ABRUPTO

31.7.03
 


LUZES DO NORTE


 


PEDIDO DE AJUDA RESPONDIDO, PROBLEMA RESOLVIDO

Muito obrigada a Carlos F., Carlos Campos, Blog Notas, João Miranda, Paulo Carmo, Jiminy Cricket, Smaug, Nuno Mendonça, José Carlos Santos e ao Hipatia pela resposta ao meu pedido de ajuda que me permitiu resolver o problema e abriu caminho a outras melhorias gráficas.

30.7.03
 


UMA QUESTÃO TABU DO JORNALISMO E DA POLÍTICA

Um jornalista que tem fontes altamente colocadas na vida política, que lhe fornecem informações confidenciais que implicam quebra de segredo ou lealdade ou com o governo ou com o partido de que fazem parte, acaba por ter um ascendente sobre essas fontes. Por muito que exista uma troca de favores entre o político que assim fornece informações com intencionalidade (contra os seu adversários políticos, contra quem lhe faz sombra na carreira) e o jornalista que vê o seu jornal aumentar as tiragens pelos “escândalos” que publica e a própria carreira de jornalista subir de cotação , a verdade é que dada a natureza das suas funções e a distinção entre a penalização social dos dois comportamentos, é o jornalista que “manda”.

O que é que acontece quando o jornalista inicia uma carreira política e vai ter que partilhar o mesmo mundo com os políticos que o informavam? Como é que ele pode iludir que sabe, no mesmo gabinete, no mesmo partido, quem informa os jornais? Como é que as “fontes”, que sabem que ele sabe que foram eles que denunciaram X, ou forneceram o documento que incriminou Y, o tratam? Podem ter liberdade para criticar o homem a quem passavam informações? Podem deixar de sentir uma potencial chantagem sobre eles? Mesmo na melhor das hipóteses é uma relação particularmente doentia e ambígua.

 


AGRADECIMENTO E PEDIDO DE AJUDA

Como é que controlo a largura da página do blogue , de modo a que os seus leitores não tenham que estar a deslocar o cursor para ver a parte de uma linha de texto que sai do ecrã?
Isto deve ser do ABC do HTML, mas queria resolver o problema com urgência e não tenho muito tempo para o estudar como devia.
Obrigado antecipado.

Aproveito também esta oportunidade para agradecer a todos os leitores do Abrupto que me têm corrigido os erros de ortografia, as gralhas, e outros lapsos do texto, com uma dedicação e uma gentileza inexcedíveis. Se não fossem eles a minha vergonha pública seria maior do que o que já é.
 


DE NOVO SOBRE O RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO

A nota que publiquei ontem sobre o RMG suscitou muito correio e muitos comentários em vários blogues. Tratava-se de uma nota que fiz a partir de uma realidade que conheço directamente, com um inevitável elemento “impressionista”, mas que não tenho nenhuma razão para pensar que não seja significativa. Apesar de circunscrita a uma parte da composição social da população abrangida, (admito que em Setúbal, por exemplo, haja realidades distintas que tenham que ser descritas doutro modo) , nem por isso deixa de existir e ter peso na avaliação do RMG.

Por isso, mantenho-me firme na afirmação da relevância dos casos que referi. Os exemplos que dei e que conheço bem estão longe de parecer excepcionais. Nem as pessoas, nem a terra, nem o contexto, têm qualquer excepcionalidade para eu poder concluir que o mesmo não aconteça em outras comunidades semelhantes. No fundo, é tudo tão normal, e esse é que é o problema.

Nunca utilizei a palavra “fraude”, porque acho que descrever estes efeitos do RMG está longe de poder ser assim classificado. As pessoas que se comportam como descrevi são condicionadas a fazê-lo não porque queiram enganar o estado, mas por que a lógica do RMG as empurra a actuar assim, lhes “sugere” que actuem assim. Um sistema de subsídios gera como efeito a adaptação criativa dos putativos recipientes à lógica desses subsídios, tentando maximizar o que se recebe e minimizar o esforço. É uma estratégia de adaptação inevitável.

Aqueles que vêem o RMG de um ponto de vista ideológico de “esquerda” é que acham que a esmagadora maioria o usa “correctamente” e só uma pequena minoria desviante é que comete “fraudes”. Ora esta distinção não tem sentido, dado que os comportamentos que descrevi são os comportamentos racionais, induzidos pelo sistema de subsídios, e não uma perversão do RMG. O mal não está nas pessoas, mas nas oportunidades que se lhes dá para se adaptarem a um limiar de apatia, que reproduz eficazmente a mesma exclusão que se pretende combater.

O que se passa, e isso é patente em muitas das críticas que vi sobre o meu texto, é que se fala do RMG a partir das suas boas intenções – dar um “mínimo” a todos de sobrevivência, de dignidade – e não a partir da realidade económica e social que a existência de um “rendimento garantido” gera. A isto soma-se a permanente ocultação da conflitualidade social que o RMG gera “em baixo”, o que também tem razões ideológicas – que haja “pobres” contra os “ricos” , muito bem, que haja “pobres” contra “pobres” não é aceitável.

Nota: estou a preparar uma síntese das opiniões recebidas pelo correio.
 


EARLY MORNING BLOGS 21

Detalhe de um quadro de Stefan Lochner que está na Alte Pinakothek de Munique

Não, a pintura não está aqui por engano. São mesmo os anjos a cantar – é música o papel que têm nas mãos – numa nuvem de madeira qualquer do paraíso ou do topo de uma igreja. A voz dos anjos chega certamente a Deus e, como é música que cantam, só pode ser também para os homens porque a música é uma dádiva.

Não, a pintura não está aqui por engano. Olhando para a lista nocturna das vozes electrónicas que às duas, três, quatro, cinco, seis horas da noite se erguem do silêncio das casas, onde tudo dorme menos um, vozes amáveis ou zangadas, com esperança ou sem esperança, desejei-lhes uma qualquer virtual similitude com este coro, de uma inocência que já não conseguimos ter.
Não havia blogues se houvesse inocência, não é?


29.7.03
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 18

A Ana escreve que “procuramos os objectos em extinção à procura do tempo perdido..“ Seguem-se mais alguns resultados dessa “procura”, enviados pelos leitores do Abrupto:

Uma imagem portuense, o Preto da Casa Africana, lembrado pelo Artur Carvalho:

Lembra-se de descer a Rua Passos Manuel e quase lá no fundo erguer a cabeça para um piscar de olhos ao Preto da Casa Africana? Lembra-se dele, pintado lá no alto das traseiras do prédio onde está instalada a loja? Pois saiba que a próxima vez que lá passar dará pela falta dele. Pintaram a casa e pintaram o Preto.E apagaram assim uma imagem que já fazia parte da história da Baixa. Algum esteta esclarecido deve ter achado, provavelmente com razão, que o edifício precisava de trincha e....zás! foi tudo a eito, Preto incluído.
É mais um sinal da suburbanidade que assalta a Baixa do Porto, vai tudo na varridela da ditadura ZARA e afins. Apaga-se a memória, e uma certa cidade não há-de demorar a torna-se num "objecto" de saudade. Em desuso já ela está há muito
.”

Outro portuense, o Paulo Pereira, lembra “O fiscal dos "troleis" que picava as senhas(aquilo fazia um barulho engraçado), e ia eu, no 9 ou 29 para o marquês e para o bolhão.

Da cidade para o campo, a Isabel do Monologo lembra “sem ser um "objecto", está em extinção por ter perdido a função social que desempenhava: o burro doméstico. Já não vai pertencer à "paisagem rural" do mundo meus filhos. Tenho pena.”

O Miguel Leal envia uma memória dos “testemunhos recolhidos das vozes e dos rostos de Arlindo , Maria e Manuela Rosa , habitantes da Cabanas de Torres -Alenquer.

A planta do milho é um objecto em extinção do ponto de vista do seu aproveitamento integral .Em tempos de penúria no vale da Serra de Montejunto, o fim do ciclo do milho denominava-se o TEMPO DA EIRA .Longe de se resumir à desfolhada ou descamisamento , esta actividade desenrolava-se em registos variados àparte a dimensão do trabalho e subsistência .Nele participavam todos os elementos da comunidade , com funções diferenciadas de acordo com género e escalão etário .
A maçaroca do milho é envolvida por umas folhas que se chamam capelos .Depois da secagem nas eiras , onde eram dispostas em círculos concentricos ou espiralados , as maçarocas eram "descamisadas", nome localmente atribuído ao processo de separar os capelos da maçaroca . Estes tinham várias camadas diferentemente aproveitadas conforme a sua textura . A camada externa , grosseira , servia como ração para os animais.A camada intermédia , mais fina , destinava-se depois de "escarapelada" , a encher colchões de pano onde as pessoas dormiam . Estes colchões tinham uma abertura central unida por três fitas , que era aberta todas as manhãs para compôr e alisar a camada de capelos revoltos por acção dos corpos na noite de descanso. A camada interior , frágil , aproveitava àqueles cujas posses eram insuficientes para o tabaco , servindo como mortalhas depois de desfiadas. O conteúdo da mortalha era resultante do aproveitamento da "barba do milho" que sai do topo das maçarocas maduras.Este expediente dos viciados era imitado como actividade lúdica pelas crianças que colaboravam no "descamisamento ".À barba do milho eram também atribuídas propriedades curativas , pelo que servia para fazer chá "para a bexiga".O milho era então malhado pelos homens no sentido de o separar da camada a que estavam unidos chamada o carolo . A malhagem não era suficiente e as mulheres jovens "escarolavam" , isto é , retiravam manualmente o milho que restava nos carolos . Num registo iniciático e conforme a cor do milho que lhes competia escarolar, assim teriam de beliscar ou beijar um rapaz à escolha do grupo . Ficava então o carolo que era igualmente aproveitado de duas maneiras : ou como combustível para aquecer os fogões ou , numa alquimia fumegante , juntamente com água e vinagre , transformado em pasta de sapateiro , fundamental para a aderência da sola ao cabedal.O pé do milho não era desaproveitado e juntava-se às camadas exteriores dos capelos como feixes para os animais.Aos jovens casadoiros , sedentos de aventura e afirmação cabia a guarda da eira durante a noite. Construiam palhotas com vime e aí permaneciam o tempo que necessário fosse.
São memórias de um tempo em que o oposto do desperdício era sinónimo de engenho , espírito inventivo e convívio solidário
.”

Francisco Delgado lembra a "licença de porte de isqueiro”, de que envia uma reprodução (será colocada no blogue que em Setembro se fará só para os objectos) chamando a atenção para “as regras de utilização, autuação e, sobretudo, delação “. Acrescento eu: quando queria explicar a um estrangeiro como era viver no Portugal de Salazar, a licença de isqueiro era o meu exemplo de espantar.

O nosso médicopara comemorar a recente façanha do Bloco de Esquerda que conseguiu institucionalizar a magia e o esoterismo (tão na moda!)” envia “uma lista de pequenos objectos médicos já extintos ou em vias de extinção”:

"1) três tipos de ventosas de vidro (extintas);
2) uma caixa de alumínio porta agulhas (extinta);
3) uma seringa de vidro (extinta);
4) um termómetro de mercúrio (em vias de extinção) e o respectivo utensílio para repor abaixo de 37º (extinto);
5) uma "garrafa" de soro em vidro de soro fisiológico (substituído por plástico);
6) uma ampola de clorofórmio e o seu invólucro em papelão (em desuso);
7) frascos de vidro para transporte de urina e sangue com rolhas de cortiça (substituído por plástico e tubos de ensaio especiais);
8) caixa de alumínio com uma ligadura engessada (invólucro extinto)”


(Manda também uma foto que acompanhará estes objectos no blogue que em Setembro se fará só para esta série.)


No Blogal há também uma lista suplementar de objectos em extinção.
 


PARA A HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA EM PORTUGAL

Veja-se um excerto do trabalho de J. M. Leal da Silva sobre as fotografias da greve de 1943 nos Estudos sobre Comunismo. O autor, num trabalho dedicado de "detective fotográfico", identifica pela primeira vez com correcção o local onde foi tirada uma raríssima fotografia de um conflito social no Portugal da ditadura. O fotografo que a tirou é desconhecido, mas a fotografia é um retrato único dos tempos da repressão.

 


NA PROVENÇA

 


RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO

O Rendimento Mínimo Garantido (RMG) foi (é, mesmo revisto) uma das maiores pragas sociais que o governo PS deixou e que o governo PSD-PP não alterou como devia e não pôde alterar como queria, dado o modo como funcionam os mecanismos dos “direito adquiridos” para manter o stato quo. O RMG tinha este efeito de não retorno, de deixar um rastro de efeitos que muito dificilmente podiam ser corrigidos pela natureza de facto consumado que estas leis têm.

O RMG é um mecanismo que agrava as desigualdades sociais, favorece a exclusão, consolidando-a, e gera um clima de conflitualidade social, ou seja, tudo ao contrário do que as boas intenções retóricas dos seus autores. Visto “por baixo” , numa pequena aldeia deprimida, sem actividade económica, o RMG traçou um risco de separação entre os pobres, separando os mais “espertos” e que não trabalham e vivem do subsídio, dos que, tão ou mais pobres, procuram ter um emprego e se vêm com muito mais dificuldades e com uma vida mais pesada, por terem optado pela via de não viverem do RMG.

O ódio social, as trocas de insultos, as apreciações pejorativas, a hostilidade entre pessoas que têm a mesma condição e que se dividem entre o grupo do subsídio e o grupo do trabalho (ou à procura do trabalho), é muito nítida, mas não chega aos gabinetes. O primeiro grupo é mais numeroso e organiza a sua vida de modo a maximizar o subsídio, o “rendimento”. Uma estratégia comum é a constituição de famílias que em condições normais teriam como base o casamento, mas que são uniões de facto para que as jovens mães tenham o estatuto de “mães solteiras” e assim possam receber o RMG. É uma estratégia comum, deliberada, construída numa base familiar estável, mulher, “marido”, filhos, apoiada por famílias onde muitas vezes já há outros recebedores do RMG. Grupos familiares inteiros criam-se assim à volta do RMG , com condições sociais que acabam por se tornarem melhores do que as dos que procuram trabalho , mesmo precário. Numa pequena aldeia isto divide muito, mesmo muito.


 


EARLY MORNING BLOGS 20

Dizia-se de Kant que era tão regular no seu passeio Koenisberguiano que os burgueses da cidade acertavam o relógio por ele. Parece que só se atrasou no dia em que recebeu as Confissões (ou o Emílio?) de Rousseau.

O meu relógio na blogosfera é o Almocreve das Petas, regular como um relógio, o verdadeiro “early morning blog”, que chega com a sua carga de livros e outras antigualhas, víveres do espírito, dinamite cerebral, como diziam os anarquistas, alta madrugada quando já raia a bela aurora. Altura para fechar a loja das palavras e ir dormir.


28.7.03
 


LUGARES DA DECADÊNCIA: ALEXANDRIA TROAS (TURQUIA)

Entre Assos e Tróia, fica Alexandria Troas, um desses sítios que nunca se esquecem. Alexandria Troas não existe, existiu.
Alexandria Troas, uma das “Alexandrias”, foi um importante porto de mar, e vem citada na Bíblia cinco vezes. As suas ruínas estão perdidas no meio de um campo, tendo sido apenas muito parcialmente escavadas. Esta parte da Anatólia não tem turistas, que ficam das estâncias à volta de Izmir para baixo, até Antalya. As ruínas estão longe de tudo, menos de umas aldeias de pescadores junto ao mar, bastante mais abaixo.

Paulo esteve aqui, junto com outros apóstolos, e fez milagres. Num deles, numa ironia pouco vulgar nos Actos dos Apóstolos, ressuscitou um rapaz que se chamava “com sorte” (Eutychos) e que caiu de uma casa abaixo. A Bíblia explica porque é que ele caiu:

"7 (…) Paulo, que havia de partir no dia seguinte, falava com eles; e prolongou a prática até à meia-noite.
(…)
9 E, estando um certo jovem, por nome Éutico, assentado numa janela, caiu do terceiro andar, tomado de um sono profundo que lhe sobreveio durante o extenso discurso de Paulo; e foi levantado morto. "

(Actos dos Apóstolos, 20).

Em Alexandria Troas, Paulo teve a visão que o levou da Ásia para a Europa, quando lhe apareceu “um homem da Macedónia” que lhe pediu:

"9 (…) Passa à Macedónia, e ajuda-nos.

10 E, logo depois desta visão, procuramos partir para a Macedónia, concluindo que o Senhor nos chamava para lhes anunciarmos o evangelho."

(Actos dos Apóstolos, 16).

Hoje só se percebe que existiu Alexandria Troas por um arco e meia dúzia de paredes. Quando a visitei só se chegava lá por um caminho de terra batida fora da estrada secundária que bordeja o Mediterrâneo. Como aconteceu a muitos portos antigos, Alexandria de Troas está hoje bem dentro de terra, com o mar ao longe. O que impressiona é ver este arco erguer-se no meio de uma vastidão de erva alta e seca, de urze, das mil e uma flores, arbustos, e árvores que cobrem os campos da “Grécia”, com o cheiro intenso, irreproduzível dos lugares mediterrânicos. Há abelhas e o ruído das abelhas, mais o vento do mar e o calor que faz crepitar o campo. Está lá tudo, parece um estereotipo de um poema de Teócrito.

O trabalho do tempo é feito ali de acumulações visíveis. O porto foi-se afastando do mar, perdendo as suas funções e abandonado. A terra movida pelas chuvas, foi sepultando colunas, casas, muros e deixando apenas ver a parte de cima das construções. Com a terra vieram as plantas, e com a morte das plantas, mais húmus, mais terra. O chão em que passamos hoje é o tecto dos alexandrinos. Sentei-me num dos muros, talvez o lintel de uma casa, e não pude escapar à sensação do “espírito de lugar”, do heimatgeist. . O que está debaixo dos meus pés? Estátuas, moedas, cacos, mortos? É natural que tenha havido pilhagens durante todos estes séculos, mas nem uma multidão gigantesca pode ter pilhado tudo, nestas terras onde a Jónia está sepultada.

Como seria Alexandria Troas à noite? Se houver fantasmas é aqui que estão. O “homem da Macedónia”, que chamou Paulo à Europa, ainda estará lá? Não sei. Não paguei para ver.

 


TARDE

 


EARLY MORNING BLOGS 19

Matérias que não entram nos blogues: pobreza, desemprego, levar os filhos à escola às oito da manhã, cozinhar (sem ser por prazer), trabalhos domésticos, trabalho de um modo geral com excepção de algum trabalho intelectual, doenças, quase todas as formas de escassez. Lugares que não entram: locais de trabalho fora de universidades, escolas, firmas de informática, telecomunicações, e jornais, nove décimos de Portugal e muito mais ainda.

Pelo contrário, os caminhos do Magnólia à FNAC do Chiado, do Lux ao Algarve ou ao Alentejo, estão tão trilhados nos Moleskines que até deixam um sulco como os carros de bois nas pedras antigas.Nesta matéria não há distinções nem políticas, nem ideológicas, nem esquerda , nem direita.

Não é um julgamento de valor, porque também não entram no Abrupto, é uma constatação, chamemos-lhe assim, social. Para que não percamos a nossa (a minha) medida.

 


VER A NOITE

O Marte que está hoje no céu nunca o vimos assim e nunca mais o vamos ver assim, a não ser que se acredite na metempsicose ou na reencarnação. Carpe diem.
 


MARGEM SUL

Dia na Margem Sul, assim mesmo, com maiúsculas. Porque não é a margem sul do Tejo, mas a Margem Sul da história social e política portuguesa, uma combinação sem paralelo do único projecto industrial português do século XX com dimensão europeia, de uma cultura operária que não existe em mais lado nenhum, de uma população que forjou a sua identidade contra o salazarismo tendo sido primeiro anarquista e sindicalista e depois comunista.

