnifica Sombrero, a galáxia mexicana em Virgo.
EARLY MORNING BLOGS 112
Hoje é dia de “Melancholy Breakfast”, cortesia de João Costa, um grande poema pequeno, com esse verso certeiro do fim a servir de bandeira para estes dias de cinza. Melancholy Breakfast Melancholy breakfast blue overhead blue underneath the silent egg thinks and the toaster's electrical ear waits the stars are in "that cloud is hid" the elements of disbelief are very strong in the morning (Frank O'Hara) * Bom dia! 7.1.04
A QUADRATURA DO CÍRCULO
ou o Flashback de novo, igual em tudo ao original, o mesmo Carlos Andrade, o mesmo José Magalhães, o mesmo António Lobo Xavier, o mesmo eu, na SIC Notícias no domingo. Saudades de discutir.
UM BLOGUE SOBRE OS CADERNOS DE CAMUS
Repito aqui uma sugestão que já tinha feito há uns meses: usar os cadernos de Camus como texto inicial para um blogue de literatura e filosofia, e, a partir dos seus textos, colocar outros textos, meta-textos sobre as entradas originais de Camus, numa espécie de trabalho colectivo, uma never ending story de inspiração camusiana. Para este tipo de coisas os blogues são uma boa fórmula e o resultado pode vir a ser publicado mais tarde em livro. (Agora que escrevo isto, outros textos também dariam blogues interessantes, certas partes da Bíblia por exemplo.) Para resultar bem, terá que haver moderação, um grupo responsável. Se houver voluntários, passa-se à prática.
PROTO-HISTÓRIA DOS BLOGUES
Blogues antes de haver blogues encontram-se em muitos diários, em particular nos diários, ou colecções de notas arranjadas cronologicamente. Textos como os cadernos de Camus e Paul Valery, ou os diários de Tolstoi, ou os fragmentos de Kafka, já foram aqui referidos como paradigmas de escrita que se aproxima ( e nalguns casos se afasta) do modelo dos blogues. Os blogues são herdeiros dessa escrita e a ideia original de usar os celebres diários de Samuel Pepys, colocando-os em linha, de forma a coincidir com as datas do mês, revela as diferenças e as semelhanças do quotidiano com quatrocentos anos de diferença. Foi assim que Pepys passou o dia do senhor , o domingo de 6 de Janeiro de 1660, tal como escreveu no seu blogue: "(Lord’s day). My wife and I to church this morning, and so home to dinner to a boiled leg of mutton all alone. To church again, where, before sermon, a long Psalm was set that lasted an hour, while the sexton gathered his year’s contribucion through the whole church. After sermon home, and there I went to my chamber and wrote a letter to send to Mr. Coventry, with a piece of plate along with it, which I do preserve among my other letters. So to supper, and thence after prayers to bed."
TINTAS SECRETAS
É muito interessante a lista dos dez mais antigos documentos americanos por desclassificar existentes nos Arquivos Nacionais dos EUA. São os seguintes: Memo, Heingelman to Marlenck 2 pages Created 30 October 1917 Report: Detection of Secret Ink 6 pages Created 01 January 1918 Pamphlet on Invisible Photography & Writing, Synthetic Ink,... 2 pages Created 01 January 1918 U.S. Naval Mines, Mine Anchor, Mark VI 21 pages Created 26 January 1918 Report: Secret Inks 1 page Created 16 March 1918 U.S. Naval Mines, Mine Anchor, Mark VI 42 pages Created 01 May 1918 Ordnance Pamphlet 575, Enemy Mines 62 pages Created 01 June 1918 German Secret Ink Formula 1 pages Created 14 June 1918 Report: German Secret Ink Formula 3 pages Created 14 June 1918 Ordnance Pamphlet 643 Mine Mark VI and Mods. Description and Operation 114 pages Created 01 January 1938 Embora, num ou noutro caso, a desclassificação não se tenha dado porque provavelmente nunca foi pedida, há um padrão no seu conjunto. Todos são documentos da I Guerra Mundial, com uma excepção, e têm a ver com munições e tintas secretas. As tintas secretas, que tanto entusiasmo suscitaram nos livros de espionagem da primeira metade do século XX, parecem ainda hoje ter interesse operacional. Segundo uma recusa de desclassificação de um destes documentos, (James Madison Project v. NARA, No. 98-2737 (D.D.C. Mar. 5, 2002), a CIA ainda utiliza algumas destas fórmulas. Embora muito raramente, ainda nos anos sessenta e até ao 25 de Abril, tintas secretas eram usadas nas comunicações mais protegidas dos grupos radicais clandestinos contra o regime, em conjunto com variantes de códigos do tipo "one time pad". Ainda me lembro de escrever uma ou outra carta com tinta secreta, com o texto nas entrelinhas de uma carta vulgar, como precaução suplementar em relação a nomes de pessoas que já seguiam também em código. Se calhar dava jeito, nessa altura, conhecer estas "german secret inks", porque desconfio que a fórmula que usávamos era muito primitiva e a PIDE não teria muita dificuldade em revelá-la.