No meio de uma vista de Lisboa de tirar a respiração, estão os restos de tudo isto em 300 hectares de terreno, uma vastidão enorme. Está um cemitério de fábricas, linhas-férreas, oleodutos, cais, barcaças, guindastes, tubagens, depósitos, escórias, cinzas, sucata, está um mausoléu (de Alfredo da Silva) que podia estar na RDA ou na Alemanha nazi, está a casa humilde do patrão mesmo no meio das fábricas, estão os restos dos bairros operários, está um quartel da GNR. E depois há os velhos, os homens e, em particular, as mulheres, duros, face cerrada, com muita vida difícil atrás, trabalhadores de profissões quase desaparecidas: corticeiros, caldeireiros, operárias têxteis, ensacadores, serralheiros.

Para perceber o seu talhe, experimentem pensar no que é passar horas e horas numa grande sala a encher sacos de adubo, quando muito com uma máscara rudimentar. Adubo no ar, adubo nas mãos, adubo na boca, adubo no corpo. Ou viver numa terra que tinha uma Rua do Ácido Sulfúrico e onde se respirava uma emulsão que picava nos olhos. Onde se “via” o ar.

Muitos destes homens e mulheres tiveram e têm ideias terríveis e, se alguma vez chegassem ao poder, era daqui que viria a “muralha de aço” e essa “muralha” triturava-nos sem hesitação. Muitos deles encarnavam o pior daquilo que Simone Weil chamava a “arrogância operária”. Mas hoje, perdida a história com H grande, atirados para um anacronismo que lhes deve ser cruel, porque é a derrocada da esperança da sua vida toda, sobra a história que eles próprios fizeram, e não a que desejaram fazer. E essa história é a do seu sofrimento, da sua coragem e tenacidade em dias em que o exercício destas qualidades se pagava muito caro.


27.7.03
 


 


EARLY MORNING BLOGS 18

Os blogues de ciência “organizam-se”, (contrariando o “hiato da complexidade” da formiga de langton, que espero que volte rapidamente ao “enxame”), no Ciência na blogosfera portuguesa por iniciativa do Follow the White Rabbit. A julgar pelos nomes, entre mochos, coelhinhos e formigas, isto está animado nos laboratórios!

Esta noite deverá ser a grande noite marciana. Só que duvido que com os céus portugueses se veja muita coisa. No Em Expansão Vertiginosa estão elementos interessantes para se olhar para Marte com olhos de ver.

Hoje desço à terra do aço, do ácido, do adubo. A não ser nos Estudos, o meu blogue hard, não encontro traços daquela parte de Portugal e dos portugueses, que tão importante foi na nossa história real e mítica, nesta atmosfera electrónica. E , no entanto, parte de todos nós foi mais feita ali do que na Academia das Ciências. É um mundo póstumo e hoje vou visitar os mortos.

26.7.03
 


VER A NOITE

Hoje não há noite para ver. Na cidade não se vê a noite, nem Marte sequer. Só aviões.
 


CRÍTICAS QUE ME LEVAM A PENSAR DUAS VEZES

É uma nova série no Abrupto que regista aquelas críticas que me levam a questionar: “será que é assim, será que ele tem razão?”. Posso até achar que não, mas tenho que pensar duas vezes e, às vezes, acho que sim. Para não poluir as críticas na sua fonte serão sempre reproduzidas sem comentário.

Ver no Mata-Mouros “ A prova na política e no direito (JPP e a Justiça)”

e numa carta de Rui Queirós:

Porque é que antes de começar a ler o seu Comentário ao caso Berlusconi eu já sabia que o senhor o ia defender!? É isto que me mete impressão! Não me leve a mal, mas caso o Sr.Berlusconi fosse de esquerda, será que o seu comentário seria idêntico? Ou seja, porque é que mesmo as pessoas mais inteligentes e que pensam pela sua cabeça, se sentem obrigadas a defender 'os seus', mesmo que sejam pessoas como o Sr.Berlusconi (não falo de casos perdidos como o Dr.Louçã e etc. Falo de pessoas não fanáticas, mas que se entricheiraram num campo, e que ficam inibidas de pensar, ou de se expressar com total liberdade).”

Ainda há mais.

 


EARLY MORNING BLOGS 17

A ameaça de execução escrita nesta parede foi fotografada por mim em Gernika numa viagem de solidariedade que fiz com a luta dos bascos contra o terrorismo. Numa das primeiras notas do Abrupto, escrita num momento politicamente importante dessa luta para os bascos, reproduzi um apelo internacional de intelectuais a acções de solidariedade, que tinha subscrito, convencido que haveria resposta pelo menos neste meio. A blogosfera, que não tinha falta de causas entusiastas em tudo que era página, permaneceu indiferente. Foi, se quiserem, a minha primeira desilusão.



Não era que não houvesse repúdio do terrorismo basco, era que, quando não há bombas, o aspecto político da luta contra o medo e pela liberdade no País Basco interessa pouco os portugueses, a começar pelos órgãos de comunicação social. Vem tudo isto a propósito do artigo de Helena Matos no Público “Nacionalismo Basco: o Medo Aqui Tão Perto” que analisa este mesmo tipo de silêncio e cujas conclusões subscrevo inteiramente:

Habituados como fomos a associar a luta pelas independências à luta pela liberdade, esquecemos que à visão romântica dos nacionalismos do século XIX há que juntar a experiência dos totalitarismos do século XX: estes usaram o nacionalismo e não raramente a Igreja para reforçarem o ódio ao estrangeiro e o desprezo pelas instituições democráticas. É esta última face do nacionalismo que, dia a dia, se impõe no País Basco. É essa face que viram Savater, Gotzone Mora e López de Lacalle. É essa face que às vezes, em Portugal, fazemos de conta que não existe. Talvez porque seja demasiado perto.”

*

Leio os Estudos sobre a Ordem dos Pregadores, um blogue discretíssimo, sobre “pregadores” , frades, freiras, ordens religiosas. É um mundo bem longe do nosso olhar e que conheci na minha infância e adolescência por causa de uma minha tia-avó que era freira Doroteia, “madre Pacheco”, e que era uma força da natureza. Começara a sua vida religiosa como enfermeira na I Guerra Mundial na frente belga, e depois, como tinha jeito para o desenho, ensinava nos colégios das Doroteias e pintava “santinhos”. Dela resta a memória e os “santinhos”, delicados e ingénuos, com tons de ouro nas vestes como nos quadros de Fra Angélico.
Milhares e milhares de homens viveram assim, numa forma tão estranha para a nossa contemporaneidade que parecem não ter biografia. Fizeram-se frades e freiras e desapareceram do “século”. O que se retrata aqui é que eles têm biografia, não são apenas “enxame”.

A segunda observação, lendo a SERIES MAGISTRORUM ORDINIS PRAEDICATORUM, é a confirmação pela longa lista de nomes, do século XIII aos dias de hoje, franceses, italianos, irlandeses, espanhóis, de como qualquer história da Europa sem uma referência ao cristianismo como elemento formador da identidade europeia, não tem qualquer sentido.


25.7.03
 


TRATADO DOS TELEMÓVEIS – algum correio

Paulo Alves sugere que se substitua devices por "dispositivos".

Mário Chainho fornece elementos suplementares e é mais prudente quanto a algumas previsões:

"As evoluções que preconizou para os telemóveis (prefiro chamar-lhes de terminais móveis) são mais do domínio da ficção científica que do razoavelmente expectável nas próximas décadas. O actual sistema utilizado em toda Europa e um pouco por todo o mundo (GSM) é das obras mais complexas feitas pelo homem, só possível devido a avanços espontâneos e provocados em vários domínios, não sou na tecnologia mas também ao nível da investigação científica feita em empresas e universidades de todo o mundo. No entanto, tudo parece ainda muito tosco. E tudo isto porque a tarefa de colocar uma rede de comunicações móveis a funcionar nos moldes actuais não é nada fácil, parecendo mesmo uma tarefa impossível de realizar. Ao contrário dos telefones fixos, em que tudo é estável e basta ligar um fio de um lado ao outro (não é bem assim porque a rede central pode ser muito complexa), nas comunicações móveis o suporte é o ar e tudo atrapalha: O nível de sinal pode cair de um instante para o outro cerca de 100 000 vezes, mas essa é apenas uma das milhares de dificuldades encontradas, e todas foram sendo resolvidas. As primeiras normas sobre o sistema GSM, há mais de 10 anos, tinham mais de 5000 páginas, e apenas faziam referência aos interfaces entre os vários dispositivos da rede e suas funções. P.e., nenhuma das normas referia como se fazia um telemóvel mas apenas as suas funcionalidade e formas de interacção com a rede - e a partir daí cada fabricante poderia fazer os terminais como queria. Parece-me que os devices integrados no corpo estão tão longe dos actuais terminais como um F-16 de um papagaio de papel - mas são bem conhecidas previsões sobre o futuro feitas por grandes figuras que saíram completamente erradas, e de grande figura eu nada tenho.

Talvez os avanços na tecnologia atinjam uma saturação mais rápida do que se julga. Fico por vezes com essa ideia porque para haver progressos lineares na tecnologia a quantidade de problemas a resolver aumenta geometricamente - assim me parece.

Em relação à "Sociologia do Telemóvel", trabalhando numa empresa de comunicações móveis tenho o privilégio de ver algumas das melhores e piores utilizações do aparelho. Entre as melhores acho que se podem nomear: reforçar dinâmicas de trabalho, criando novas oportunidades de negócio nas mais diversas áreas; Aproximar o país, já que uma ligação Açores - Lisboa é semelhante e custa o mesmo que uma ligação Lisboa - Lisboa.
As desvantagens são também bem conhecidas. Muitas já aqui foram apontadas. Existem mesmo casos doentios de utilização dos telemóveis e são inegáveis os condicionamentos sociais que eles podem provocar, melhor, o telemóvel é mais uma das variáveis na luta pelo estatuto e pela felicidade - por si nada faz. O que prende as pessoas são os seus desejos e ansiedades e não um qualquer aparelho exterior a si - só quem se deixa dominar fica dominado. "


Smaug comenta no Incongruências as notas sobre telemóveis:

O nome que sempre dei aos telemóveis, e aos seus antecessores bips/telebips [estes já podem ser acrescentados à lista de objectos em extinção], foi “A Trela”. Estes malogrados objectos funcionam como uma trela sem fio, mas que se pode sempre, ou quase sempre, puxar.

“Onde estás?!” – tornou-se pergunta inicial que quase todas as conversas telefónicas, só depois se pergunta “Como estás?” (se se perguntar...). Uma coisa muito útil é a personalização dos toques do telemóvel dependendo de quem nos está a ligar, o meu só toca para meia dúzia de números, para o resto faz um discreto “bip” e deixa-se ficar caladinho.

Faço uma pequena correcção ao texto de JPP, na parte do “2. Diálogos de um futuro muito imediato – cedências de liberdade”. As redes de telemóveis, por motivos intrínsecos ao seu funcionamento técnico, sabem sempre a localização dos aparelhos com uma margem de erro relativamente pequena, a Optimus e a Vodafone comercializam serviços que fazem uso dessa capacidade.



 


UMA CIDADE QUE SE CHAMA “INVICTA”

... não pode ser igual às outras. E não é . Tem uma força interior enorme, escondida, tantas vezes desbaratada em querelas ridículas quando à sua frente tem os que fazem do Porto província.

O que há de melhor no Porto é a liberdade, uma liberdade que não veio de comboio de Paris, uma liberdade que não era a dos carbonários, mas a profunda liberdade dos burgueses , a liberdade do trabalho, a liberdade do comércio, a liberdade das associações mútuas dos operários, a liberdade mais copiada dos ingleses do que dos franceses. É uma cidade onde podiam ter vivido os Buddenbrook e onde Thomas Mann poderia ter sido cônsul. Mann gostaria do Porto.

A gente que lá nasceu sabe onde está essa liberdade sólida, presa ao granito, na Rua Mouzinho da Silveira, na rua das Flores, no Largo dos Poveiros, em S. Lázaro, nas fiadas de casas de granito e azulejo vidrado da rua D. João IV, na rua da Alegria, em Fernandes Tomás, em Passos Manuel.

E depois naquelas ruas que já não tem a função que tinham desde a rica S. Catarina, até à humilde e desconhecida Travessa da Póvoa, nas ruas operárias onde se morria de cólera e de tifo nas ilhas. É o Porto que foi a terra dos operários e não Lisboa. Lisboa tinha Alcântara, mas o Porto tinha as grandes fábricas , dos tabacos no Campo 24 de Agosto, de Salgueiros , no Graham, na Boavista , no Freixo, em Lordelo, nas conservas de Matosinhos.

Já disse isto vezes sem conta, inclusive em comícios, quando se grita para que não nos ouçam o sentido, mas não consigo começar a falar do Porto sem estas primeiras palavras.

*

O Porto fez-me gostar de uma qualidade sem grandes elogios nos dias de hoje e também sem grande reconhecimento social, por muita retórica que à sua volta se ouça, a integridade. Muita da vida pública portuguesa não seria o que é, se houvesse um pouco mais de reconhecimento social da integridade. Se os íntegros não parecessem personalidades obstinadas, com mau feitio, “pouco maleáveis”, como agora se diz.

O Porto fez-me gostar das pessoas simples, íntegras, ainda não tocadas pela usura das palavras, ainda não ecléticas, ainda não dominadas pelo amor-próprio destrutivo, ainda não obcecadas pelas suas virtudes e pela sua facilidade, ainda não acumulando superfícies como quem acha que a vida é um longo espelho, ainda não distraídas, ainda não impacientes, ainda querendo mais alguma coisa com uma tenacidade de absoluta dedicação. Como o Porto é feito de granito em vez de calcário, selecciona a dureza, a persistência, o trabalho, as boas contas, as “contas à moda do Porto”, e já revelou na sua história que pega em armas quando é preciso.

Nunca mostrei a minha cidade, mostrar de mostrar, a quem eu não ache íntegro. Sei de quem nunca lá irá pelas minhas mãos.

 


O PORTO

É a minha maior injustiça no Abrupto. Ainda não ter falado da minha cidade, da qual me sinto sempre em estado de heimatlos, esteja onde estiver, mesmo nos sítios onde estou totalmente bem, entre as torres ou na terra onde “a l'istà piove a contrà.”


 


EARLY MORNING BLOGS 16

And Now For Something Completely Different”, (grita o Hipatia, pela voz dos Monthy Python, metendo um susto aos desprevenidos) …

… a blogosfera está a começar a assentar depois das turbulências dos últimos dois meses. Está muito diferente, muito melhor, muito mais plural, com muitas vozes falando de coisas distintas, com blogues novos com temas novos. Está menos literária, sem deixar de estar literária, mais problemática, menos afirmativa e mais curiosa e, até , mais engraçada porque menos engraçadinha.

Blogues como a formiga de langton , o Sócio[B]logue, Companhia de Moçambique , o projecto do Metablogue, o Retórica e Persuasão, Reflexos de Azul Eléctrico, Avatares de Desejo, Médico Explica Medicina a Intelectuais e vários outros, fizeram a diferença. Para sermos justos vieram na sequência dos bons blogue políticos à volta da dupla Coluna Infame – Blog de Esquerda e dos excelentes blogues sobre jornalismo que foram pioneiros como o Ponto Media e o Jornalismo e Comunicação

Uma das melhores descrições da blogosfera está numa citação da Utopia Art Biennial, LX, 2001, feita pela formiga de langton , sobre o "enxame"

"Take any swarm. Take any collective natural system, where many parts are present. Study it. Identify which rules are prominent at local neighbours. The simpler the better. Understand if they are similar in any other natural system. You will probably be astonished. Now, collect them together in any computer. Mix them. Play it and let them evolve by their own. Soon, you will perceive organization. Any type of organization. What you will see is nothing more than the decay of entropy. But, don't stop it and feed the system with diversity. Re-inject knowledge if you think they will take profit of it. Memory among the whole is emerging. Even better than that: parts of the system at different locations can perceive the whole. Now, from time to time, allow the system to become slightly chaotic. Evaporation is one way. Oh, yes! Solutions found so far become more robust and flexible. Now, take this whole as a unit. And take any other whole. And another one. Take a lot of wholes and collect them in a computer, or in any other type of information structure. Put them in another layer of complexity. Mix them. Play it and let them evolve..., are you pleased?"

 


JÁ DO OUTRO LADO

 


META-LIVRISMO / OBJECTOS EM EXTINÇÃO 17

Para os amadores do meta-livrismo, livros sobre livros, parente próximo do meta-bloguismo, a Bloomsbury publicou Lost Classics. Writers on Books Loved and Lost, editado por Michael Ondaatje / Michael Redhill / Esta Splading / Linda Spalding. É a reedição, acrescentada de novos textos, de um número especial da revista Brick sobre os livros que gostamos muito de ler numa altura da vida e depois desapareceram. Desapareceram da nossa casa, das livrarias , estão esgotados , ninguém se lembra deles, foram para o gigantesco limbo dos livros. E , no entanto, o fantasma continua connosco:

A book that we love haunts us forever, it will haunt us, even when we can no longer find it on the shelf or beside the bed where we must have left it.".

A razão porque esta nota é dupla, como as estradas que se perdem nos mapas uma na outra, sendo uma, mas duas, é porque, num certo sentido, estamos a falar de “objectos em extinção”, livros perdidos de que sobram “memories of reading

The dialogue with the mind of an absent other, that conversation both silent and shared, that moment when a reader seems to have found the perfect mate”.

Logo a abrir, Margaret Atwood fala do Doctor Glas de Soderberg e depois há Lafcadio Hearn, e Kipling e Bulgakov, em títulos quase desconhecidos e muitos outros de que nunca tinha ouvido falar, “perfect mates".
 


VER A NOITE, de novo

Noite de mistura, nem negra, nem azul. Não se vê nada de jeito, mas é a primeira em que ouço os grilos. Talvez só um, esforçado, enchendo a noite de sons. O barulho de tão pequeno bicho é enorme, é preciso ouvi-lo para perceber como enche o espaço, a noite toda. Hoje, em vez das estrelas, olho para a terra.

“Não faz mal nenhum um pouco de gravitas”, diz o grilo.


24.7.03
 


VER A NOITE

A primeira “estrela” da noite foi um Airbus.

Volto mais tarde.
 


SCRITTI VENETI

Ele escreveu, a esta mesma precisa hora, diante do palladino Redentore: “Foge de mim. Eu sou insalubre como a água destes canais miasmáticos. Já corro para outro lado, contra natura, terra dentro, levando a peste. Cuidado com o cão, cuidado com os cães. Está uma guerra em curso.” (Phobos)


 


A MÃO QUE PINTA

Algumas leitoras do Abrupto (e digo leitoras porque foram só leitoras) tem perguntado sobre a origem dos fragmentos dos quadros , quase só horizontes, aqui esporadicamente colocados. A origem é muito diversa, a maioria são de pintores do Norte da Europa, paisagistas do século XIX, pintores relativamente pouco conhecidos e de colecções pouco acessíveis. Por exemplo J. C. Dahl ( a maioria), William Bell Scott, etc.
As razões porque não identifiquei até agora a sua autoria, são em primeiro lugar “narrativas”, não queria acrescentar qualquer referência que “distraísse” quem os vê para um outro mundo que não fosse a sua presença e o que eles “dizem”. O seu uso não é o de uma citação, mas o de um símbolo. Na verdade, não são os quadros que cá estão, porque eles não são assim, mas o meu olhar sobre eles que muitas vezes fica assim perdido num pequeníssimo fragmento ignorado num canto da pintura.

Talvez, quando o tempo os tornar “narrativamente” inúteis, eu coloque um nome junto do horizonte.

 


CADA VEZ MAIS LONGE

 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 16

Pedro Robalo no Complot fala da memória das casas :

"Na casa de praia dos meus avós, onde me encontro, foram feitas, recentemente, algumas obras. São muitas as modificações que umas obras imprimem numa casa. Escolhas estéticas aparte, existem pormenores técnicos que uma intervenção não pode deixar intactos.


Um dos que mais se faz notar é a colocação dos interruptores eléctricos. Se se fizerem alterações à instalação eléctrica principal, é muito provável que os interruptores mudem de sítio, sendo colocados a uma altura de menos de um metro do chão. Nas casas mais antigas, que é o caso, os arcaicos e barulhentos exemplares eram colocados muito mais acima: um metro e meio pelo menos. Desconheço as razões de ordem técnica que justifiquem um e outro caso.