EARLY MORNING BLOGS 111
não podiam regressar melhor do que com uma manhã camoneana, a da Ode V. Verdade seja dita que, onde estou, a "noite grave" continua e as "naus" dificilmente se podem alegrar, porque não há "raios" nenhuns. Deixo de parte, como é evidente, qualquer "luz" dos "olhos vossos", porque isso não é matéria de blogue. Ode V Nunca manhã suave, Estendendo seus raios pelo Mundo, Depois de noite grave, Tempestuosa, negra, em mar profundo, Alegrou tanta nau, que já no fundo Se viu em mares grossos, Como a luz clara a mim dos olhos vossos. Aquela fermosura Que só no virar deles resplandece, Com que a sombra escura Clara se faz, e o campo reverdece, Quando meu pensamento se entristece, Ela e sua viveza Me desfazem a nuvem da tristeza. O meu peito, onde estais, É, pera tanto bem, pequeno vaso; Quando acaso virais Os olhos, que de mim não fazem caso, Todo, gentil Senhora, então me abraso Na luz que me consume Bem como a borboleta faz no lume. Se mil almas tivera Que a tão fermosos olhos entregara, Todas quantas tivera Pelas pestanas deles pendurara; E, enlevadas na vista pura e clara, Posto que disso indinas, Se andaram sempre vendo nas meninas. E vós, que descuidada Agora vivereis de tais querelas, De almas minhas cercada, Não pudésseis tirar os olhos delas. Não pode ser que, vendo a vossa entre elas, A dor que lhe mostrassem, Tantas ũa alma só não abrandassem. Mas, pois o peito ardente Ũa só pode ter, fermosa Dama, Basta que esta somente, Como se fossem duas mil, vos ama, Pera que a dor de sua ardente flama Convosco tanto possa Que não queirais ver cinza ũa alma vossa. (Camões) 6.1.04
TEMPO, TEMPO
a caminho. Mesmo assim (ou assim mesmo?), pego o tempo a caminho. Em breve, volto. Cada vez mais breve. Até já. 4.1.04
O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES
Sobre NECROLOGIAS “Um pouco à margem do tema deste post lamento a ligação "provincianismo-Minho" que, embora sirva aqui apenas para adjectivar, bem ou mal, o indivíduo em causa, nos remete para a eterna visão "de Lisboa e Porto e o resto é paisagem" ainda presente no imaginário colectivo nacional, sublinhada pela generosa inclusão "mesmo" de uma cidade como o Porto nessa classificação. Julgo que nos dias de hoje, mesmo os maiores cidadãos do mundo não deixam nunca de ter presente os diferentes graus de identidade geográfica por onde se movem, ou por onde já passaram, sejam de nível regional, nacional ou civilizacional. A falta de um desses elementos parece-me difícil de acontecer a quem quer que seja, podendo, talvez mesmo, acumular diferentes "níveis", como os muitos migrantes que, mudando de cidade dentro de um mesmo país, alteram o próprio sotaque. Por outro lado, no nosso país, a dicotomia capital-província ter-se-à acentuado no século passado graças a anos de isolamento do exterior, centralismo excessivo típico de um país pouco desenvolvido, e pela longa manutenção de um império colonial com sede em Lisboa. A rotulagem de Braga como "província" foi ainda brutalmente ampliada pelo seu conhecido posicionamento político durante as passadas décadas, tendo