O curioso nesta mudança é a sua interferência nos actos mais banais - o que nos faz reflectir acerca da profundas raízes dos hábitos adquiridos. Trocando por miúdos: agora, de cada vez que entro numa divisão escura, levo pelo menos 20 segundos tacteando a parede em busca do interruptor. Só depois, chamando a razão a este acto irreflectido, realizo que ele se encontra noutro local. E, de cada vez que isto acontece, a casa que era e já não é aflora-se à memória, despoletando um misto de nostalgia e desconforto. Por muito boas que sejam as mudanças, há sempre nuances de saudade que só o tempo consegue apagar. Por mais insignificantes que sejam."



Eduarda Maria da “ bata da escola. Além dos uniformes nos colégios (que ainda se mantém), havia a bata, nas escolas públicas. Embora há 30 anos pensasse o contrário, hoje em dia não consigo encontrar uma única desvantagem para o uso da bata. (Acho que já chegámos todos à conclusão que a liberdade não passa nada por aí).

Miguel Marujo do Cibertertulia lembra “os sinos das igrejas - ou as suas badaladas! - hoje em dia substituídos por ensurdecedores altifalantes a debitarem versões duvidosas do "Avé" de Fátima!”

Miguel Leal dos “eléctricos”:

Os "Eléctricos " 25 e 26 , referência fundamental da minha infância . O bilhete , pequeno , frágil e cor-de-rosa - retirado de uma resma de bilhetes da mesma cor- obliterado por pressão manual com um instrumento também ele extinto , custava 13 tostões. Os eléctricos 25 e 26 , dizia , faziam o mesmo percurso mas em sentidos diferentes. O percurso era denominado "circulação" e a carreira era indicada à frente e à rectaguarda dos eléctricos com a designação de "Estrela - Gomes Freire " , através de um mostrador envidraçado que era preenchido por uma espécie de papiro que se desenrolava e que ia indicando os diversos destinos que se praticavam na Carris desse tempo.
A minha avó e eu , "apanhávamos " o Eléctrico na segunda paragem da Rua Ferreira Borges ", em Campo de Ourique .Seguíamos então na direcção da baixa pombalina - atravessada generosamente em toda a sua extensão - através da "panificação " , Amoreiras , Rato e Conde Redondo , onde era feita por vezes a mudança de guarda-freio. Avançávamos, junto ao rio, torneando o Cais do Sodré em direcção ao bairro chique da Lapa , com início da subida em Santos. A rua Buenos Aires antecedia a descida para a "Estrela " que por sua vez antecedia a subida para a Rua Ferreira Borges onde nos apeávamos na mesmíssima segunda paragem.
Uma Lisboa abrangente , por 13 tostões , em 45 minutos e com partida e chegada no mesmo local.”


Tito no Entre Pedras, Palavras colocou a seguinte nota:

"O pente religiosamente guadado no bolso de trás das calças".
Os homens já não guardam, junto das cautelas, o pente. Já não fazem aquele gesto firme de colocar em ordem o cabelo, acompanhado pela suavidade da mão, que suada conferia aquele estrutura una e circunspecta.
Os homens já não param à porta das repartições públicas, dos consultórios, dos cafés, a olhar para um vidro e a desenhar a regra e esquadro a risca ao lado.

O pente, naquele plástico matizado de castanho, morreu.
Eu próprio já não me penteio vai para uma vintena de anos. A última vez que penteei foi no dia da comunhão solene. Hoje junto à Estação de S. Bento já não se vendem pentes, hoje à porta da "Adega do olho" já ninguém se penteia, amanhã entre uma e outra sande de presunto, no "Louro", ninguém tirará o seu pente e será mais homem. Hoje quando saio à noite e vejo os rapazinhos que habitam o estado novo, com a melena cuidadosamente despenteada à frente dos olhos, juro que rezo para que entre um qualquer paquistanês e que em vez de rosas traga na mão um bouquet de pentes para guardar no bolso de trás das calças
."


 


LIMITES (Actualizado)

Ontem referi a fusão entre os devices cada vez mais bio e o nosso corpo, acentuando a “hierarquia e fragilidades” dos sentidos. Encontrei em A Pedra e a Espada um exemplo dessas limitações:

O compositor Eric Satie tem uma obra para piano que demora 24h a ser executada na totalidade.
Isto implica que sejam necessários vários pianistas que se vão revezando, por forma a que a peça possa começar e terminar sem interrupções.
Conta-se que numa das raras execuções dessa peça em Nova Iorque, quando esta terminou um dos elementos da audiência se colocou de pé batendo palmas frenéticamente e gritando: "Bravo! Bis ! BIS!".


Uma música, Vexations, não pode ser tocada senão por vários pianistas, a não ser que alguém queira entrar para o Guiness. Seria difícil, porque uma das coisas que Cage verificou quando se interessou pela peça, é que ela é também muito difícil de memorizar, mesmo quando fragmentada em partes a serem tocadas por diferentes pianistas. Satie revelou limites.

*

José Carlos Santos acrescenta algumas precisões sobre Vexations:

"Da primeira vez que esta obra foi interpretada, no Pocket Theatre de Nova Yorque, foram precisas apenas 18 horas e não 24. Um dos doze pianistas que participaram na estreia foi John Cage, que tinha tido conhecimento daquela obra em 1949 através de Henri Sauguet, amigo de Satie nos últimos anos da vida deste. Mais importante do que isto é o facto de as Vexations consistirem numa sequência de apenas 180 notas tocada 840 vezes (na estreia, Cage tocou-a 75 vezes)."

 


VER A NOITE

Noite sem brilho, baça. Nuvens, humidade. Vê-se Marte, e meia dúzia de estrelas, soltas das constelações pelos fios das nuvens.

Lá longe, por cima das camadas inferiores da atmosfera, muito acima de nós, os mesmos astros caminham perfeitos nas mil cores em que não os vemos. De novo me faz falta o par invernal de Orion , Alpha e Beta Orionis, Betelgeuse vermelha e Rigel azul.

Betelgeuse , a "yad al jauza," , a mão da Mulher, a gigantesca estrela vermelha em que cabemos todos.

 


ABRAÇO

Um grande abraço mais que público para o Carlos Andrade que é um homem bom, primeiro, e um bom jornalista, depois.

23.7.03
 


NÚMEROS

O Abrupto ultrapassou há uma semana as 100000 “pageviews” pelo seu contador mais antigo, o do Bstats. Ultrapassou hoje as mesmas 100000 pelo contador do Sitemeter, que se pode consultar abaixo. No entanto, ainda não o fez pelo contador mais recente, o do Bravenet que vai na casa dos 90000. Esperarei pelos 100000 neste último que é aquele que é mais visível oara quem lê a página. Seria um pouco estranho estar a festejar – sim festejar, porque na concepção deste blogue é gratificante para o seu autor que seja lido – um número que não é aquele que aparece diante dos olhos de quem lê. Nessa altura falarei um pouco mais da solitária orientação editorial deste blogue.

Gostaria que, quem tivesse mais experiência destas coisas, me ajudasse a escolher o melhor contador, para, terminado este período experimental, eliminar os outros.

 


TRATADO DOS TELEMÓVEIS – a “biologização dos devices” e notas dispersas (Actualizado)

O efeito dos telemóveis, que tenderão a perder este nome com o cada vez maior afastamento em relação quer aos telefones, quer aos nossos conceitos de mobilidade, será cada vez mais poderoso quanto o device se incrustar no nosso corpo. Passará da nossa mão, onde existe ainda como objecto autónomo, para a nossa roupa e daí para a nossa pele. Colar-se-á ao corpo, como a televisão se colará às paredes da nossa casa ou aos nossos olhos.

Esta evolução, a que tenho chamado a “biologização dos devices”, potenciará um novo mundo de relações humanas e sociais. O provável é que, quanto mais os aparelhos se aproximarem das fontes dos nossos sentidos, mais se moldarão à sua hierarquia e às suas fragilidades. Ficaremos cada vez mais presos à visão, o nosso mais enganador sentido, e à janela sobre o mundo que ele nos dá. Cada vez mais quem controlar o que vemos, controla o que somos.

Haverá um esplendor de imagens pobres – jogos, pornografia, superfícies – no lugar da vida vivida, com o crescimento de uma virtualidade que funciona como ersatz dos prazeres reais caros, e o pensamento recuará empurrado pelo automatismo dos gestos programados (permitidos). O tempo e o espaço mudarão significativamente a uma maior velocidade do que aquela em que já estão a mudar e que já é muita.

As imagens sem símbolos serão o “ópio do povo”. Não excluo que, para cada vez mais pessoas, a felicidade aumente porque a felicidade é a impressão de estar feliz. À medida que a diferença entre a virtualidade e a realidade seja cada vez menor, e dependa de literacias hard e de posses (posse) no mundo hard, os pobres terão eficazes técnicas de felicidade virtual à sua disposição.

Este texto é experimental, explora apenas alguns caminhos, pela via do exagero como método.

*

Uma nota: um pouco por todo o lado nos textos dos blogues o acto de ir para férias está directamente associado ao abandono no não-férias dos mecanismos de comunicação - televisão, telefones, jornais.
Interessante esta percepção de um afastamento do mundo pela recusa dos seus canais de comunicação como sendo "férias". Como se o trabalho fosse hoje apenas receber, estar imerso em comunicações, informações.

*

A Ana escreve :

Não concordo que o telemóvel ponha em causa o direito de ignorar um telefonema. Esse é precisamente um dos direitos que apenas têm as pessoas com telefone. O gozo bestial/ às vezes o sofrimento de o ignorar.
Por isso, sugiro a eliminação deste direito no projecto de Tratado dos Telemóveis. Ou então a sua inclusão num artigo autónomo com a epígrafe Boa Utilização do Telemóvel - Liberdades.
Podíamos fazer uma Convenção Preparatória do Tratado dos Telemóveis
.”

JPT escreve:

"há três meses que desliguei de vez o telemóvel, perdi direito a numero até. Todos me olham algo estranhos como se alguma coisa meio-grave me tivesse acontecido. Ou entao reforçando a ideia (talvez ja algo formada) de que tenho a mania que sou um bocado diferente, "a modos que quer parecer intelectual" ou quejando."

 


LONGE

 


TRATADO DOS TELEMÓVEIS – primeiros fragmentos

Nota prévia - Os telemóveis são a guarda avançada (ou a revelação) de toda uma série de mudanças sociais em curso associadas a novas tecnologias. Como todas as mudanças elas não emanam directamente das tecnologias mas sim das suas relações com o modo como socialmente são moldadas pelo mundo “exterior”. Não é haver telemóveis, é o uso que as pessoas dão aos telemóveis. O que se está assistir é só o princípio.

1. Carta dos direitos que o telemóvel ameaça (carta dos estilos de vida ameaçados) :

O direito de não ter telemóvel e não passar por mentiroso quando se diz que não tem.

O direito de não ter que andar com o telemóvel 24 horas por dia.

O direito de não ter o telemóvel sempre ligado.

O direito de não ter que fazer dezenas de telefonemas inúteis apenas porque se criou o hábito de falar de cinco em cinco minutos.

O direito de ignorar um telefonema.

O direito de não responder a um telefonema. Telemóveis e atendedores de chamadas tornaram alguém sempre presente, e obrigatoriamente informado de que outrem telefonou pelo que é socialmente inaceitável que não responda.

Deixou de se poder dizer – “desliguei os telefones” - porque o atendedor de chamadas regista tudo como se o telefone estivesse ligado. “Não podes dizer que não sabias, deixei-te mensagem. Porque é que não respondes?”


2. Diálogos de um futuro muito imediato – cedências de liberdade

“- O meu presente de aniversário é este telemóvel moderno que tem GPS e pode-se saber onde uma pessoa está a qualquer momento.

- Pode-se saber?

- Pode

- Não sei se quero…

- Tens medo que eu saiba onde estás?

- Não, não tenho medo…Dá lá o telemóvel.


Outro:

“ - Onde estás?

- Estou aqui.

- Aqui aonde? Liga o vídeo do telemóvel.

- Para quê? A chamada vai ficar cara…

- Para eu ver onde tu estás.”


3. Monólogos do presente – matar alguém no telemóvel

“Ele tinha quatrocentos e vinte e oito mensagens gravadas. Recados, gritos, murmúrios, desejos, fúrias, calmas. Resolveu apaga-las a todas e, como era homem de memórias, o acto era importante. Ao apagar matava alguém. Carregou no botão porque há actos que nem o direito à memória têm. Pouco a pouco, começava a memória a encher-se outra vez. De pessoas vivas.”

Outro:

“Ela dizia – o telemóvel é minha liberdade.

Enganas-te. É a tua servidão.”


 


EARLY MORNING BLOGS 15

Tanto azedume à solta por aí. Olhem que são só blogues, não são buldogues.

A Conversa da teta regista um aspecto interessante dos blogues: vivem sem subsídios e não pagam impostos.

Não há assim tantas actividades em Portugal que se possam gabar de viver sem subsídios. Mas sendo o país como é, e as artes e as “culturas” como são, lá virá o dia em que alguém peça um subsídio para fazer um blogue, “cultural” obviamente, e depois virá outro e outro. E virá um dia em que um governante “inovador” alargará as bolsas para escritores a “novas formas de escritas”, ou seja aos blogues. E depois começará o ciclo que é bem conhecido na “cultura”: fazer um blogue significa o direito natural a ter subsídio, e os blogues grátis vão sendo cada vez menos. E haverá declarações zangadas que este blogue não pode continuar porque não sabe se vai receber o subsídio, e haverá júris para julgar as propostas dos subsídios e manifestações e abaixo-assinados e declarações parlamentares sobre a mentalidade contabilística do governo da altura que corta o dinheiro para os blogues. Assim por assim já houve um tempo que a ideia de subsidiar o teatro parecia bizarra, já houve um tempo em que a maioria do teatro não era subsidiado. Há muito, muito tempo.

No Monologo a razão porque o MyLifeBits vai ser um sucesso : "queria ter-me fotografado todos os dias da minha vida. só assim tinha a certeza que vivi cada um deles".

 


VER A NOITE

On the road . Um planalto elevado, horizonte sem limites, nenhuma luz, e hoje brilha, como nunca nos últimos dias, o campo das estrelas. Meia esfera celeste move-se, como sempre, com as grandes constelações do Norte visíveis. Ainda não é uma noite perfeita, a Ursa grande, virada para o lado do mar, está um pouco apagada pelas nuvens. Falta-lhe uma estrela.


22.7.03
 


TRIVIA

Agora quando se quer um jornal em linha, Público ou Diário de Notícias, o computador toca como o mais odiado dos telemóveis para fazer um reclame de uma coisa chamada sms. Deus sabe, como diria o homem das feiras e mercados, como deles fujo.
Fazer um tratado sobre os efeitos sociais da omnipresença dos telemóveis e seu toque que manda, ordena, lembra sem perdão.

 


CONVERSA

Numa conversa com o senhor C.: “O meu avô morreu uma semana depois de minha mãe. Abismou com a morte dela”.

“Abismou”, caiu num abismo, caiu num abismo com ela, por causa dela. “Abismo” é uma daquelas palavras em que não se repara, até um dia. É uma palavra com medo dentro.

 


SUDOESTE


Já me referi aqui a uma série de edições da Sudoeste que me tinham surpreendido pela qualidade. Acrescento duas que ainda mais reforçam essa verificação. E que duas! Uma é uma tradução de Sete Odes de Píndaro, de Maria Helena Rocha Pereira; outra, uma edição da Experiência de Ler de C.S. Lewis.

Nos poemas de Píndaro cada linha é imensa. Escritos para heróis que só estão longe de Michael Schumacher, pelo que faziam fora da arena olímpica, não pelo que faziam dentro da pista das corridas, como este Hierão de Siracusa , vencedor da corrida de cavalos:

Um grande risco não arrasta
Um homem cobarde. Para quem tem de morrer,
Porque há-de consumir em vão, sentado à sombra,
Uma velhice apagada,
Sem provar quanto há de belo?

 


VER A NOITE

Está escuro, muito escuro, mas uma noite péssima para ver estrelas. Deve haver humidade, nuvens no alto.
Este escuro já não se vê nas cidades em nenhuma altura, a não ser quando falta a luz.
Marte voltou para trás, nesse movimento dos planetas que mostra que não fazem parte da esfera superior e são matéria perecível. Mesmo Marte.

21.7.03
 


PERTO


20.7.03
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 15

1) A campainha na sala de jantar, no meio do chão, para chamar a criada. A primeira vez que os meus pais mudaram de casa, na nova casa lá estava no meio, brilhante de metal, a campainha. Embora houvesse criada, a campainha nunca foi utilizada.

2) RIP do blog-notas sugere o tira-linhas:

Esse pequeno artefacto, indispensável á elaboração de desenho geométrico, podia ser montado num suporte vertical ou adaptado ao compasso, vivia em alegre concubinato com o tubo de tinta-da- china e constituía, quando manejado por mãos inábeis, o maior dos pesadelos para a alva pureza da folha de papel.

Foi substituído pela Rotring (marca que simbolizou os diversos sucedâneos) e, o epitáfio que assinala a sua passagem à galeria da história, recorda-nos que

Aqui jaz o tira-linhas,
instrumento de terror,
que borrava as mãozinhas
ao aluno e ao s’tor!

Mas o seu maior valor,
(pese embora o seu aspecto),
era p’ro desenhador
que elaborava o projecto!

Viveu em paz e alegria,
com a tinta, que da china,
tinha o nome, e se vendia,
em tubos de forma fina!

Deixou-nos como legado,
esta triste nostalgia,
que recordo, com agrado!
Mas num blog??? Que ironia!!”


3) Ricardo Ruano Pinto (RRP) do Hipatia lembra a "Mariconera"

essa malinha masculina, com pega ou pegas, de couro (embora tenha visto algumas em tecido), que se transportava debaixo do braço, que a par de outros equivocos da moda seventies, ainda hoje deixa muitos envergonhados e outros comprometidos.”

4) José Carlos Santos lembra “os documentários que passavam nos cinemas antes do início dos filmes. Creio que desapareceram ainda antes do 25 de Abril, vítimas da televisão.”

Também lembro, com alguma nostalgia, os momentos em que a sessão do cinema tinha documentários, "actualidades", desenhos animados, filmes anúncios, reclames da Belarte, dois intervalos e o filme. A voz brasileira dos documentários sobre a natureza – “voando sobre as altas montanhas dos Andes , o condor passa” …- ainda a ouço e as montanhas e o condor cabiam na enorme tela.


 


EARLY MORNING BLOGS 14


À procura de textos pré-blogue ando pelos diários de Tolstoy e pelo diário de Kafka. Na edição francesa de Pierre Klossovski, de Kafka, que agrupa debaixo do título “diário íntimo”, textos de diário e grupos de aforismos com temas comuns são estes últimos que são mais parecidos com este tipo de escrita. Por exemplo, as “Considerações sobre o Pecado, o Sofrimento, a Esperança e o Verdadeiro Caminho”, falando da “impaciência” adaptam-se bem a este meio:

Todas as faltas humanas têm origem na impaciência, uma ruptura prematura do esforço metódico: fixamos sobre um suporte aparente, o objecto aparente”

“Há dois pecados mortais humanos donde decorrem todos os outros: a impaciência e a preguiça. Por causa da sua impaciência, foram expulsos do Paraíso, Por causa da sua preguiça não voltam para lá. “


O carácter fragmentário da escrita “cabe” na página e favorece a citação. Retorno a uma nota minha, já arquivada, de Lukacs sobre Nietzsche e as características do texto facilmente citável.
Incluir os aforismos.

*

Para a Montanha Mágica e os seus leitores uma sugestão, caso não conheçam. Num magnifico livro , de meta-livrismo neste caso , editado por Dale Salwak intitulado A Passion for Books, Nova Iorque, St. Martins Press. 1999, agrupando uma série de textos sobre o amor pelos livros , está um ensaio de Jeffrey Meyers intitulado “Obsessed by Thomas Mann”. Meyers escreve como, desde os 16 anos, se foi enleando em Thomas Mann e, livro a livro, foi ficando “obcecado”. Conta como leu os livros, como foi modificando essa leitura à medida que sabia mais sobre Mann, as visitas aos lugares da vida de Mann, a Veneza, a Davos. Meyers critica os filmes feitos sobre obras de Mann, e a representação de Aschenbach na Morte em Veneza de Visconti.
Obrigatório para os “mannianos”. Se o autor da Montanha em blogue quiser posso mandar-lhe o texto.