a cidade sido absolutamente ostracizada após o 25 de Abril, o que só não se reflectiu no seu desenvolvimento, ironicamente, pela "ditadura" que se auto impôs. Num mundo global, em que os traços de pertença regional dos sujeitos continuam insistentemente a sobreviver (embora já condenados à extinção vezes sem conta) e se vão integrando noutros de nível mais vasto, correspondentes aos diferentes palcos por onde se movem, não será, isso sim, sinal de provincianismo, a tentativa de manutenção desse velho e sufocante paradigma de divisão geográfica "capital-província"? Vista de Berlim ou Bruxelas, haverá alguma coisa mais provinciana que a velha revista do Parque Mayer?” (Luis Pedro Machado) 3.1.04
NECROLOGIAS
Está visto que o dia está fadado para necrologias. Deve ser sina dos dias bonitos de Inverno. Leio no Aviz e no Almocreve das Petas notícias sobre o suicídio de Eduardo Guerra Carneiro. São escritas com saudade, amizade, proximidade e com o incómodo, com a culpa, que os suicidas espalham à sua volta. Eu também estive neste ofício dos mortos, a escrever uma nota necrológica sobre Victor Sá para os Estudos sobre Comunismo. Com uma diferença: no pouco que conheci pessoalmente de Victor Sá, nunca tive a menor simpatia pelo homem. Tenho dele uma impressão de arrogância dogmática e sectária, muito comum nos comunistas provincianos do Minho, de Famalicão, de Braga, mesmo do Porto. Acresce que ele escrevia sobre o movimento operário, e a mesma ortodoxia agressiva perpassava nos textos. Depois do 25 de Abril, quando tiveram algum poder, eram intransigentes e bem pouco “democratas”. No entanto, quando se faz de Deus e se escrevem estes balanços de vida, fica uma sensação contraditória sobre o homem. Ele teve uma vida que a PIDE, e essa personagem sinistra que era Santos da Cunha, se encarregaram de estragar com afã. E ele voltava ao mesmo, a fazer as mesmas coisas, com uma persistência que só uma fé poderosa e moderna como era o comunismo explicava. Ainda hoje não sei como é que nesta rectidão, motivada pelas piores ideias, se define uma moral, se há uma moral. Garanto-vos que, visto de perto, não é simples.
EARLY MORNING BLOGS 110
Devia falar de manhãs, à luz destas manhãs esplendorosas de Inverno, com sol e frio. Mas hoje fico pelo tempo, o que nunca se fixa, o que faz as manhãs diferentes: “Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, porque não vos fixais? Que passais como a água cristalina Por uma fonte para nunca mais!.... Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncais, E o vago medo angustioso domina, – Porque ides sem mim, não me levais? Sem vós o que são os meus olhos abertos? – O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos... Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão casual de meus dedos incertos, – Estranha sombra e movimentos vãos.” (Camilo Pessanha) * Bom dia! * Breve nota de engano meu: afinal o poema de Eleanor Farjeon, musicado por Cat Stevens, já tinha sido publicado há 60 manhãs atrás. Obrigado a José Carlos Santos que o enviou originalmente e que me recordou o erro.