 


VER A NOITE


Não se vê a Lua. Marte lá está, o príncipe dos céus por estes dias.
Olhando para Marte, virando 90º para a esquerda, a Cassiopeia. Faz-me falta Orion, a constelação que enche o céu, que lembra as noites mais brilhantes do Inverno.

Está um vento fresco, ligeiro, leve, como para lembrar que há ar.
Não se ouve nada. Para onde foi o ruído?


19.7.03
 


UM NINHO




Um ninho de “verdinhogo” , em cima de um livro, Feito com musgo e com “cabelos”, parece algodão no meio. Resistiu a ventos muito fortes. Caiu intacto depois de três pássaros terem seguido à vida, quando já era inútil. No chão parece fragilíssimo. Sei que não é.

Segundo V., o “verdinhogo” é um pássaro cinzento “esverdinhado”. “Canta melhor do que o “mandarim” que tem bico vermelho, cinzentinho, mas com riscas encarniçadas. Como o bico tem é como o corpo”.








 


"COM O TURISMO NÃO SE BRINCA"

O que é exactamente o que está a fazer quem encomendou os anúncios com os bonecos da Contra–Informação que passam na televisão? É difícil fazer uma coisa tão feia, tão repulsiva, tão ineficaz como esses anúncios. O que é que passa pela cabeça de quem os encomendou, pensou e comprou? Qual é o “alvo”, como eles dizem? Qualquer pessoa que veja aquilo foge a sete pés do país que assim se representa, certamente porque é assim que é.

*

E os do Expresso, que não sabem absolutamente nada se estou em férias e onde as passo, se estou cá ou nos antípodas, com a imaginação de uma betoneira estacionada junto de um estádio de futebol, colocam-me na praia junto da fauna, de toalhinha e computador …

 


DE LONGE PARA LONGE

 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 14 (Actualizado)

1. As vozes que não se ouvem mais.
São “objectos”? Como é que ficam na nossa memória?
Como uma coisa?

A voz de Nemésio, a voz de Villaret, a voz de David Mourão Ferreira, a voz de Beatriz Costa, a voz de Salazar, a voz de Vasco Santana, a voz de João César Monteiro, as vozes dos nossos, pouco a pouco desaparecendo.

As vozes que já não se ouvem há muito tempo, as vozes que deixaram de se ouvir. As que falam baixo à noite, as que se estão a esquecer, as que gritam quando as queremos calar, as do silêncio.

Devia haver um catálogo de vozes.

(A rádio, catálogo de vozes).

*

Miguel : "A voz da minha mãe é a única memória dela que me não resta mais . Foi-se rápida num vento sem retorno. Desfez-se. Num entanto acho que prescindiria de catalogar a sua voz , mesmo que tivesse tido oportunidade. O registo da voz é-me demasiado brutal face à irreversibilidade da perda."



2. Acabou a telescola. Portugal mudou.
 


EARLY MORNING BLOGS 13


Eu sou um adepto do meta-bloguismo, embora pense que o excesso do dito levaria a uma esterilidade completa. O meu meta-bloguismo vem de não conseguir usar um meio sem me esforçar por o perceber. Num primeiro tempo, este olhar “tira” liberdade, condiciona, “prende” e por isso o meta-bloguismo gera sempre um certo mal-estar. Mas há um segundo olhar, que se calhar também vem com o primeiro, que acaba por nos dar uma ainda maior liberdade. Eu sou da escola de quem pensa que conhecer liberta. Não há provavelmente maior ilusão nos últimos duzentos anos, do que achar que as “luzes” alumiam, mas eu prefiro um mundo em que se proceda (eu disse proceda e não acredite) segundo essa ilusão.


Leitura de outra espécie de blogue: os diários de Tolstoy (numa edição de textos escolhidos – o conjunto dos diários é gigantesco e nunca foi traduzido integralmente para inglês - muito boa de R. E. Christian, Tolstoy Diaries , Londres, Flamingo, 1994).

Depois dos Cadernos de Camus fiquei com curiosidade de ver em que medida a mecânica diarística, narcisística, seja lá como for, dos blogues aparecia noutros textos semelhantes. Os mais semelhantes são obviamente os diários, e os cadernos de observações e notas, que funcionam como instrumentos de trabalho para futuros livros, ou como textos para serem publicados.

Não me interessava saber se os blogues prolongam os diários, mas se determinados mecanismos formais – a datação cronológica, a fragmentação do texto pelo tamanho da página, o esquecimento rápido, a interactividade, o papel da citação e contra-citação, o diálogo dentro de uma comunidade e para fora dela – estavam também presentes, num outro contexto tecnológico, em textos semelhantes pela sua natureza aos dos blogues.

Dos que vi nenhum texto é tão próximo dos blogues como os Cadernos de Camus. Se as suas entradas tivessem sido colocadas, dia a dia, por alguém que, como o Pierre Menard do Borges, o quisesse de novo escrever de forma mais perfeita “bloguisando-o”, ninguém distinguiria a diferença a não ser pela qualidade. Os diários de Tolstoy já são um pouco diferentes, mas também não tanto.

Tolstoy escreveu vários diários, durante praticamente toda a vida. Atribuía-lhes grande importância e chegou a dizer “o meu diário sou eu”. Disse “vários” porque, nalguns momentos, escrevia dois ao mesmo tempo, um dos quais intitulava de “secreto”. Esta classificação de per si coloca o outro diário como quase “público” – Tolstoy falava dele aos seus próximos e é provável que estes conhecessem algumas entradas.

Quando alguém escreve um diário para ser lido, o facto de as tecnologias de então implicarem um tempo de espera e maturação para as suas palavras virem a público, não introduz uma diferença qualitativa com os blogues quanto ao dilema público - privado. No entanto, a imediaticidade total da escrita dos blogues gera outras diferenças sem precedente, talvez a mais importante das quais seja o efeito do texto ser público e escapar ao seu autor mal ele o escreva, entrando numa rede que, ao mesmo tempo, o transporta para outros lados e o prende num presente circunstancial. Uma parte dessa rede é a citação e o comentário, o fio das palavras dos outros prendendo as nossas num efeito sem retorno. A etiqueta não escrita dos blogues, que “condena” a retirada de uma nota uma vez publicada ou a sua mudança significativa, tem a ver com a integridade dessa teia. Apagar uma nota, apagar um blogue rompe a teia.

Sem essa teia, sem essa escrita que implica sempre um hiper texto mesmo que virtual, daí os efeitos narcísicos, não havia blogosfera. (É por isso que tenho que reavaliar em relação a textos que anteriormente escrevi, a relação entre o interior e o exterior da esfera). O diário ideal , escrito para ninguém ler, não existe na blogosfera, nunca seria um blogue porque não era para ser publicado. A publicação, mal é feita, faz pertencer o texto aos outros. Tolstoy não defrontava estes efeitos.

(Continua.
O “continua” dos blogues, onde não “cabem” textos longos, é parecido com o dos seriados, histórias aos quadradinhos, e filmes em episódios, só que sem o suspense final).



18.7.03
 


VER A NOITE

Antes da Lua aparecer, o Escorpião domina a noite. Pouca luz, está uma noite profunda, com três dimensões, todas negras.
A Lua mudará a noite, mas ainda é cedo nesta parte do mundo.


 


DE LONGE PARA LONGE

 


NOTAS CAMUSIANAS 6

Um leitor pergunta, sobre o Dom Juan de Camus (neste caso sobre todos) :

“porque é que Dom Juan é feliz?"

Porque não espera.

*

Outro leitor, Salvador Santos, escreve esta outra interpretação das primeiras “notas camusianas” sobre Dom Juan e a traição – Dom Juan “el burlador” :

"Chamo, por agora, à colação, a multiplicidade de D. Juans que existe na figura mítica do grande traidor. Assim, parece-me mais importante saber quem é D. Juan que divagar sobre a qualidade da sua traição ou até, como o faz, como não traidor.

Comecemos por afirmar que D. Juan seria arrogante, cruel e traidor por convicção ou natureza. Em última instância não seria este D. Juan o próprio representante da decadência social que tanto contestava? É ele quem o afirma em El Burlador de Sevilla:

Sevilla a voces me llama
el Burlador, y el mayor
gusto que en mi puede haber
es burlar una mujer
y dejalla sin honor.
Viva Dios, que le he de abrir,
pues salí de la plazuela!
Mas, ¿si hubiese otra cautela?...
Gana me da de reír (Tirso, I, 1448-57).

Ei-lo, o Übermensch.

(…) recordo e cito de memória Nietzsche cuja ideia matriz se aplica a D. Juan. Dizia o pensador que ao indivíduo nunca o elogio o sacia, uma vez atingido o seu objectivo, a paz significa para ele uma nova guerra e a vida deve ser um nunca mais acabar de aventuras cada vez mais perigosas. Ele não procura a felicidade mas apenas o gozo que o jogo lhe proporciona.

Não será por aqui que D. Juan, o traidor, tem ou não esperança. Ou sequer que se consiga avaliar do grau de traição em valor menor ou valor maior, no caso dele ou de outrem. Trata-se, outrossim, de verificar que até os traidores têm esperança depositado a juros num futuro em que nunca o jogo pare, nunca a guerra acabe."
 


EARLY MORNING BLOGS 12

Nos blogues …

… as pessoas zangam-se muito, são muito piegas, são malcriadas, são gentis, são espertas, são espertinhas, são parvas, copiam, fazem de conta que não copiam, irritam-se, reconciliam-se, cuidam muito da sua identidade, dão-se todas aos estranhos, representam, representam-se, são azedas, são poucas vezes alegres, são tristes, são tristonhas, são fúteis, são totalmente fúteis, têm interesse, têm interesses, têm egos gigantescos, têm egos pequeninos, têm que “dizer-qualquer-coisismo” , deixam cair muitos nomes, deixam cair muitos livros, parece que lêem muito, lêem muito, não lêem quase nada, nunca vêem televisão, tem graça, são engraçadinhas, têm tribos, têm fúrias, têm territórios, estão sozinhas, estão tanto mais sozinhas quanto mais acompanhadas, têm alguns pais, começam a ter filhos, têm maridos, não têm amantes, têm “o que escrevo é para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, têm “o que escrevo é só para ti”, mas é só para mim , ou para o outro(a), não têm muita paciência, têm pressa de chegar a algum lado, têm a esperança de chegar a qualquer lado, estão convictos que não vão chegar a lado nenhum, têm quereres, têm birras, são meli-melo, são assim …

… porque se calhar é assim na vida toda.

Como os blogues não têm editor, a vida aparece sem ser editada.
Engano, puro engano. Funciona aqui um gigantesco editor, o monstro que está dentro.
 


LUA DIMINUINDO, MARTE AUMENTANDO

Ver a noite.
Marte adianta-se e passa para a frente da Lua. Soltou-se.
 


TÃO, INFELIZMENTE, PORTUGUÊS (Actualizado)

No ptBloggers, o seu autor escreve “vi-me ontem forçado a suspender as votações e os comentários” . e explica porquê:

além das manipulações das votações (que por serem de conhecimento público, não eram relevantes), começava a observar-se outro fenómeno, consequência dos referidos abusos. O facto da esmagadora maioria das pessoas dar “1 estrela” aos weblogs que achava sobre-avaliados e “5 estrelas” aos weblogs que julgava sub-avaliados, teve como resultado uma aproximação aos valores médios em todos os weblogs. Ou seja, em mais de 500 weblogs avaliados, a quase totalidade tinha 3 estrelas. A tendência aparentava ser a continuação deste sistema. Quando um weblog conseguia subir para 4 ou 5 estrelas, aparecia alguém que lhe dava “1″, para o fazer descer, acontecendo também o mesmo no sentido inverso ."

A descrição é eufemística. Não é bem o "julgamento" que está em causa, mas a niveladora inveja, a pecha nacional de que vale mais serem todos medíocres e quem sobe acima da mediocridade, solta uma multidão invejosa que faz tudo para o colocar no lugar.

*

José Carlos Santos conta esta história verdadeira:

"O texto do autor do ptBloggers, (…) fez-me lembrar um acontecimento que teve lugar quando eu fui aluno universitário. A Associação de Estudantes da minha faculdade organizou um inquérito à qualidade do ensino. Para cada cadeira na qual um estudante estivesse inscrito, havia um conjunto de características («facilidade de acesso à bibliografia», «preparação pedagógica do docente», etc) que ele deveria classificar numa escala de 1 a 5. Uma determinada cadeira era particularmente detestada e os alunos não estiveram com subtilezas; todos, sem excepção, classificaram com 1 valor cada uma dessas características da cadeira. Deveriam ter pensado um pouco mais no que estavam a fazer, pois um dos tópicos a classificar era «grau de dificuldade da cadeira»..."

Aviso: qualquer comentário que apareça assinado “Abrupto” ou JPP ou qualquer variante (com excepção de um colocado a dizer isto mesmo no ptBloggers, ) é falso. Não uso as caixas de comentários para escrever sobre seja o que for.



17.7.03
 


DE LONGE PARA LONGE


 


OS ESPIÕES DE CAMBRIDGE

Li referências elogiosas à série Cambridge Spies de que vi um ou dois episódios, o suficiente para perceber como é idealizado o que aconteceu. É verdade que, mais do que o costume, a série mostra o “estilo de vida” do grupo dos “apóstolos” transformados em espiões soviéticos. Mas a idealização, neste caso, é particularmente mistificadora porque prolonga a mesma complacência snobe que permitiu a longa sobrevivência do grupo. Esta gente matou – a lista dos agentes albaneses entregue aos soviéticos matou-os um a um, ou mandou alguns e as suas famílias para campos de concentração toda a vida.

Fossem eles nazis e a complacência seria nula. Mas a verdade é que se os “apóstolos” eram genuínos comunistas na sua juventude, em breve se tornaram cínicos que prezavam acima de tudo a snobeira de serem contra o establishment de uma forma irresponsavelmente perigosa. Entre as bebedeiras, o “catalogue raisonné” de Poussin, as gravatas certas, o tom upper class da má língua e os encontros clandestinos com o KGB, tudo parece fácil e exerce nos espectadores o mesmo efeito de atracção das fotografias do jet set em férias ou das casas dos ricos e poderosos. Olha-se para cima , quando se devia olhar para baixo.

É um traço sinistro do “comunismo” das classes altas inglesas, que se encontra também nas manas Mitford, levarem o ar blasé das conversas dos clubes de Oxford e Cambridge a um elevado grau de imaturidade social e politica. A idealização dos Cambridge Spies é isso mesmo: o elogio da irresponsabilidade.
 


EARLY MORNING BLOGS 11


Guerra e Pas tem uma delicadeza humana que eu aprecio. Nem piegas, nem cínico, uma combinação muito difícil e nada dessa irritação tão à flor da pele que se encontra em muito blogues disfarçada de convicções. Não concordo com muita coisa que lá se escreve, mas ontem há duas notas, a 108 e 109, que mostram esses méritos.

Sobre a “Vergonha” vale a pena ler uma nota do Icosaedro com o mesmo título , e dois apontamentos em sentido diferente do Sócio[B]logue e do Terras do Nunca. Eu não quero acrescentar mais comentários ao que já disse porque penso que a partir de agora é contraproducente. Mas a nota do Sócio[B]logue intitulada “Os Anormais, o Humor e os Estados-de-Espírito: Apontamentos Breves “ mostra um risco que, há dias, o Pedro Mexia levantava de passagem sobre o papel dos meta-discursos. Eu penso que há ainda outro aspecto mais complicado que é a inerente justificação do real a partir da sua explicação, que é um problema muito próprio do discurso sociológico. Presos na explicação do real, que já explica também como a ele reagimos, que valor ético tem o que fazemos? O Terras do Nunca apercebeu-se disso e diz:

"Eu sei que talvez esteja a problematizar em demasia. E que o momento talvez exija o contrário, o da simplificação. Só ela conduz à acção."
 


LUA

Subiu agora, vinda do lado direito (esquerdo), ainda lua de haikai. Antes estava noite escura, Escorpião à frente.
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 13

Alguns leitores desta série (o Paulo Querido do uuh o vento lá fora e o Mário Filipe Pires da Retorta ) sugeriram que ela se torne autónoma e colocada num outro blogue, incluindo fotografias dos objectos referidos, e ofereceram gentilmente a sua ajuda. De novo, insisto, é bem vinda. O material que recebo é tanto, que , a continuar assim , afogaria o Abrupto só de extinções, ( não deixem de mandar sugestões lá porque eu disse isto…) e por isso justificaria um tratamento próprio . Se estivessem de acordo poderíamos tentar fazê-lo em Setembro.

Vamos aos “objectos” em risco de se irem embora na memória:

1) “aquelas capas de pele que há uns anos serviam para levar livros ou blocos dentro. Não sei se tinham um nome específico. Recordo-me que, por foram tinham relevos com bustos do Eça, Herculano, Camões, etc. As melhores eram de pele, em cor natural, ou tintadas. Depois surgiram umas imitações em cartão a imitar pele. A última que vi, há uns cinco anos, era dessas. Não sei se o objecto está em extinção ou extinto. Sei que gostava imenso de reencontrar essas capas para lhes meter livros dentro.” (Terras do Nunca )

(acho que tenho uma , quando a encontrar envio-lhe)


2) o amplificador a válvulas ( e José Victor Henriques acrescentava “sábado, 13 de Julho, no DNA, vai perceber porquê.” Já percebi.)


3) "Coisas que se perderam
- as visitas ao zimbório da Basílica da Estrela;
- o sossego do litoral alentejano;
- as lagoas de Albufeira e Óbidos sem poluição

Coisas que ainda resistem
- as viagens de eléctrico (carreira 28) dos Prazeres à Graça;
- alguns jardins (ditos públicos) de Lisboa;
- o “encher dos olhos” em alguns miradouros de Lisboa
"

(M. Ribeiro Santos)

4) “a proposito de objectos desaparecidos:-o "ring" de borracha tão em uso nas praias! ; ainda joguei com um fabricado com "cabo" e forrado a lona no convez do "royal mail" "arlanza" numa viagem, no início dos anos 60, de de Londres para Lisboa.. tambem já passou à história,e. até era a opção mais barata.”

Mas o oposto, ideia que parece ter abandonado o Abrupto, que objectos continuam a ser usados numa mesma forma, parece um tema muito mais interessante para uma hipótese museologica. A referencia ao livro The Libraries of..lembrou-me The book on the bookshelf do Henry Petroski onde se faz a história das estantes...- aquele tão desejado acessório dos bibliófilos" (Abel Roldão)

5) a "Plateia"

"revista de cinema, ou antes de artistas, femininas, é claro. Que pobreza, dirá... mas que riqueza, naquele tempo! “ (Jose)

6) “O "rio Tejo como fonte de sustento"
.
Imortalizados por Alves Redol no seu livro Avieiros, estes nómadas do rio, como lhe chamou na época, deixaram de existir, por volta dos anos setenta, com a chegada da poluição industrial.
Desde o início do século XX que grupos de pescadores oriundos da Praia de Vieira de Leiria se deslocavam no Inverno para a borda d'água para a apanha do sável e da enguia. A minha família fê-lo durante quase meio século, garantindo assim o sustento dela. Hoje, mais de uma dezena de aldeias "palafitadas" de extraordinária beleza (antropológica se se quiser) permanecem desde Salvaterra de Magos até Vila Franca de Xira. Há meia dúzia de anos, fiz o caminho e fui conhecê-las. Encontrei velhinhas sentadas a olhar o rio que me disseram: "O meu pai era da Vieira, mas eu nunca lá fui, não queria morrer sem lá ir uma vez que fosse
". (João Paulo Feteira)


7) "um link com uma exposiçao online sobre o mesmo tema "things that don't want to die" do Pablo Garber "(Maria Sousa)


16.7.03
 


LUZ

Ele escreveu a esta mesma precisa hora:

A terrível luz do fim da tarde quando trabalham as andorinhas e para o vento e começa a correr agua pelos infinitos e pequenos canais verdes.

Na ilha feita pela peste
.”
 


UMM KULTHUM

Vi, pelo Portugal dos Pequeninos, que passou na pátria um documentário sobre Umm Kulthum (os franceses chamavam-lhe Oum Kolsoum ), uma das vozes mais extraordinárias do século passado. Escrevi sobre ela um dos textos que era de facto pré-blogue, como outro sobre Mohamed Abdelwahad, al Mousiqar quando ele morreu, há uns anos atrás. É natural que nas secções de “world music” encontrem discos de ambos. Mas não é folclore, é grande, grande música.

Encontram aqui uma página sobre Inte Omri, uma das mais belas canções da dupla Kulthum, a cantar, e Abdelwahab a compor.

São quarenta minutos de emoção pura, com toda a representação quase operática, que este tipo de música pressupunha. Kulthum, de pé, com um lenço na mão, à frente de uma orquestra de cabaret ( depois de concerto), tudo trajado a rigor, abrindo com a longa introdução orquestral, precedendo o momento culminante da primeira linha do poema, “Ragaa’ouni a’einaik el Ayam illi rahou” , “os teus olhos levam-me para os dias que já não voltam” .

Nestas canções este tem que ser o momento perfeito, a entrada da voz, às vezes precedida de pequenos sons anunciadores. A voz tem que se abrir na sala como um profundo lamento, vinda , no caso de um poema como este, de uma dor muito intensa, magoada. O poema é importante, linha a linha repetido, uma longa lamentação triste e nostálgica.
 


EARLY MORNING BLOGS 10

Seria ingrato se não referisse o Desesperada Esperança , que se inspirou num livro meu.

Alguns dos melhores blogues que conheço são de jornalistas, e esses blogues tem contribuído para um dos debates que mais falta na sociedade portuguesa: o da qualidade da comunicação social. É um debate para que os blogues são particularmente apropriados (levantei esta questão há um mês, há um século na blogosfera, no texto “Discutir os blogues” ) não só pela sua imediaticidade, como pela liberdade de discussão dos constrangimentos corporativos, que são fortes. Pouco coisa há de mais violento do que uma polémica entre jornalistas ou entre jornais sobre o que cada um faz e não faz. Sei também por experiência própria, e por tê-lo proposto nos últimos vinte anos várias vezes a amigos jornalistas que me pedem sugestões, e a quem respondo sempre – façam espaços de crítica sobre a imprensa como os jornais acham natural fazer sobre a televisão. Sim, muito bem, é muito interessante e nunca avançou.

A imediaticidade, com todos os seus riscos, é importante neste caso porque a memória activa da comunicação é hoje muito curta e percebe-se melhor o que se está a discutir se tiver ocorrido ontem, ou anteontem. Blogues como o Ponto Média e o Jornalismo e Comunicação fornecem depois a distância reflexiva necessária. Imediaticidade e distância, só nos blogues.

Veja-se sobre este debate o Terras do Nunca , Guerra e Pas , Outro, eu e Donos da Bloga


Escrevi umas “Notas sobre o jornalismo político” que ainda estão incompletas, falta a nota sobre o Independente. A razão porque estão incompletas é que ainda não encontrei um texto que queria publicar antes de o actualizar, porque, contrariamente ao que acontece com outros jornais , o Independente ( de Portas e MEC) teve muita influência na fase inicial da blogosfera e merece um tratamento mais aprofundado.

15.7.03
 


REMEDIAR A VERGONHA


Os protestos contra a exploração de um ser humano com problemas mentais no último programa Herman SIC estão em dezenas do blogues. Muitos jornalistas e pessoas com acesso a outros meios de comunicação não podem ter deixado de os ler, pelo que só por indiferença moral é que a questão não chega amanhã ao público da comunicação em geral. Eu sei que não existe essa indiferença e que há muita gente incomodada e indignada.

Ficava bem a Herman no próximo programa começar por calar o público, e dirigir-se aos espectadores dizendo uma coisa tão simples como isto : “na semana anterior ultrapassamos neste programa um limite que deve ser inultrapassável e tratamos mal um amigo nosso que tem problemas. Pedimos-lhe desculpas e pedimos desculpa ao público. Não se torna a repetir. " E depois segue o programa.

Não precisa de o nomear, e se o nomear use o seu nome normal e não uma alcunha qualquer. Francisco Balsemão se dissesse alguma coisa também lhe ficava bem.

Eu não tenho muito jeito nem para campanhas destas, nem para filantropias públicas. A última coisa que me passa pela cabeça fazer são campanhas moralistas e não voltarei ao assunto porque já disse o que tinha a dizer. Mas se um gesto deste tipo fosse feito talvez ficássemos todos um pouco melhor.
 


SOBRE A TORTURA

Miguel Pinheiro , a propósito das “Notas Camusianas” sobre a traição, enviou-me este texto:

"Elio Gaspari está a publicar vários volumes sobre a ditadura brasileira e,
no segundo, intitulado A Ditadura Escancarada, toca ao de leve nesse tema,
com um ponto de vista interessante (aliás, deixe-me dizer-lhe, a
despropósito, que ele escreve onze páginas (da 20 à 31) brilhantes sobre a
tortura e suas consequências na ditadura, na oposição e na sociedade).

Na pág. 267, Gaspari fala da morte do guerrilheiro Carlos Marighella: ele
foi assassinado pelos homens do regime com base em informações dadas,
debaixo de tortura, por frades dominicanos. Aliás, os religiosos foram
obrigados a estar fisicamente presentes durante a armadilha, servindo de
isco.

Escreve ele: “A presença dos padres na cena da cilada contra Ernesto
(um dos nomes de código de Marighella) adicionou ao episódio uma ideia, tão
falsa quanto perversa, de traição degradante da figura mítica dos
guerrilheiros. ‘Beijo de Judas’, comentou o jornal O Globo dias depois”.

Numa nota de pé de página, Gaspari explica por que é que acha essa ideia
“falsa” e “perversa”: “Os dominicanos teriam traído Marighella se o tivessem
atraído para a cilada por terem mudado de opinião a seu respeito, ou ainda
se, ante alguma promessa de recompensa, visassem algum proveito pessoal ou
político. Um acto praticado diante do medo do retorno a suplícios
sistemáticos só pode ser considerado uma traição se o uso da tortura como
forma de extracção de confissões é aceite como parte do acervo moral e ético
da pessoa que declara traidor o preso submisso”.

Será que mesmo quem fala sob tortura pode, mantendo a sua integridade moral,
não trair – mesmo tendo traído? Pode haver uma traição efectiva (com
consequências como, neste caso, a morte do “traído”) sem haver uma traição
moral? E será que isso serve de consolo ao “traidor”?
 


VERGONHA

A vergonha da exploração de um jovem atrasado mental no Herman Sic tem sido denunciada por vários blogues. Esta é uma matéria que deve ultrapassar a blogosfera para chegar ao mundo exterior. Se continuarmos todos a fazer barulho, chega.
 


EARLY MORNING BLOGS 9

Quando se lê um número suficiente de blogues e, esforçando-me por sair da rede mais densa do mainstream, – aquele círculo de blogues que estão intensamente “linkados” uns com os outros e tem uma massa crítica suficiente para impor temáticas e aparecer como a face da blogosfera fora dela – apercebem-se as tendências e apercebe-se, acima de tudo, a enorme revolução do meio em Portugal nos últimos meses. Por isso é que o meta-bloguismo é natural, é uma reacção de auto-compreensão e auto-definição compreensível em tempos de tumulto.

Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo como é habitual numa revolução. Cito Lenine, já que os nossos amigos à esquerda tem grande pudor em o fazer, - e permito mais umas brincadeira humorísticas comigo inteiramente previsíveis - porque a frase aplica-se bem ao momento actual da blogosfera :

Só quando os "de baixo" não querem e os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga é que a revolução pode triunfar.”

O que se está a dar é a democratização da blogosfera com a entrada de muita gente no duplo sentido: novos blogues e novos leitores. Por outro lado, a exposição exterior dos blogues introduziu diferentes critérios de avaliação que não coincidiam com os dominantes no seu interior.

Este efeito acabou com a blogosfera cosy , fortemente estratificada entre blogues a quem ninguém ligava nenhuma e blogues que através de um permanente diálogo, do auto-elogio, de um espírito de elite que ultrapassava claramente qualquer barreira ideológica, se apresentavam como primus inter pares. A distinção esquerda - direita era menos importante do que a distinção entre os amigos e os desconhecidos, entre “nós, os bons” e eles a turba ignara de mau gosto. A lista de “blogues de serviço público” no Blogo era o retrato desse mundo fechado que explodiu.

Era também natural que a maioria das pessoas se conhecessem umas às outras e fossem amigos. Quando, num meio de comunicação qualquer, todos se conhecem, ou todos tem a mesma idade, ou todos tem a mesma formação, ou todos lêem os mesmos livros, ou frequentam todos os mesmos restaurantes, é porque esse meio está na infância.

Tudo isto gera muitas tensões e uma certa irritação era inevitável (“os "de cima" não podem continuar vivendo à moda antiga”). Nalguns blogues mais antigos há uma clara evolução do blogue-optimismo para o blogue-cepticismo, que nada justifica, porque só um cego é que pensa que a blogosfera está pior porque não é um clube de vinte amigos. É natural que tenham vontade de migrar e para isso, por razões psicológicas, desvalorizam o que deixam para trás.

Um dos aspectos mais saudáveis da democratização da blogosfera é que hoje é mais difícil “competir” (tomem a palavra com a latitude que quiserem), ter influência, já há muitas vozes qualificadas, muito saber em muitas áreas, uma diversificação temática, de opiniões e de escritas, que a capacidade para se afirmar já não depende do elogio mútuo, mas de se ter ou não uma voz própria e persistência. Este último factor é o que mais falta na blogosfera, onde um mês é um século e se chega a conclusões taxativas lendo cinco ou seis blogues de um dia para o outro.

Eu sou liberal no sentido antigo, prezo a chuva e o mau tempo, a fúria e a calma das discussões, e gosto de ouvir muitas vozes diferentes. Como já disse e repito, na blogosfera, a “mão invisível” está dentro da cacofonia e para exercer o seu efeito positivo é suposto ser mesmo “invisível”. A blogosfera portuguesa passou de ter uma mão “visível” para ter uma “invisível” e foi, em primeiro lugar, o número que provocou esse efeito. Mais gente, mais vozes, tudo mais árduo. Esta é a revolução.

 


MÊS DE MARTE (Actualizado)

O próximo mês é o mês de Marte nos céus e no Abrupto. Marte está mais próximo da terra do que jamais esteve em muitos milhares de anos, e os telescópios caseiros vão poder ver melhor o nosso vizinho planetário do que em qualquer outra altura.

No Abrupto haverá notas sobre a cor vermelha, a guerra, o sangue, a violência, a épica, os marcianos, os homenzinhos verdes, Percival Lowell , o Mars Global Surveyor, H. G. Wells. Tudo junto ou em separado. Podem começar a fugir.

*
R. P. do Hipatia teve a gentileza de enviar algumas indicações quanto à observação de Marte :

"o mês em que Marte estará mais perto da Terra será Agosto (pelas minhas contas, mais precisamente no dia 27, com uma magnitude -2,9 e a cerca de 56 milhões de kilometros). Para complementar, é a distância mais curta dos últimos sessenta mil anos, mais coisa, menos coisa. De qualquer maneira é mais fácil vê-lo em Julho, pouco acima da Lua, no sentido do quarto minguante, e com uma magnitude -1,8/-2,3. Em Agosto basta procurar a constelação de Aquário para ver o dito em todo o seu esplendor vermelho, passe a expressão."

SOM

O som da laguna à noite é regular, pequenas ondas sempre a bater como um relógio. Às vezes ao longe, um breve vapor, alguém que chega tarde, regressa sobre as águas. Alguém diz: não venhas tarde. A lua levanta-se sobre Il Redentore, lua de haikai, entre novas nuvens. Amanhã deve chover.


14.7.03
 


NOTAS CAMUSIANAS 4 – SOBRE DOM JUAN

Sobre o Dom Juan, a pretexto da peça não escrita de Camus.

O que todos esquecem é que Dom Juan é feliz. É a felicidade de Dom Juan que é subversiva.

Como todos os homens felizes, Dom Juan transporta consigo uma porta aberta.

Está alguém à porta. “Entra” diz Dom Juan.


NOTAS CAMUSIANAS 5 – SOBRE A TRAIÇÃO

Os traidores sofrem de logomaquia.

Os traidores fogem dos espelhos, não se podem ver ao espelho.

Nos filmes italianos, as mulheres cospem nos traidores. Já vi acontecer isto uma vez.


*

As histórias de traição são muito curtas e muito duras. Cortantes.

Uma, verdadeira, ocorrida no início da década de cinquenta .

Dois presos encontram-se na cadeia, um intelectual e um operário. Ambos comunistas. O intelectual tinha falado, o operário era funcionário do PCP. O operário disse-lhe:

“Então filosofo? Filosofo de merda! Filosofo da traição! Estás bem?”

É assim que são as facadas. Sentiram?

 


LUGARES DA DECADÊNCIA 2

Livraria Aurore , “antiquaire marxiste-leniniste”

A livraria “Aurore”, do nome do couraçado, é uma das últimas sobrevivências de uma espécie em extinção: a livraria marxista-leninista. Havia várias em Paris, uma atacada à bomba em 68 ou 69, uma em Londres muito conhecida a Banner Books and Crafts em Camden Town, etc.

Esta é em Bruxelas , no meu bairro, e foi uma grande surpresa encontrá-la nas minhas primeiras explorações pedestres. Fica em frente de outro alfarrabista com o nome curioso de Ecrit Vint, que, não tendo muitos fundos antigos, é boa para comprar mais baratos livros relativamente novos.

A livraria é pequena, pouco mais do que uma sala com uma pequena bancada inacessível. A porta é sólida, recordação dos tempos em que era suposto uma livraria destas ter portas blindadas. A sua montra, há muito tempo por pintar, está praticamente coberta de livros e só uma pequena parte deixa passar a luz para o interior. Já de fora se tem a impressão de um espaço muito pequeno, literalmente coberto de livros e outra parafernália política, discos, cartazes, revistas, pins, bandeiras, etc. Depois, lá dentro, há pouca luz e muito pó.

Há pouco espaço livre e quando se entra, à esquerda, o que sobra, é dominado por uma secretária antiga, sólida, atrás da qual está o dono da livraria, tão robusto e sólido como a secretária. É um flamengo atarracado e muito encorpado, (pode ser maior mas nunca o vi de pé), com uma enorme barba ruiva, talvez com mais de cinquenta anos um pouco disfarçados . Está muitas vezes de calções, não parece um intelectual, mas talvez um antigo operário. Espero que ele nunca leia isto, mas é muito parecido com um dos bóer que foi morto no Bophutatswana, num incidente nos últimos dias do apartheid sul-africano. O homem cumprimenta os seus raros clientes e recebe com frequência amigos, “camarades”, com quem conversa longamente sobre reuniões, comícios, manifestações, e outros “camarades” . Uma vez estava a falar de um encontro em que estiveram os “camarades portugais”, que deviam ser da UDP. Eu vou lá algumas vezes, quando os horários são compatíveis, porque a livraria está quase sempre fechada, compro bastantes coisas e ele deve achar que eu sou ou grego, ou espanhol e talvez português, as tribos emigrantes do bairro. Os árabes não vão lá, concentram-se nos cafés à volta.

A livraria foi “marxista-leninista”, mas há muito deixou de o ser. Hoje tem publicações anarquistas, conselhistas, “revisionistas”, e um número considerável de obras de Trotsky, o que nenhuma livraria dos bons tempos ultra-sectários sonharia ter . Depois há aquilo que se pode esperar. as obras de Lenine, os velhos livros da Maspero, Gorki, publicações sobre o movimento operário belga em flamengo, Henri de Man, discursos de Fidel, cartazes do Che, discos com a Varsovienne , a Carmagnole e a Internacional.

O que para mim tem mais interesse são as publicações anteriores aos anos sessenta. Para o meu trabalho são exactamente esses livros e folhetos os mais interessantes, porque praticamente nunca chegaram a Portugal. Textos de Thorez , Duclos, Garaudy do imediato pós-guerra, publicações periódicas dos partidos comunistas francês , belga, da Internacional nos anos trinta, livros sobre a Resistência, e as revistas literárias e “culturais” comunistas como as Recherches Internationales à la Lumiére du Marxisme ou a Litterature Soviétique .


O tempo gerou este ecletismo, à medida que o couraçado foi saindo do Museu da Revolução e entrando para o museu dos navios antigos. São apenas livros? Não só. É uma história terrível que está lá dentro, com um rastro de milhões de mortos, e o flamengo a velá-la, na sua pequena sala bruxelense, onde quase ninguém entra.

(Na série dos “lugares da decadência” está a 12 de Julho um texto sobre um casino em Baku)
 


LUA

Lua japonesa, lua de haikai. Alguém a vê?
 


VERGONHA

A utilização no programa de Herman de um jovem atrasado mental, é mais um degrau que se desce numa escada invisível para o vale tudo. O problema é que há quem ache engraçado. Estou mesmo a ver algum engraçado a fazer o comentário que há muitos “atrasados mentais” piores que lá vão e eu não protesto. A diferença está nas aspas e é uma gigantesca diferença. Experimentem trocar.

13.7.03
 


NOTAS CAMUSIANAS 2 (Actualizado)

Paulo Azevedo faz a seguinte pergunta a propósito das anteriores considerações sobre a traição:

JPP : "Pedro parou à porta da traição. Como muitos dos homens do Novo Testamento mostrava a sua humanidade pela queda. Mas se continuasse a abjurar cairia na traição e a traição deixa uma mancha moral indelével."

Paulo Azevedo: “O que é que entende, neste caso, por 'continuar a abjurar'? 'Alargar' a renúncia ou insistir na abjuração feita? Por outro lado; será que a insistência na abjuração tem sempre como consequência o alargamento da renúncia e é isso que pode situar o abjurador às portas da traição?”

Vamos a um caso concreto que tem a ver com os interrogatórios da PIDE. Como em todos os casos concretos por detrás estão terríveis dramas pessoais. É uma coisa que convém não esquecer nunca, e que impede qualquer arrogância moral.

A PIDE (ou a Gestapo, ou a NKVD, ou o KGB) cometia violências sobre os presos para obter confissões. Não interessa agora saber de que tipo eram essas violências, se eram muitas ou poucas, se eram físicas ou psicológicas, - eram violências. Os presos, se confessavam, isso significava fornecer informações que ajudavam a polícia que fazia parte do regime que se pretendia combater. .Dessas confissões resultavam novas prisões e novas violências, muitas vezes sobre amigos e pessoas próximas. Isto durou quarenta e oito anos e destroçou muitas vidas.

O PCP teve desta situação uma experiência ímpar. Quem tiver curiosidade de ir mais longe encontra algumas reflexões na análise do texto, Se Fores Preso Camarada.. , na minha biografia de Cunhal, volume segundo.

A estratégia do partido face a esta situação evoluiu grosso modo assim:

- enganava-se a PIDE com uma historieta qualquer (esta era a atitude comum nos anos trinta) ; a polícia, como todas as polícias, não tinha dificuldade em perceber que estava a ser enganada e ia mais longe na violência, conforme lhe interessava e conforme a origem social do preso:

- o preso contava o que sabia e incriminava-se a si mesmo, ou confirmava o que a policia sabia , mas não dava elementos novos ; nos anos trinta este comportamento era aceitável e mesmo depois admitia-se como razoável, ainda que não se considerasse publicamente ser aceitável;

- a partir dos anos quarenta ou se falava ou não se falava ; podia não se falar negando toda a veracidade às acusações da PIDE, na maioria dos casos oriundas em confissões arrancadas a outros presos , ou afirmando-se a qualidade de comunista ou de opositor, seguida de uma negativa taxativa de fazer quaisquer outras declarações.