VER A NOITE
Não deve andar muita gente lá fora, a estas horas. Nas terras ali fora, no campo, sem ser de carro, a pé. Está uma noite estranha, uma combinação de vento forte com rajadas muito frias, mesmo muito frias. À luz de uma metade de Lua, com algumas estrelas ao fundo, num céu apesar de tudo negro. O frio manda, atravessando as árvores sem folhas. Ao longe, numa árvore iluminada para as festas, as pequenas luzes oscilam furiosamente com o vento. Não temos florestas “negras”, mas, se as tivéssemos, não era hora para atravessar nenhuma. 2.1.04
EARLY MORNING BLOGS 109
Este “Morning has broken” cantado por Cat Stevens, enviado pela Isabel Goulão, representa para mim parte de uma memória especial, gravada pelo mesmo processo inapagável pelo qual um som ou um cheiro nos trazem todo um mundo. O poema é de Eleanor Farjeon, uma escritora menor, amiga de D.H. Lawrence e Robert Frost, entretanto esquecida. A voz de Cat Stevens era a única que me acompanhava numa casa em que estive escondido da PIDE antes do 25 de Abril, e durante tempo demais, quase às escuras pelo que era difícil ler, esperava que o meu único contacto com o mundo exterior me trouxesse jornais, comida e , acima de tudo, notícias sobre o que podia estar a desabar à nossa volta, os amigos presos, a ansiedade em perceber o que se estava a passar, com os ténues meios que se podiam usar. O único disco que havia naquela casa era de Cat Stevens e eu tinha que o ouvir muito baixo. Não sei quantas vezes o ouvi, mas foram muitas. 1) Morning has broken like the first morning, blackbird has spoken like the first bird. Praise for them singing, praise for the morning, praise for them springing, fresh from the world. (2) Sweet the rain's new fall sunlit from heaven, like the first dewall on the first grass. Praise for the sweetness of the wet garden, sprung in completeness where his feet pass. (3) Mine is the sunlight ! Mine is the morning born on the one light Eden saw play ! Praise with elation, praise every morning God's recreation of the new day. (Cat Stevens / Eleanor Farjeon) 1.1.04
IMAGENS
dos últimos dias : uma montanha andina de Frank Church, de 1859, uma ponte tirolesa de madeira de Lovis Corinth, o jovem em cima da cama é de Sara Rossberg, de 1985, um ribeiro de Courbet, e um “gobelet d’argent” de Chardin no Ano Novo. É assim, uma poeira de imagens e de coisas, que assenta, pouco a pouco, no branco do ecrã.
BIBLIOFILIA 7
Livros que estou a ler, ensaios para trás e para a frente, mas que podem ser recomendados em absoluto, mesmo antes de chegar ao fim. Joan Didion, Political Fictions, Nova Iorque, Vintage International, 2001 Jornalismo político bem escrito, bem documentado e agressivo. Jornalismo político de revista, encomendado com antecedência, o que permite aos autores acompanhar o seu tema (um político, uma campanha, um escândalo) em tempo real. Veja-se o soberbo “Clinton Agonistes”, que começa assim: “No one who ever passed through an American public high school could have watched William Jefferson Clinton running for Office in 1992 and failed to recognize the familiar predatory sexuality of the provincial adolescent”. Tanta coisa interessante em Portugal que dava livros destes, o caso D. Branca, o Big Brother, a Casa Pia, e não há nada do género… Esther de Lemos, Estudos Portugueses, Porto. Elementos Sudoeste, 2003 Apesar do “Esther”, esta senhora, que só conhecia das publicações da União Nacional, colige aqui uma série de ensaios sobre a literatura portuguesa muito interessantes. São sobre obras que deixamos de ler, como as Vinte Horas de Liteira de Camilo. Mostram a solidez da crítica literária do passado, esquecida nas páginas do Comércio do Porto, do Graal e do Panorama, sem qualquer paralelo no fôlego teórico e no cuidado analítico, com a dos dias de hoje. Louis Menand, The Metaphysical Club. A Story of Ideas in América, Nova Iorque, Farrar, Staruss and Giroux, 2000 Um estudo do enorme impacto da Guerra Civil Americana na história das ideias até à Primeira Guerra Mundial.
MAIS "UTENTES"
"O que me levou a escrever este comentário foi a troca de posts entre os dois [Vital Moreira e JPP] face às noções de utente e consumidor, justamente a propósito da saúde. Talvez discorde de ambos, mas vamos por partes. No plano da utilização das referidas "comissões de utentes" , nomeadamente pelo PCP com o intuito exclusivo de aproveitamento de um canal de batalha partidária, instrumentalizando as ditas comissões, nos casos que conheço à boa maneira do PC que conhecemos. Por razões profissionais (trabalho em planeamento e desenvolvimento local) dei com casos em que as mesmas pessoas me apareceram em reuniões do sector da saúde, do sector dos transportes, etc. sempre como "representantes" da comissão de utentes do respectivo sector ou ainda de "amigos do hospital x". Não posso aqui discordar mais de Vital Moreira na medida em que não sendo "a paternidade" das comissões de utentes do PCP, aquele partido usa-as , as que pode, como terreno partidário e portanto nesse caso não são "os utentes (...) organizados em "grupos de interesse" com força suficiente para contrabalançar o peso dos sindicatos de funcionários e das ordens profissionais", até porque, muitas vezes, aquelas pessoas nem sequer são "utentes", por exemplo, de transportes públicos, mas estão ali como militantes partidários para ocupar, digamos, "tempo de antena". Ora, não é disto que o exercício da cidadania precisa, a meu ver, mas sim da participação activa dos cidadãos enquanto tal e não enquanto militantes funcionários de um partido com uma lógica que nada tem a ver com a lógica da democracia participativa onde os cidadãos, enquanto tal, exercem direitos e deveres cívicos (citizenship - no sentido de relação jurídica entre o cidadão e o Estado) mas ainda, e disso a nossa democracia é ainda mais deficitária, de uma cidadania "em acção" (citizenry). O trabalho na comunidade local (community work), onde teríamos muito a aprender com experiências locais enraízadas em culturas democráticas como as do norte da américa (EUA e Canadá). Lá fora, para usar a expressão de Vital Moreira, não se trata de "comissões de utentes", mas sim de cidadãos que assumem na prática, em pleno, essa condição, nomeadamente ao nível territorial de proximidade aos problemas reais e à vida quotidiana dos mesmos cidadãos, isto é, ao nível das respectivas comunidades locais. No plano dos conceitos de utente e consumidor, no modelo de sociedade e respectiva economia, em que vivemos, é enquanto consumidores que também deveremos exercer a nossa cidadania e não vejo que "venha mal ao mundo" por sermos consumidores, também de serviços públicos, e nessa condição, precisamente, sermos consumidores activos e não meros utentes passivos de um serviço que é visto como obrigação que o Estado tem em prestar aos "utentes de serviços públicos". Numa sociedade em que os cidadãos têm também deveres como contribuintes, entre outros, e aí sim, o Estado tem também deveres face a esses cidadãos, tendo preocupações sociais, nomeadamente, no sentido de conferir poder aos que dele mais afastados estão. Portanto, independentemente de estar ou não de acordo com a forma e o modelo de empresarialização dos hospitais - não é isso que se discute aqui - julgo que a ideia de menorização do nosso papel de consumidor e de valorização do nosso suposto papel de "utente" é errónea. Em primeiro lugar porque o consumidor não é um "simples consumidor", mas é, ou deveria ser cada vez mais, isso sim, um consumidor-cidadão, activo, também, e por maioria de razão, numa economia de mercado, onde o seu papel é crucial ao funcionamento da mesma. Em segundo lugar porque a lógica do consumo inevitavelmente numa sociedade que nele se baseia estendeu-se igualmente aos serviços. Certamente que consumir serviços de saúde, de educação, de cultura, não é equivalente de consumir detergentes, mas também o consumo de obras de arte não é equivalente do consumo de dentífricos, mas nem por isso todos eles deixam de ser práticas de consumo uma vez levadas a efeito no âmbito de uma economia de mercado. E sabemos bem que a produção de serviços de saúde, educação, cultura, etc. se faz, crescentemente, tendo em conta a sua mercadorização, e não vejo que, também por aí, "venha mal ao mundo", assim os critérios de concorrência que a tal obrigam sejam claros e pautados pela optimização da qualidade e excelência face à sua procura no mercado por consumidores cada vez mais informados e exigentes. O que é fundamental é que os direitos e deveres de consumidores e produtores estejam acautelados e que os cidadãos tenham, também enquanto consumidores, crescente poder. Quanto ao "utente" ele parece-me fazer parte de outra era. Justamente uma era em que o cidadão era tratado, no "guichet", como mero utente, sem direitos e apenas com obrigações de reverência face ao Estado. O ideal seria, de facto, caminharmos