Aqui é que entra a questão da abjuração. Quando um preso seguia uma táctica de negar a sua qualidade de comunista ou opositor, afirmando nada ter a ver com as acusações, sendo inclusive obrigado a fazer declarações anticomunistas e ofensivas daquilo que realmente pensava, abria-se um espaço de colaboração com a polícia, uma situação de promiscuidade que levava, mais cedo ou mais tarde, a maioria dos presos a dizer tudo, a trair. Se o preso se dizia tão ferozmente anticomunista como podia ele recusar esta ou aquela pequena delação, esta ou aquela pequena colaboração com a polícia no local de trabalho. Era um terreno movediço e a polícia estava na mó de cima,

Quando um preso dizia, como os funcionários do partido eram aconselhados a fazer, “eu sou funcionário do PCP não tenho mais declarações a prestar” , a integridade psicológica do preso permanecia intacta e depois era apenas uma questão de resistir às violências. A PIDE quando já tinha torturado alguém e o preso tinha mantido o silêncio, muitas vezes aceitava a declaração e passava adiante sem repetir as torturas. Por isso era muito importante não fazer sequer uma declaração, por pouco importante que fosse, porque a partir daí a PIDE continuava a pressionar. Falar um pouco era apenas garantir mais torturas.


Não se caia aqui na simples dicotomia entre coragem e covardia. Esta era uma situação limite, em que o preso não tinha qualquer defesa, como dizia a PIDE “a lei não chegava lá” , estava solitário numa cela , acordado a qualquer hora, isolado, espancado, não sabendo o que tinha acontecido “lá fora” , insultado, com os seus familiares e amigos numa situação de risco.

Mas, como o PCP ( e Cunhal no seu texto percebeu), a abjuração era uma porta aberta à traição e quando mais se abjura mais perto se está de trair. A persistência na abjuração gera a promiscuidade com o inimigo, leva a uma identificação com ele. Há excepções , mas confirmam a regra.

*

Posteriormente Paulo Azevedo enviou-me o seguinte comentário:

"Penso que a contextualização que dá ao seu raciocínio é muito específica; sendo que o mesmo tema levantará, provavelmente, outras possibilidades de análise quando referidas a outras situações.
A identificação ao agressor de que fala no seu comentário é, na minha opinião, uma observação muito pertinente. Ao mesmo tempo que o agredido se identifica com o poder omnipotente do agressor para assim tentar controlar a angústia derivada da humilhação ou da constatação da sua fraqueza; tenta ainda neutralizar de forma eficiente o conflito moral gerado pela traição anterior, através do investimento num novo (suposto) vínculo de confiança. A catadupa de denúncias que se seguem (e de que nos fala no seu post) servem perfeitamente estes dois propósitos (poucas vezes conscientes)."



NOTAS CAMUSIANAS 3

Noutros planos, noutras traições, deixando agora estes exemplos reais para passar aos irreais.

Vale a pena analisar o “alívio do traidor” . O traidor pensa que escapa às circunstâncias da sua traição e ao que (ou a quem) traiu, aprofundando a sua traição, identificando-se cada vez mais com o objecto da sua traição, com as suas novas fidelidades. Puro engano. A traição não é mudança, não é evolução, mina por dentro. Manifesta-se pelos sentimentos larvares, pela melancolia do cansaço, pela nostalgia impotente, pela recordação constante de quando se era limpo e sem culpa e com esperança. Os traidores não têm esperança, porque desmereceram da que tinham. O passado persegue-os comendo-lhes as entranhas. Deixam de ter futuro, só passado e este é insuportável.

Falo dos grandes traidores, os pequenos passam bem.

Estudar os não traidores. Por exemplo Boécio e Dom Juan.

Dom Juan nunca traiu, permaneceu fiel a si mesmo, cantando a caminho do inferno.

O facto de Dom Juan não abjurar nem trair era o que mais incomodava os franciscanos. No projecto de peça de Camus, nunca terminada, os monges matavam Dom Juan e culpavam o Comendador. O objectivo era poderem dizer “Dom Juan converteu-se” .

Comentar aquilo de que Dom Juan não se queria “converter” .

O pai franciscano. - Vós não acreditais então em nada Dom Juan?

Dom Juan. - Sim, meu pai, em três coisas.

O pai. - Pode saber-se quais?

Dom Juan. - Creio na coragem, na inteligência e nas mulheres.

O pai. - Torna-se então necessário perder as esperanças em vós.

Dom Juan. - Sim, caso suponham necessário lamentar um homem feliz. Adeus meu pai.

O pai (já na porta). -Rezarei por vós, Dom Juan.

Dom Juan - Agradeço-vos muito meu pai. Pretendo ver nisso uma forma de coragem.

O pai (suavemente) - Nâo. Dom Juan, trata-se apenas de dois sentimentos que vós vos obstinais em desconhecer, a caridade e o amor.

Dom Juan. - Eu apenas conheço a ternura e a generosidade que são as formas viris dessas duas virtudes fêmeas. Mas adeus, meu pai.

O pai. - Adeus, Dom Juan.


(Camus, Cadernos, Lisboa, Livros do Brasil , s.d.)
 


EARLY MORNING BLOGS 8


Abro com a nota que o Huuuu…. O vento lá fora do Paulo Querido fez sobre a Abrupto. Agradeço-lhe as palavras e as críticas “técnicas” que são também de conteúdo, visto que isso é inseparável neste caso. A riqueza das críticas e sugestões obriga a ler a nota original.

Eu dou muita importância a estas matérias até porque um dos aspectos que me interessa nos blogues é a sua novidade formal, o “diário” imediato e o modo como essa forma molda a escrita. Interessa-me também o aspecto comunicante que tem com outros mecanismos mediáticos: os artigos , os livros, etc. . Tenho estado a estudar HTML, o que nunca tinha feito, e visitado diferentes blogues , com diferentes plataformas, e apercebi-me das múltiplas possibilidades de melhorar. Mas aqui é que o tempo me limita.

Tenho usado no Abrupto de algumas experiências que têm mais a ver com o conteúdo do que com a forma, embora saiba que esta distinção “não tem conteúdo”. Experimentei fazer agendas regulares, textos in the making com contribuições interactivas, seriar as notas de modo a dar-lhes continuidade, usar um sistema como o do software para numerar os textos que vão mudando (1.0, 1.1, 2.0, etc.) , utilizar códigos com o sublinhado para distinguir modificações nos textos , puxar para a página visível, de forma recorrente, notas ou textos – como a prevenção sobre o correio do Hotmail - que queria que funcionassem como avisos, etc.

Mas em muitas delas encalhei na forma do blogue, na tendência irreprimível de atirar para um esquecimento rápido o que eu queria que ainda ficasse na lembrança, ou num esquecimento lento, na dificuldade em dar-lhe uma memória activa (passiva tem nos arquivos), e em manter a inter relação entre os próprios textos do blogue. Já para não falar da lentidão com as imagens, e as dificuldades de acesso ao Blogger que limitam a “imediaticidade” do meio.Não tenho dúvidas que é possível melhorar em todos estes aspectos, continuarei a estudar as possibilidades e agradeço e aceito a disponibilidade de Paulo Querido para me ajudar.


Dois blogues produzem uma escrita mediada, reflexiva, de leitura obrigatória não só sobre a blogosfera, como sobre a sociedade sem a qual nada se entende do que se passa por aqui: o Sócio[B]logue, que saudei desde o início, e o Avatares do Desejo . Vejam-se as últimas notas dos “avatares” que valem a pena.


Voltou o Latinista Ilustre que ninguém queria perdido nos círculos exteriores. Ainda não descobri o enigma maurrasiano, mas já pedi a um amigo que tem um amigo que tem um amigo que é especialista na direita francesa para saber o que são as enigmáticas iniciais.

 


ADULAÇÃO BEATA POR LULA

Um caso de adulação beata por Lula é o artigo de Paulo Cunha e Silva , "Lulofilia" no Diário de Notícias de hoje. É um exemplo típico de "culto de personalidade", espécie que sobrevive à esquerda mais do que se pensa. Aliás lembra o que se escreveu sobre Fidel de Castro, antes deste ter caído do pedestal da "Revolución". Uma amostra da "Lulofilia" :

"Lula tem a dimensão do Brasil. É grande, embora baixo. É generoso. Tem piada. Tem ritmo. Tem samba. Tem um charme completamente desarmado e desarmante. É atarracado, mas irradia confiança. É o contrário de uma pop star ou de um top model. E todavia é uma pop star e um top model. É uma estrela popular e é um modelo de topo. Como se diria no Brasil, Lula é fashion. Ou então, é gente fina. Fica bem no salão mais sofisticado e no mais miserável bairro social. A sua dignidade é tão transbordante que dá para dar e vender. Lula empresta dignidade a qualquer espaço ou situação. E, ao fazê-lo, inaugura uma nova modalidade de fazer política. "

Mais nada? E o que é que sobra para Nosso Senhor?

 


NOTAS CAMUSIANAS

Escrever umas considerações sobre a traição.

A relação entre a abjuração e a traição. Porque é que a abjuração é mais importante do que a traição. Ou porque é que a traição começa na abjuração.

A trivialidade da abjuração. É no momento em que quem abjura o faz com trivialidade, com sentimento de trivialidade, porque não é importante, que se abre o caminho da traição.

Abjuração de Pedro :

Depois de terem cantado o hino, foram para o monte das Oliveiras. Então Jesus disse aos discípulos: "Todos vós ficareis desorientados, pois está escrito: 'Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão'. Mas, depois de ressuscitar, eu vos precederei na Galiléia". Pedro, porém, lhe disse: "Mesmo que todos fiquem desorientados, eu não ficarei". Respondeu-lhe Jesus: "Em verdade te digo: ainda hoje, esta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes tu me negarás". Mas Pedro repetiu com veemência: "Ainda que tenha de morrer contigo, eu não te negarei". E todos diziam o mesmo.”

É nesta frase que está a chave : : "Ainda que tenha de morrer contigo, eu não te negarei". E todos diziam o mesmo.”

Todos diziam o mesmo” . Cristo nunca lhe disse “não me traias” , mas sabia que ele ia negá-lo.

Pedro é dos poucos que abjurou e depois não traiu, mas Pedro era “um homem de Pedra”. O Padre António Vieira no Sermão de S.Pedro explica a diferença :

Primeiro lhe chamou homem de pedra e depois lhe entregou as chaves, porque as chaves do Reino só em homens de pedra estão seguras. Os homens de barro quebram, os de pau corrompem-se, os de vidro estalam, os de cera derretem-se; tão duro e tão constante há-de ser como uma pedra, quem houver de ter nas mãos as chaves do Reino: Tu es Petrus, tibi dabo claves.

Pedro parou à porta da traição. Como muitos dos homens do Novo Testamento mostrava a sua humanidade pela queda. Mas se continuasse a abjurar cairia na traição e a traição deixa uma mancha moral indelével.

A principal destruição da traição é a do carácter. Não há carácter que sobreviva à traição. O traidor pode ser tudo, ter todas as qualidades, ter mesmo virtudes, mas, na volta da traição, perdeu a integridade, perdeu, mesmo que não o saiba, o respeito por si próprio.

Outro sinal da traição é o excesso de explicações, essa voz doentia de auto justificação, uma espécie de engano para consumo próprio. Todos os traidores sabem que traíram. Pedro salvou-se porque se arrependeu. Não se justificou.

*

Para além do caso de Pedro, a excepção.

No meu trabalho sobre a história portuguesa contemporânea, a questão mais delicada que se encontra é a da traição. Traição forçada pela violência, mas sentida como traição. É uma ferida que atravessa, invisível, muitos portugueses. Nós não os consideramos traidores, mas eles sentem que o foram. Talvez a maior violência que a PIDE jamais fez em Portugal foi exactamente gerar traidores, fazer de homens e mulheres íntegros, gente que se sente assim . Sobre este tabu, ainda ninguém escreveu.


12.7.03
 


CONTRA O EFÉMERO

Lá atrás está, esquecida da página visível, uma bela pintura.

O efémero é da natureza do meio, mas pode ser combatido. Pode-se sempre puxar a imagem para a frente, para que não entre aqui a maldição dos “quinze minutos “ da fama.

 


LUGARES DA DECADÊNCIA

Casino em Baku ( ou foi em Ashkabad ?)

Não é uma cave, mas parece uma cave. Neons a brilhar na rua escura : Casino Las Vegas ou semelhante. Las Vegas em Baku, a descer para o porto, cheirando a petróleo, passando pelos palácios escalavrados dos magnates do início do século, estuque a cair, passando pela ópera, uma torre otomana, no meio do lixo e dos retratos do presidente Aliev.

É uma sala pequena, poucos metros, quatro ou cinco mesas de roleta, um bar da Moviflor, em bom rigor é tudo da Moviflor, de alguma Moviflor turca. Predomina a napa preta e vermelha. Vidros, espelhos, reflexos. Junto às mesas da roleta a napa está brilhante. Mesas de plástico para pousar os copos. Muitos cinzeiros que isto é terra do Marlbourough man, para onde se retiraram as firmas de tabaco .

Mais silêncio do que seria de esperar em terras onde está sempre a tocar qualquer coisa. A televisão turca. A lambada. Outras lambadas de que já ninguém se lembra, mas sobrevivem aqui uma vida post-mortem. Silêncio, ocasionalmente algum universal “oh!” dos que ganham ou perdem. O barulho de uma slot-machine, o rolar da bola na roleta, “rien ne va plus” em azeri, em inglês.

Nunca está muita gente, mas está sempre gente. A gente da casa: os homens em fato preto gasto, as armas bem visíveis por baixo da roupa. As mulheres, nas mesas da roleta, ou servindo, ou estando em grupos silenciosos numa mesa do canto, russas, ucranianas, uma ou outra azeri, turcas, vestidas de erótica de motel dos anos cinquenta.

Bebidas ocidentais escuras numa terra dominada ainda pelas bebidas brancas, aguardentes e vodkas. Whisky, cocktails coloridos para as senhoras, Cuba livre, misturas. Baku é uma terra de misturas.

A moeda que entra e aquela em que se joga é o dólar, a moeda em que se recebe às vezes não é o dólar, qualquer cupão fotocopiado local que passa por moeda e que se recebe em sacos, liras turcas, rublos, etc.

Os jogadores não são muitos. Trabalhadores ocidentais das companhias de petróleo, muita coisa vista, muita coisa vivida, rugas, pele dura, corpos enormes que manobrar um poço de petróleo não é brinquedo. Orientais, porque há sempre um chinês, um coreano, um japonês, junto de uma mesa de roleta. Pequenos, intensos, parecendo ter decorado as últimas cem jogadas da mesa, colocam as fichas de súbito, sem dúvidas. Depois a fauna local , masculina, de bigode otomano, fato completo, brutalidade à flor da pele, mãos grossas empunhando um rolo de notas de dólar, centenas, milhares de dólares . São os que fazem mais barulho e movimentam-se em grupo
 


EDITORIAL MÍNIMO

O Abrupto foi pensado, é escrito e é publicado a pensar naqueles que o lêem e não em primeiro lugar no circuito da blogosfera. Por muita gente que “entre” nos blogues cada semana, está mais gente lá fora que não quer saber dos meios, só lhe interessa o que eles transmitem. Num certo sentido, como diriam as más-línguas, tem uma lógica de audiência. Só que é uma lógica de uma voz só. E uma lógica da liberdade.

CORREIO EM DIA

O Abrupto é para durar, por isso uma certa ordem interior e algumas regras acabam por emergir. A duração implica uma arquitectura, não é compatível com mudar as paredes da casa todas as semanas, nem com arroubos quotidianos. Se essas regras ajudam a lê-lo – séries numeradas, actualizações em anexo às notas e ligações a outros blogues que comentaram a mesma matéria, etc. – são bem-vindas.

As cartas dos leitores são uma forma qualificada de comentário. O blogue não tem comentários livres pelas razões já explicadas, mas quem tem alguma coisa para dizer usa o e-mail e tem sempre voz. Aqui coloco as críticas, em privado agradeço os elogios. Quando nas cartas – tenho neste momento cerca de 100 atrasadas e outras 100 ficaram perdidas no Hotmail – há alguma coisa que interesse a um público mais geral e os seus autores não pediram reserva, estas depois de “moderadas” do seu conteúdo pessoal, e organizadas por tema, terão aqui o mesmo lugar da fala do autor do blogue. Nalguns casos são integradas no texto das notas, noutros terão leitura à parte.

Eis algum do correio recente e atrasado.


Leonardo Ribeiro, a propósito do Liceu Alexandre Herculano, lembra que não há uma verdadeira edição de Alexandre Herculano disponível fora das edições escolares “com letra muito pequenina, sem a dignidade merecida pelo autor”.


Luísa Soares de Oliveira, a propósito do busto de Vespasiano, fala da “ perplexidade dos primeiros homens medievais perante um realismo romano, já para eles ultrapassado, que não compreendiam nem queriam imitar.”


Rui Oliveira comenta a nota sobre os noticiários televisivos

Dá a impressão (mas se calhar é mesmo assim) que o alinhamento das notícias é feito na hora e é alterado de acordo com a notícia que está a ser apresentada na concorrência. Se estão a apresentar o crime de faca e alguidar de Cebolais de Cima, então é essa notícia que passa logo a seguir para os outros perderem o efeito da novidade (também deve ser por isso que estão a passar constantemente as notícias em roda-pé). Já estou a imaginar um técnico da regie cuja única função é controlar os noticiários da concorrência e a quem o realizador recorre para decidir qual vai ser a próxima notícia a alinhar no teleponto. Só escapa o Jornal 2. Se calhar é por não haver nenhum outro noticiário a essa hora…”

Não imagine um “técnico da régie” , é uma equipa, com o realizador, de olho na “concorrência” , para introduzir o caos nas notícias.

Várias cartas (Sofia, Rui Silva, etc.) retratam a mesma impressão sentimental e “íntima” da leitura do Adriano de Yourcenar. Nem todos os livros deixam este rastro. Rui Silva lembra-se também dos

temas em que Adriano reflectia e que continuam actuais séculos depois. Como o facto de se andar mais depressa a pé do que no meio do caos de carroças existente nas ruas de Roma.”

Josef Malot pergunta-me se ponho a “hipótese do seu blog vir a ser editado, e vendido nas grandes superfícies ? “ Qual é o problema ? Do meu ponto de vista nenhum.

Rui Viana Jorge manda-me a história de “Zé” e do “Fritz”, uma fábula sobre a condição do trabalho e a deslocalização. É certamente uma história que merece “perder 10 minutos com ela”, bastantes mais minutos aliás, e é por isso que registo a recepção e adio a publicação da história e o comentário. Um dos aspectos da composição social da blogosfera revela-se na quase total ausência (salvo uma ou outra excepção de blogues de “desempregados”) de textos sobre aquele que é certamente o principal problema social de muitos portugueses – o desemprego.


Para terminar por hoje com uma carta de Luís Vieira a apelar à reedição dos Cadernos de Camus e “a transcrever de "O primeiro homem" a curta carta que Camus escreveu após ter sido galardoado com o Nobel em 1957:

19 de Novembro de 1957

Caro Monsieur Germain:

Deixei extinguir-se um pouco o ruído que me rodeou todos estes dias antes de lhe vir falar com todo o coração. Acabam de me conceder uma honra excessiva, que não procurei nem solicitei. Mas quando me inteirei da notícia, o meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para o senhor. Sem si, sem a mão afectuosa que estendeu ao garoto pobre que eu era, sem os seus ensinamentos e exemplo, nada de tudo isso teria acontecido. Não imagino um mundo com essa espécie de honra. No entanto, constitui uma oportunidade para lhe dizer o que foi, e ainda é para mim, e assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que sempre empregava ainda se encontram vivos num dos seus pequenos alunos que, apesar da idade, não deixou de ser o seu grato estudante. Abraço-o com todas as minhas forças.
 


EARLY MORNING BLOGS 7

O Comprometido Espectador propõe substituir a série dos objectos em extinção pela dos “Objectos que (felizmente) não se extinguiram” e dá como exemplo os “chocolates Jubileu” que teriam vindo a acabar com o reino malévolo dos Regina. Depois fala sobre os ditos chocolates com a mesma mistura de memória e nostalgia – o “espectador” já não comia os “Jubileu” há algum tempo – como se fossem um objecto em extinção. Não há de facto muita diferença entre os que estão em extinção e aqueles que nós não queremos que se extingam. No fundo, são só chocolates. No fundo somos só nós.

Visitem a formiga de langton para terem a apaixonante ideia de como tudo é complexo, tão simplesmente complexo.

Nos escritos do dia, lá longe na pátria, continua uma adulação beata de Lula. Tantas palavras que vão ter que ser engolidas! Só a ignorância das coisas terrestres, da vulgar história, da comezinha política, da gigantesca “luta de classes”, do Brasil, da América Latina, é que pode justificar esta reverência. Parece que o país todo resolveu ir ao Fórum Social Português e olhar para a política latino-americana, no seu melhor estilo populista e demagógico, como se fosse um modelo. A gente distrai-se e lá volta tudo ao “terceiro-mundismo”.

É uma pena deixar para trás o quadro que fica atrás.

11.7.03
 


DE LONGE PARA LONGE



Pormenor de um quadro de Kitty Kieland (1880) de uma colecção privada em Oslo.
 


PARA A FRENTE, PARA TRÁS, PARA LADO NENHUM

vão os noticiários de televisão. Todos, mas com destaque para a RTP e TVI. Começam com um tema, interrompem, arrancam com outro, interrompem, regressam no fim, agora é o “crime do dia”, depois desporto, depois política, depois sociedade, depois a “doença ou o doentinho(a) do dia”, depois a queixa dos moradores, depois volta o desporto, a hora do Guiness, outra vez política, outra vez o directo, etc. , etc. Uma hora disto e não há paciência.
 


EARLY MORNING BLOGS 6

Continua a manter-se uma acentuada diminuição dos blogues nictalopes.

O Dicionário do Diabo voltou à produção nocturna naquele tom em que Mexia é melhor quando , numa mesma frase, faz um upgrade ( de um facto ou mérito alheio) e um downgrade (na apropriação própria do facto ou observação). Exemplos recentes a dois tempos:

Upgrade : HOMENAGEM A JVP: Gosto muito do José Vaz Pereira, cinéfilo e bibliófilo de extremo bom gosto e boa educação. Mas ontem a minha admiração pelo José aumentou: encontro-o numa livraria e reparo que os funcionários ao passar dizem: «bom dia, sr. Vaz Pereira».

Downgrade : Não me importava de ter uma lápide no meu túmulo que rezasse assim: P.M. Nas Livrarias Conheciam-no Pelo Nome.

Upgrade: FASHION: As últimas três raparigas realmente bonitas que avistei traziam todas roupa da Mango.

Downgrade: Como não percebo nada do fenómeno, peço às leitoras versadas em roupinhas um comentário: será isto por acaso?

Resulta porque produz fragilidade e um vácuo e a natureza tem horror ao vácuo.


O Monologo é um dos raros diários genuínos em blogue, em que o que aconteceu, o trivial, o aborrecido, o quotidiano fatigante, rompe à força pelo meio do que se quer dizer, quando nem sempre se quer dizer o que aconteceu.


NO TEMPO EM QUE O PENSAMENTO ERA TODO INCORRECTO

Saíram uns livrinhos (o diminutivo, uma praga portuguesa, aqui justifica-se porque são pequenos) muito bem feitos, traduzidos, anotados, escolhidos, exemplo como deve ser uma colecção, editada por Elementos Sudoeste. Nunca os tinha visto no caos actual da distribuição livreira. que obriga a visitar várias livrarias muito diferentes para ter uma vaga ideia do que está a sair e mesmo assim, de vez em quando, encontra-se alguma coisa de obrigatório que já saiu há um ano e não apareceu em lado nenhum.

Comprei as edições de Max Scheler, A Concepção Filosófica do Mundo , Pascal, Do Espírito Geométrico e da Arte de Persuadir, e Maquiavel, A Vida de Castruccio Castracani da Lucca.

Este último, organizado e traduzido por Carlos Eduardo Soveral, colecciona alguns pequenos textos de Maquiavel sobre o poder como praxis e não theoria , ou seja pela astúcia, pela intriga, pela espada, pelo veneno, pela força, uma lembrança preciosa da origem do poder, do poder político. A biografia de Castruccio tem aquela virtude dos textos clássicos que é o de nos poder dizer com a clareza inicial, coisas que repetimos depois sempre muito pior.

Veja-se, como lição preciosa para os nossos snobes que andavam embevecidos com as virtudes do “velho dinheiro” e gostavam de apoucar os “de baixo”, como Maquiavel lembra que

todos ou a maior parte dos que neste mundo levaram a cabo grandíssimos feitos e , entre os demais do seu estado se tornaram excelentes , tenham tido principio e nascimento baixos e obscuros, ou fora de todo o favor da fortuna ; porque todos ou foram expostos às feras ou tiveram pai tão vil que, na vergonha disso, se fizeram filhos de Jove ou de qualquer outro deus

Castruccio dizia que se pudesse “vencer por fraude”, o preferia a “vencer por força” , “porque dizia que é a vitória, não o modo dela, o que traz a glória”. Quanto ao politicamente incorrecto aqui vai um exemplo referido ao próprio Castruccio :

Nenhum foi mais audaz a entrar nos perigos, nem mais cauto a sair deles: e costumava dizer que devem os homens tentar todas as coisas e com nenhuma se atemorizar, e que Deus é amador dos homens fortes, porque se vê que sempre castiga os impotentes com os potentes.”

10.7.03
 


DE NOVO DE VOLTA A CAMUS (Actualizado)

Contrariamente àqueles que pensam que me distraio muito com os blogues, que “perco tempo” , ou até que não cumprirei as minhas obrigações por causa dos blogues, nada disso acontece. Escrever (e ler) é uma parte tão constante do que faço que não me custa nada manter o Abrupto. O único preço que “pago” é o tempo que ganho por não achar muito interessante a vida social, nem o exercício da má língua colectiva, actividades que passam por “diversão” nos nossos dias . Eles não sabem, nem sonham como me divirto.

Mas hoje distrai-me. Não fiz o que queria e a culpa é do blogue, do blogue de Camus. Peguei nos Cadernos, que tinha lido, segundo uma nota a lápis que lá estava num deles, bem dentro do século passado , em Fevereiro de 1968 em Braga, e não os consegui largar. Não há página que não seja fascinante, que não tenha mil ideias para andar para a frente, umas que Camus desenvolveu, por exemplo no Mito de Sísifo e no Estrangeiro , outras que ficaram pelo caminho como seu projecto de escrever um D. Juan . A minha tentação era criar um novo blogue e pôr os Cadernos em linha.

Depois lembrei-me de melhor. Que eu saiba, os Cadernos estão esgotados há muitos anos e não há versão portuguesa acessível. Não sei como é com os direitos de autor. Não quererá o nosso editor fazer uma nova edição com os textos integrais ou uma antologia, ou excertos seguidos de comentários por gente dos blogues literários, filosóficos, religiosos, políticos , que poderiam escolher determinadas partes e fazer uma espécie de hiper texto? O tipo de escrita de Camus e dos blogues é comunicante. Dava um grande livro e até podia ser feito em linha, com um responsável, ou uma equipa e um blogue dedicado e moderado e depois ser publicado em papel.Penso que seria uma experiência inédita.

*

Nelson de Matos já respondeu nos Textos de Contracapa.
Jose Carlos Santos que me descobre as gralhas ( e os erros) todas, verificou que faltava um ponto de interrogação (já lá está) e lembrou um texto de Woody Allen chamado «Reminiscences: Places and People» que termina com esta passagem:

"Maugham then offers the greatest advice anyone could give to a young author: "At the end of an interrogatory sentence, place a question mark. You'd be surprised how effective it can be."

Obrigado.

 


HÁ SEMPRE UM BLOGUE DESCONHECIDO

Leia-se este magnifico blogue :

Eisenstein e as Festas da Morte no México . As mascaras macabras para divertir as crianças, as cabeças de mortos em açúcar que eles terrincam com delicia. As crianças riem com a morte, acham-na divertida, acham-na doce e açucarada. Assim os pequenos mortos. Tudo termina em “Nossa amiga a Morte.”

*

A mulher do andar de cima suicidou-se atirando-se do pátio do hotel. Tinha 31 anos, diz um locatário, é suficiente para viver e, se ela viveu um pouco, podia morrer. No hotel, a sombra do drama continua ainda a pairar. Ela descia às vezes e pedia a dona da casa para a deixar ficar para jantar. Beijava-a bruscamente - por necessidade de uma presença e de um carinho. Aquilo acabou com uma ferida de seis centímetros na testa. Antes de morrer, ela disse: “Enfim!”

*

Paris. As árvores negras no céu cinzento e os pombos cor do céu. As estátuas na relva e aquela elegância melancólica.. O voo dos pombos corno um bater de roupa que se desdobra. Os arrulhos entre a relva verde.

*

Halles - Paris. Os pequenos cafés as cinco horas da manhã - o nevoeiro nas vidraças - o café a escaldar …”



Foi escrito por Camus e são os seus Cadernos (cito da edição em que os li na Colecção Miniatura dos Livros do Brasil). São três volumes sempre assim , sempre em tom de blogue. Alguém , de que não me recordo, citava Camus como desejando escrever um blogue, mas a verdade é que ele escreveu um. Se o pudéssemos ler hoje, ninguém notaria a diferença para além da qualidade.
Talvez isto contribua para responder à pergunta de Manuel Alberto Valente - "não será que todo este mundo das novas tecnologias nos rouba tempo para outras coisas que, apesar de tudo, continuam a ser mais importantes?".

É como em tudo, mais o conteúdo do que a tecnologia. Ou há alguma coisa para dizer ou então é o "o não-ter-nada-para-dizerismo e o ter-que-dizer-qualquer-coisismo e o julgar-que-o-que-dizemos-tem-algum-interessismo" . como diz o opiniondesmaker..
 


LER DUAS VEZES 5

Não é bem ler duas vezes, é olhar para o mesmo livro a partir de uma enorme distância. O livro é o Adriano de Marguerite Yourcenar, antes de ser o Adriano da Yourcenar.
Durante muitos anos um dos livros que oferecia aos mais intímos , como uma oferta especial porque reveladora, era o Adriano. Era barato, estava numa edição esquecida da Ulisseia que se encontrava nos monos da Feira do Livro do Porto. Tinha uma capa castanha de Sebastião Rodrigues, fora publicado numa colecção que se chamava “Vidas Apaixonantes” e o livro tinha o título A Vida Apaixonante de Adriano. Reparo agora, com alguma surpresa, que a tradução era de Maria Lamas.
Era um livro em que ninguém reparava, os leitores comuns da época, que seriam hoje leitores incomuns, desconheciam completamente a senhora e o livro. Por isso oferecê-lo era oferecer muito. Lendo-o o meu entusiasmo não é novidade para os dias de hoje e, movido por esse entusiasmo, escrevi a Yourcenar. O Eugénio de Andrade tinha-se correspondido com a Yourcenar e ofereceu-me um envelope manuscrito com o mítico endereço. Yourcenar respondeu-me com bastante afabilidade e paciência.
Alguém imagina Yourcenar no limbo dos livros?
 


SOBRE PEDREIRAS (Actualizado)
Descontando um vício que ocasionalmente tenho verificado na blogosfera, a tendência para tomar tudo à letra e responder a coisas absurdas que ninguém disse, a minha nota sobre o abuso das pedreiras motivou alguma discussão. Na verdade, não me passa pela cabeça “acabar com as pedreiras” (embora tivesse falado de “movimento contra as pedreiras” o que não deveria ter feito), mas chamar a atenção para alguma coisa de selvagem e irrecuperável que destrói um pouco de Portugal todos os dias. Se a maioria dos blogues não fossem lisboetas, estou convencido que a discussão seria maior.


Repito. As pedreiras quando vistas por cima de avião são impressionantes. O topo dos montes entre Leiria e Lisboa, onde não há uma aldeia e às vezes mesmo quando há, à sua volta, tem um buraco amarelo que se estende como um tumor. Um leitor do Abrupto, João Miguel Amaro Correia, identifica o mesmo problema e no mesmo local :

há um troço, na nacional 1, que me incomoda mais que todo o resto da estrada por ser aquele que acho paradigmático da forma como olhamos para o território (todos: cidadãos, autarquias e governo centra): nem mais nem menos que o percurso entre a Batalha e Rio Maior. Este troço coincide com o maciço calcário das serras de Aires e Candeeiros. Donde, na lógica do "aproveitamento dos recursos naturais" se foram escavando buracos de pedreiras ao longo de décadas. Sem o menor controlo, umas activadas outras desactivas, e estas a deixarem a paisagem como se nada fosse. Não sei se será uma questão de respeito ou sequer de se lembrarem que o buraco que lhes deu riqueza pertence a um recurso que se esgota, do qual é preciso cuidar... é de facto exasperante a imagem que lemos da nossa paisagem.

De avião podem-se ver as pedreiras em actividade e as que estão abandonadas. Há várias que se percebe estarem abandonadas e nenhuma está recuperada. Pode ser que haja, não se vê nenhuma. Fica o buraco, as perigosas lagoas de aguas pluviais, a fealdade à volta.

Do ponto de vista da paisagem, já destruída por mil e uma aberrações e continuando a ser destruída todos os dias, o que acontece é irrecuperável. Dou um exemplo que conheço bem de uma série de colinas para lá de Rio Maior que se vêem de uma grande distância e que são parte da paisagem de muitos milhares de pessoas à volta. Funcionam como o horizonte visível, pela sua elevação. De repente, o topo do monte, mudou de cor, ficou amarelo e castanho em vez de verde e rapidamente alastra como uma ferida pelo monte a baixo, ramificando-se como uma metástese. Todos os dias aumenta e milhares de pessoas, umas indiferentes outras desgostosas, passam a ter uma ferida à vista. Contrariamente ao que alguém disse num blogue, as pedreiras não estão em sítios escondidos, estão muitas delas à vista de toda a gente.


Parece que, numa das suas viagens de avião, o eng. Guterres teve a mesma impressão de devastação ao ver a paisagem e incentivou legislação regulamentadora da “extracção de inertes" que hoje estaria a ser considerada demasiado severa e não estaria a ser aplicada. (esta e outras informações estavam numa carta que se perdeu e a que gostaria de ter respondido). Que o que devia ser aplicado, esteja ou não esteja na lei, não está a ser aplicado entra pelos olhos dentro,

Nós não somos tão grandes assim, tão ricos assim, que nos demos ao luxo de nos empobrecer, segundo a segundo, apenas porque é mais fácil e mais barato ir tirar pedras naquele sítio ou noutros semelhantes. O valor do monte para as actividades económicas da região é muito maior sem a pedreira do que com ela. Adam Smith falou da “mão invisível” e não da garra visível.

*

Sobre esta nota ver comentários de A Causa Liberal .

 


EARLY MORNING BLOGS 5

Continua a diminuição sazonal dos blogues nictalopes.

Um deles, precioso , voltou. O Almocreve das Petas fala de livros e de livros sobre livros, noticiando a saída do Boletim Bibliográfico do Livreiro-Antiquário Luís Burnay . Para quem gosta dos ditos é uma festa.


O opiniondesmaker , mas que nome mais complicado ! , tem a frase mais certeira de ontem na blogosfera :

"Pior que o umbiguismo e o Pipismo, são o não-ter-nada-para-dizerismo e o ter-que-dizer-qualquer-coisismo e o julgar-que-o-que-dizemos-tem-algum-interessismo."

9.7.03
 


VESPASIANO



Nas estátuas os romanos olhavam para os homens, os gregos para os deuses. .Este busto é uma das minhas estátuas romanas preferidas. Retrata o imperador Vespasiano, um bom imperador.

Se olharmos para o mármore está lá o homem todo, o soldado, o administrador, uma face forte mas plebeia. Vespasiano tinha origens mais humildes do que os outros imperadores. Não só nunca o escondeu, como o apresentava com orgulho. Suetónio conta que mantinha intacta a casa de sua família, com os objectos todos no mesmo sítio, para não se esquecer da sua infância. Não tinha prosápias e era de uma seriedade sem extravagâncias. O homem é forte que nem um touro, mas desprovido de ambição e de crueldade.


Vespasiano pôs em ordem os conflitos militares e civis, restaurou as instituições e era bom nas finanças, tendo mesmo fama de avarento. Também era supersticioso. Mas a sua face apesar de marcada pelo tempo, continua aberta, serena, pacífica, quase bondosa. Suetónio dizia que andava sempre com ar de preocupado, mas neste retrato há um vago rictus que pode também ser um sorriso.
Na sua morte, ironizou: “devo estar a tornar-me um deus” … Estava.
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 12

Mais contribuições dos leitores do Abrupto para a lista dos objectos, hábitos, experiências em extinção, que são elas próprias retratos da nossa memória. Infelizmente algumas perderam-se com o desastre da caixa do correio do meu endereço em extinção no Hotmail.


1) “O chocolate "Coma com pão", em cuja embalagem se via um tablete metida dentro de uma carcaça. Sempre achei inusitada a sugestão de comer uma sandes de chocolate. Com ou sem pão sabia-me muito bem.” (Mário Filipe Pires)


2) Régua de cálculo:

Este maravilhoso e extinto? equipamento de cálculo, composto por duas réguas fixas e uma deslizante entre elas, antecessor próximo das vulgares máquinas de calcular ( que todas pessoas usam sem saber como se desenvolvem os cálculos para os resultados apresentados), permitiam elaborar projectos de engenharia disponibilizando “ábacos” para as quatro operações aritméticas, cálculos de tangentes, senos e cossenos relativamente a ângulos e, tantos outros. Era, porque creio caiu em desuso, aquela “máquina”. (Rui Silva)


3) Vários objectos da memória de José Paulo Andrade


Os marcos quilométricos das estradas de Portugal (eram muito mais informativos que os actuais; ainda se podem ver bastantes nas estradas menos percorridas).

Associados a estes, os marcos dos 100 metros. Em criança divertia-me nas viagens de Guimarães para o Porto, via Santo Tirso a contar estes pequenos marcos e confirmar o quilómetro nos grandes marcos.

As barreiras de pedra nas estradas, fazendo a vez dos actuais "rails" metálicos.

As casas dos cantoneiros da estrada. Na estrada Braga-Arcos de valdevez existe uma curva particularmente perigosa que toda a gente conhece como "curva do cantoneiro". Já não passo por lá desde que abriu a auto-estrada até Ponte de Lima...

Os sinaleiros com a sua farda característica. Lembro-me deles no cruzamento da Areosa, à entrada do Porto...

Os pneus dos carros que estavam sempre a furar!

Os motores simples dos carros que toda a gente sabia mexer e consertar (ou não!).

O gesto de "fechar"(ou "abrir") o ar no manípulo respectivo, quando se ligava o carro, até ao motor "aquecer".

O comboio a vapor que ainda vi a passar no ramal Fafe-Gumarães (já inactivado há muitos anos). Lembro-me de uma vez um turista, algures nos anos de 1973-74 numa paragem de passagem de nível, a sair apressadamente do carro para fotografar um destes exemplares. A referência do ano decorre da crise petrolífera que levava a minha mãe a tentar meter gasolina nas estações de serviço nas redondezas de Guimarães.

Os sinais de trânsito em que os peões são representados por um "senhor" com chapéu com um design arcaico
!”

 


POR ONDE COMEÇAR … (Actualizado)

Pelo Companhia de Moçambique outro blogue que tem o mérito de não falar sempre das mesmas coisas.

Pelo mérito do Picuinhices que faz um trabalho precioso de liberal contradição com os lugares comuns e mentiras circulantes.

É por tudo isto que concordo com o Blog de Esquerda, a blogosfera está a melhorar :

"É um sentimento estranho. Volto a casa, após duas semanas noutra cidade (com um acesso mais limitado à internet), e parece que não reconheço a minha própria casa. Leia-se: a blogosfera. Alguém mudou os móveis de sítio, deitou fora a pilha de jornais que estava ali no canto e trocou a ordem dos talheres nas gavetas da cozinha. O corpo da casa é o mesmo, claro, mas está diferente. Foi ampliado. Tem mais caves, mais sótãos, inúmeros acrescentos, projecções, anexos no quintal. Alguém deitou paredes abaixo, construiu novos corredores e mobilou quartos vazios que nunca tinha visto antes. Há muito mais portas que apetece abrir todos os dias, essa é que é essa. E eu vou precisar de um porta-chaves maior. Além de uma bússula."