para uma sociedade de consumidores activos, responsáveis e com poder de exercício activo da sua cidadania. O que precisamos é da expressão organizada dos cidadãos (também como consumidores de serviços públicos e privados) e não de "utentes"..." (Walter Rodrigues) "Sou o Presidente da Direcção da Associação de Utilizadores do IP4 e será bom esclarecer a génese desta associação, e até do seu nome (que é utilizadores e não utentes propositada e precisamente pela ordem de ideias exposta no seu comentário de 2"6.12). O comentário de Rui M. é todo ele injusto pela sua generalização e ligeiro até na identificação da comissão do IC19 que não é de utilizadores mas sim de utentes e isso faz muita diferença - até para se perceber quem é prolongamento e quem não é. A nossa associação constituiu-se regularmente por escritura pública e tem em andamento o processo do seu reconhecimento legal; nas fichas de adesão para sócios recolhemos sugestões e opiniões de todas as cerca de 1000 pessoas que se associaram; a todas elas enviámos convocatórias para a assembleia geral que elegeu os órgãos socias onde explicitámos os objectivos estatutários da associação pelos quais temos regido toda a nossa actividade; todas as folhas de recolha de assinaturas (cerca de 11000) duma petição que entregámos ao PM tinham o texto completo e o fundamento legal da petição; temos as nossas continhas implacavelmente documentadas; a direcção é composta de um militante partidário (eu, efectivamente, que até me vi a contribuir para um programa eleitoral mais por ser da "sociedade civil" - outro termo bonito - que por ser militante, e mesmo quando enquanto militante até tenho algum empenho em produzir documentos e propostas; outra boa questão: não poderiam os partidos abertamente ter actividade nestas causas das associações? não serão elas escapes para o anquilosamento dos partidos?) de resto, na direcção, é mais um informático paraquedista, uma jurista, um eng.º, um piloto de ralis, um benfiquista e a associação de estudantes do Piaget de Macedo de Cav. Houve no nosso caso um sério processo de legitimação e a meia dúzia de pessoas que constitui a nossa direcção é gente de bem (não é que os militantes do PCP não o sejam, claro está...). A democracia custa a praticar, mas consegue-se, e era bom que Rui M. soubesse que há quem tente e não ande aqui pela imagem, nem cede nos princípios. Sendo pertinente a observação de Rui M. quanto à legitimidade, porque de facto já pensei muitas vezes que posso numa entrevista estar a ser apresentado como representante de pessoas que nunca pediram ou quiseram ser representadas por esta associação, mas esta pode ser uma questão da qualidade do jornalismo que se faz mais que da legitimidade de quem é entrevistado; Dispenso-me de elencar o que tem sido a nossa actividade, as nossas campanhas, as nossas propostas, não obstante muitas vezes, por não saberem o que fazemos ou dizemos de facto nos ponham na boca palavras que nunca dissemos. (…) Rui M. não sabe por ex. que nunca fizemos qualquer manifestação, qualquer corte de estrada; que todas as nossas iniciativas visaram sempre um propósito de sensibilização (por pouco eficaz que esta possa ser). O termo utilizadores foi por nós propositadamente usado como fuga, como alternativa ao termo utentes e o termo associação também foi propositadamente usado, e legalizado, como alternativa a esse das comissões, bastante mais fáceis de constituir. O comentário dos telefonemas aos jornalistas é também ele injusto, mas neste caso para os jornalistas, pois pressupõe que os mesmos não têm critério para escolher ou avaliar a credibilidade de quem entrevistam. E no nosso caso até nem é por telefonemas, é por mail. Dizemos o que vamos fazer, se cobrem a iniciativa cobrem, se não cobrem não cobrem. O resultado é o mesmo que se não tivéssemos um milhar de associados, é verdade, mas sabe muito melhor assim, sabe a democracia. E olhe que também já provámos muitas vezes o sabor à demagogia e o que é curioso é que essa é-nos sempre servida por "democratas" dos partidos (todos, até do meu)." (Luís Mota Bastos)
INTERNET PIMBA
Para os que acreditam que as tecnologias provocam revoluções sem mediação social, ou seja, sem ser em conjugação com os factores sociais que as condicionam, pode-se ver um interessante retrato da Internet através das procuras mais comuns no Yahoo em 2003. Presumo que os resultados omitem as procuras com termos ligados ao sexo, (que ainda devem ser mais comuns no Google) embora o Yahoo tenha deixado elementos para se perceber a sua importância através de estatísticas sobre o caso Paris Hilton que nos enche o correio de spam. É, são as literacias a montante e a jusante que explicam tudo, não o mero acesso a novas tecnologias. Não é só a televisão que é pimba.
© José Pacheco Pereira
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