Pela crise do primeiro mês: vários blogues têm uma crise do primeiro mês. Começam com grande entusiasmo e, ao fim de um mês, interrogam-se. É natural que uns acabem e outros mudem. Mas é interessante saber se os blogues mais antigos também tinham essa crise ao fim de um mês ou se era mais tarde. Ou se não tinham. Saber se a data em que se entra para a blogosfera conta para a duração do blogue ou para a sua "crise existêncial".

O que é que aconteceu à Piolheira ? Pelos escassos dias em que existiu percebia-se que sabia o que estava a fazer.

Pela censura. Um aspecto interessante de algumas reacções ao que escrevi sobre os incidentes com Berlusconi é a clara, evidente, quase explicita, sugerida vontade de censura. Aquilo que escrevi irritou muita gente que preferia que o incidente Berlusconi não fosse conhecido no contexto, mesmo quando eu nunca o justifiquei pelo contexto. Que bom que seria, que cómodo, se eu não tivesse escrito o que escrevi, ainda por cima citado pelo Público.

Há um aspecto sinistro de algum debate em Portugal que é a vontade de censura do outro. Não se trata de critica-lo, de discordar, de até irritar-se com o que ele diz, trata-se de ter uma vontade indisfarçável de que ele não fale, de que ele não possa falar. Há gente que muito mais do que irritar-se com o que eu digo, irrita-se por eu o poder dizer. Há muita gente, demasiada gente, que não gosta mesmo da liberdade, que se dá mal com a liberdade.

 


JE REVIENS

como no perfume.
Essa excelente máquina para mostrar o sentido do tempo: abre-se o frasco e as moléculas saem alegremente, nem a energia de um tornado as faria voltar taciturnas ao frasco. Entropia.

7.7.03
 


ATENÇÃO AO CORREIO - MUDANÇA DE ENDEREÇO

Durante uns dias esta nota encabeçará o Abrupto, as novidades vêm a seguir.

Existe um problema com o meu endereço do Hotmail. Pedia a todos que me escreveram nos últimos dias que enviem de novo a correspondência para este endereço : jppereir@mail.telepac.pt e cancelassem o endereço do Hotmail.

É provável que tenha também perdido a correspondência não respondida para o Abrupto. Quem tiver paciência para me enviar de novo as cartas mesmo mais antigas, agradeço. (Entretanto já recebi algumas, mas poucas).

Perderam-se contribuições para os "Objectos em extinção", para o debate sobre pedreiras e estradas, e muito mais - cerca de 150 cartas. Fica-me de lição sobre a segurança do Hotmail.



 


TEXTOS PRÉ-BLOGUE

Ter um blogue, já o disse, era uma coisa que eu queria ter no meu liceu. A expressão “no meu liceu” mostra já como é história antiga e o Liceu foi o Alexandre Herculano no Porto. No meu liceu havia um jornal , que formalmente pertencia à Mocidade Portuguesa (não podia haver quaisquer publicações que não fossem da Mocidade) e que tinha pretensões literárias, o Prelúdio. Régio tinha escrito um elogio do jornal e um dos seus directores antes de mim fora o Manuel Alberto Valente que agora também tem um blogue. .

Quando eu fui director do Prelúdio aconteceram as mais bizarras conversas de censura feitas pelo reitor. O reitor era um professor de alemão que estudara na Alemanha nazi, e digo isto sem estar a sugerir que era pior ou melhor do que qualquer reitor de um liceu importante da época - o Alexandre Herculano era um liceu importante. Vistas bem as coisas, tendo em conta o que pude fazer, o homem até devia ser muito liberal. Na altura não achava nada disso, a personagem era tenebrosa e quando me “chamava” à reitoria e tinha que atravessar os corredores onde era proibido um aluno passar, para entrar para a sala por baixo das instalações onde ele vivia – o reitor vivia no Liceu com a família - não achava graça nenhuma.

Esses incidentes com a censura do reitor são hoje inimagináveis para qualquer pessoa nascida depois da década de setenta. Recordo-me de três.

O primeiro era habitual e comum: publicara no Prelúdio uma “Homenagem a Lopes Graça” e o reitor protestou porque Lopes Graça era comunista e não se lhe podiam fazer “homenagens”.

A segunda já era mais interessante e reveladora. Publicara uma reprodução de um quadro do período azul de Picasso que tem um rapaz nu e um cavalo. O reitor explicou-me que isso era inadmíssivel porque o jornal também era lido pelas meninas do Liceu Rainha Santa, que era ao lado, e isso era “indecente”. Eu fiz que não percebia e perguntei-lhe se era porque o cavalo estava nu. Pôs-me na rua com ameaça de uma suspensão, que felizmente não se concretizou.

A terceira é ainda mais interessante porque tinha a ver com a experiência alemã do reitor e na altura não a percebi. Tinha publicado uma página um pouco pedante com “prosopoemas” , alguns dos quais só em minúsculas , à e. e. cummings , percebem ? O reitor disse-me que isso também não era possível porque “desrespeitar as regras que obrigam às maiúsculas era uma manobra dos comunistas” . Eu sabia que os “comunistas” faziam coisas inomináveis, como comer criancinhas, mas comer maiúsculas desconhecia.
Só muitos anos depois vim a perceber o que ele estava a dizer. O reitor estivera na Alemanha na altura do ataque nazi contra a “cultura degenerada” e um dos alvos foi a Bauhaus. Um dos aspectos do grafismo da Bauhaus, repetido em muitas revistas literárias e mesmo políticas da época, era o uso de minúsculas. O bom povo alemão que estima os seus nomes próprios e que escreve alto os seus substantivos estava a ser atacado pelos “degenerados” das minúsculas.

Era por estas e por outras que eu gostava de ter tido um blogue, preparei-me toda a vida para ter um blogue, mesmo quando eles não existiam e trago essa ancestral vontade intacta, sem um desvio de um milímetro. Por isso vão saber o que significa persistência, teimosia, purpose. Quem quer lê, quem não quer não lê. É a beleza da coisa.

(Este texto introduz uma selecção esporádica de textos que publicarei no Abrupto e que foram escritos para um blogue imaginário, alguns já publicados, outros não. Como este monstro está sempre com fome, alguns alimentarão a fome quando o autor estiver na vagabundagem por cima das nuvens. )

 


EARLY MORNING BLOGS 4

Mas que surpresa! Um pouco mais de Sul é escrito por JCB , um homem de Boticas, que me escreve sobre o “destino dos meus alunos”:

Eu não fui seu aluno (a minha irmã foi, e fala às vezes disso). Mas, para este efeito, é como se fosse. E por isso aqui estou a dizer-lhe que vivo no Algarve. Imaginava isso dos seus alunos de Boticas? Que pudessem um dia viver no Algarve? Pois é assim. Mas essencialmente escrevo-lhe para lhe dizer que, a oitocentos quilómetros de distância, não posso deixar de ir a Boticas de tempos a tempos, em intervalos curtos, como quem precisa de regressar a casa para não morrer com falta de ar. Não sentia isso - que os seus alunos eram dali, e não poderiam já ser de mais lado nenhum?
(…) O jogo é este: os textos assinados jcb têm qualquer coisa ainda de quem é de Boticas? Ou já não? Às vezes temo que já não...
"

Os alemães tem uma palavra para isto: heimatlos.


Mas o JCB diz uma coisa perigosíssima no blogue:

PRIMEIRO DOMINGO DE JULHO Se não fosse o Algarve, o que seria desta gente? E cabiam aonde?”

Donde cabem não sei, mas por favor não lhes diga onde é Boticas, arranja-se aí um bocado mais de espaço, uma plataforma no mar como os japoneses fazem , ou uma coisa assim do género para os manter no Algarve.


A descrição do jantar da União dos Blogues Livres em vários blogues foi feita ao modelo de uma coluna social, ao estilo do 24 Horas e da Caras (espero que sejam os exemplos certos). Ninguém obriga ninguém a ter jantares sérios e aborrecidos e com conversas profundas, bem pelo contrário, mesmo no âmbito da luta contra os “comunas” e pela “liberdade”. Mas também tanto Carlos Castro não favorece lá muito a causa.

Vá, não se zanguem. Faz parte do nosso bom liberalismo que quem anda à chuva molha-se. É uma coisa de que eu tenho muito treino. Da chuva.


Acabou o fim de semana, aumentaram os blogues nictalopes.
 


ENGANO



Este é um quadro antigo e não moderno . Foi pintado no século XVII por Cornelius Norbertus Gijsbrechts , especialista em trompe d’oeil, ou naquilo que se chamava “betriegertje “, os pequenos truques para o olho. O quadro não foi feito para estar dependurado numa parede, mas sim deixado ao acaso num mesmo sítio onde um quadro de costas poderia ser deixado. O quadro apela a uma função – enganar. A pintura “realiza-se” quando alguém a vira por engano e descobre que a verdadeiro reverso está do outro lado.

Como se vê nos dias de hoje, o olhar é o sentido em que mais confiamos. Acreditamos no que vemos, como S. Tomé, e é por isso que a televisão nos engana tão facilmente. É também por isso que um mundo assente na imagem, na imagem a três dimensões movimentando-se na quarta, dentro do nosso cérebro ou nas paredes da nossa casa, produzida por devices cada vez mais próximos da nossa biologia, põe seriamente em risco a individualidade, a possibilidade da individualidade. Este mundo, num futuro muito próximo, estará na nossa casa, no nosso corpo quando as televisões forem as paredes da casa, os telemóveis estiverem no nosso ouvido ou colados aos nossos olhos, ou recebamos imagens directamente no cérebro. Tudo tecnologias actuais, só ainda não comercializadas.

O nosso olhar é construído pelo que vemos, pelo que sabemos e pelo que desejamos ter. O nosso olhar depende vitalmente da nossa experiência e das nossas literacias. Quando olhamos para o quadro de Gijsbrechts e o vemos como moderno, nesse olhar está, por exemplo, Magritte, os hiper-realistas, uma parte da história da pintura dos nossos dias que lhe dá “modernidade”. Para o seu autor podia ser uma brincadeira, um virtuosismo elegante e engraçado, para nós é uma metáfora sobre a realidade, é mais sério. Provavelmente para Gijsbrechts também o era, dado que ele, como os seus contemporâneos, usava as naturezas mortas para prefigurar a ilusão do mundo e da vida. Um tema recorrente era o da Vanitas, o da decadência de todas as coisas por detrás do engano da eternidade. No meio das mais opulentas imagens de frutas, cálices de cristal, caça, pão, colocavam, meia escondida, uma mosca. Para compreendermos.

6.7.03
 


MESTRE HEGEL SOBRE A QUANTIDADE E A QUALIDADE

Mais importante que o número de blogues “de direita” ou “de esquerda”, são melhores discussões. Por isso sejam bem vindos os que vem da esquerda, da direita, de todo o sítio, do céu ou do inferno, à trituradora de palavras.

Esfrego as mãos e mantenho a pólvora seca à espera da Causa Nossa, o blogue da Cosa Nostra Neo Socialista Independente e Intelectual. São normalmente aqueles em que dá mais gosto bater (metaforicamente claro), Nem sabem no que se vão meter. Crestas !
 


PROBLEMAS TÉCNICOS

fizeram com que os "early morning blogs" e o resto ficassem dependurados no vazio até agora.
 


JORGE LUIS BORGES

devia gostar de blogues.


Parece um haikai. Ou o principio de um limerick.
 


EARLY MORNING BLOGS 3


No Terras do Nunca , como é que eu podia não ser quem sou ?
É um bocado a história do nómeno e do fenómeno.

Como o Conta Corrente

"Preocupa-me a ausência do Vasco Pulido Valente, no DN. “Por motivos pessoais, Vasco Pulido Valente não escreverá a sua crónica habitual nas próximas semanas”. É o que se lê, há semanas. Temo que seja a puta da saúde (para não falar na puta da idade). Esperemos que não. Volta Vasco. Fazes muita falta."

A Carta Roubada mudou de cor , está mais alegre. Ainda bem. Fala da fala/dança. Mas quando não se dança como é que se fala?

A Montanha Mágica, a quem ainda devo parte de uma conversa, é para mim o protótipo do blogue calmo. Fala das coisas da cultura de forma calma, contrastando com os blogues culturais excitados que são a regra. E com a mesma placidez anuncia que o Diário de Notícias vai publicar esta semana por 4,25 euros, o primeiro livro da tetralogia que Thomas Mann escreveu sobre José filho de Jacob, José e Seus Irmãos.

As férias começam a fazer os seus estragos. Regista-se uma diminuição acentuada dos blogues nictalopes.


5.7.03
 


DECÊNCIA


O Abrupto incita-me a continuar. Fala-me do macro e tem razão em falar dele, do macro. Infelizmente para mim – e para lhe responder tenho de pessoalizar – este país que temos e fazemos, dá cabo de mim todos os dias, encarrega-se sempre de me fazer amochar. Cá, o comportamento responsável é um comportamento freak. (….) Percebe, não percebe?
(…)
A discussão que tenho comigo mesmo é sobre a educação que devo dar aos meus filhos. Devem eles ser educados segundo o princípio do respeito ao outro e das regras mais elementares da civilização, ou, devem eles aproveitar a maneira portuguesa de fazer as coisas e estacionar no lugar dos deficientes se é só para ir comprar fiambre?
(…)
Mas não deixo de me perguntar se este macro vale a pena. Quer dizer, eu sei que não vale a pena, o que quero mesmo saber é bem mais simples. A saber, se alguma vez o meu modus vivendi será caucionado pelas circunstâncias como mais correcto. Duvido e aguardo que, pelo menos, os meus filhos saiam mais à mãe, igualmente exigente, mas bem menos angustiada
.”


Caro ignoto amigo do Guerra e Pas como eu o percebo.

Nestas coisas só se pode responder em bens, em cash como agora se usa. Aqui vai o meu único cash, palavras, sob a forma de um fragmento de um texto que já escrevi há uns anos, antes de me meter numa daquelas actividades que já se sabe irem correr mal, em que se despendem inúmeros esforços que se antevê inúteis, para tentar fazer as coisas bem e ninguém absolutamente quer saber se as coisas se fazem bem ou como de costume., mal.

São dez horas da manhã do dia de Natal . Escrevo este texto no Porto, frente à Foz do Douro , numa cidade fechada e deserta . Não há vivalma nas ruas. Está um dia cinzento e chove aquela chuva que no Norte até à Corunha se chama morrinha. A morriña da nossa irmã galega Rosalia .
Para quem conhece o sítio , a Foz do Douro é um local trágico , local de mortes , suicídios e naufrágios . Basta olhar , como estou agora a olhar , para as vagas cinzentas que se abatem sobre a margem , sobre o molhe e que entram rio adentro . Aqui as vagas puxadas pelo vento rebentam contra o rio , como se o rio fosse sólido , feito de rocha , como aliás suspeito há muito que o Douro é . Os pescadores da Afurada tem muito medo desta barra e , lá longe do outro lado , escondem-se também em casa , deixando os barcos em terra . No meio da espuma e da rebentação, oscila perdida um boia vermelha marcando o estreito canal entre a margem do Douro e o Cabedelo . No Cabedelo matou-se pelo fogo um companheiro meu dos anos 60 que não sabia viver nos anos 80 .
Na margem de cá , sobrevivem pescadores , gente dos estaleiros com profissões que estão a morrer : carpinteiros de navios , conhecedores do cavername do “N. S. da Agonia” , do “Maria Luisa” , do “Cravos de Abril” . À noite há aqui namorados , carros de namorados onde o rio também roubou algumas vidas . E, se é verdade que os pardais são psicopompos , transportadores das almas dos mortos , também há aqui pardais , à chuva , pousados na erva a comer abstractos insectos , enquanto por cima voam baixas as gaivotas . Está tudo demasiado certo, parece ficção , mas é assim que está . A natureza porta-se bem de mais quando resolve fazer paisagens para o espírito.
Mas é o mar e o rio que aqui mandam tudo . Não há mar como este e este é o “meu” mar, o resto é um lago onde se toma banho lá no fundo do país. É o mar dos pescadores, que acontece na Nazaré, na Ericeira , em Peniche , em Sesimbra , o mar cão , o mar maldito , o mar que há-de “comer” Espinho , o único mar que é como o Mar do Norte . Que é o mar do Norte. É com este mar que sempre me aconselhei, falho de querer dos homens respostas que o mar dá com mais dureza, cruel como um cristal, certo como tudo está agora . Com ele me aconselho para saber que espécie de hubris transviada me faz fazer o que eu faço , neste mundo do poder desprovido de qualquer milk of human kindness , feito do pior da pequenez , sem grandeza nem dimensão , poeira da poeira , mas que é o da imperfeição da democracia sem o qual – eu sei – os homens seriam servos .
Não , meus caros críticos , pela inteligência que essa me aconselharia prudência . Não é pela prudência, que essa me aconselharia distância. Não é pela emoção que essa me aconselharia recato. Não é pelos proveitos que esses aconselhariam melhor uso dos recursos. Não é pela fama que essa eu sei ser fácil e de pouca valia. Não pelo poder, que esse eu sei ser vão , pequeno e fugaz . Não é pela grande moral , que essa eu sei ser intima , indizível e imponderável . Não é pelo que se ganha, porque não vale o que se perde.
Mas continuarei. Porque é pela decência, pela simples moralidade dos homens comuns, pela moralidade que nasce da intima convicção de que há coisas certas e outras erradas . Eu sei que isto hoje parece arrogância, autismo , intolerância , mas isso é fruto dos tempos que os homens estão a habituar mal
.”
 


EARLY MORNING BLOGS

No Guerra e Pas faz-se uma pergunta que, mesmo que de uma forma diferente, aflora num ou noutro blogue:

Este blog começou há um mês e duvido que dure outro. (…) Mais do que tudo, não será um blog, (…) , uma manifestação essencialmente efémera? Uma paixão de Verão? Um brinquedo que se recebeu no Natal? Começamos entusiasmados, conseguimos atrair atenções o que nos reforça a estamina, amadurecemos e não começamos imediatamente a murchar? Estando ganho o microdesafio, que mais resta?”

O macro. O mundo continua lá fora e quanto mais vozes se ouvirem melhor. Eu sou um liberal, acredito na lei dos grandes números, na “mão invisível”. Há virtudes na cacofonia, cada voz a menos empobrece.

À BLADE RUNNER

Tenho uma imagem, à Blade Runner admito, que tanto pode ser uma utopia , como uma distopia, da terra como um enorme campo em que das casas sai, como no passado em que havia fogo em casa, um fio de fumo, direito ao céu, sem vento. No meu Blade Runner do mesmo campo, das mesmas casas, da mesma lonjura a perder de vista, em vez de fumo saem fios de voz, linhas de letras, solitárias, tão precárias como a “alminha” do “animula vagula blandula” , dizendo tudo ou dizendo nada, procurando tudo e não encontrando nada. É isto que é a nossa esfera.

Na utopia essas vozes falam do mundo, mesmo quando falam de nós. Na distopia, falam só de nós, produto de uma mesma máquina de solidão que, invisível, atravessa esse momento em que alguém sozinho, ás quatro da manhã, olha para um ecrã de computador. Não é simples, porque o ecrã é um espelho e às vezes responde às perguntas.

Se deixar a imaginação trabalhar não custa antever como John Le Carré faria um bom livro policial sobre um blogue estranho, escrito por alguém que usa os escritórios da China Traditional Rugs and Crafts, em Xangai, uma empresa sem registo em lado nenhum, e que parece conter instruções cifradas, “em linguagem comum” (os criptólogos sabem o que é), para construir uma bomba biológica. O leitor de blogues do MI5 fez uma nota de serviço que passou despercebida…
Ou um livro nocturno como o Crash, e, onde estão os acidentes e o seu culto sadomasoquista, está uma comunidade hard que se reúne algures num canto da Internet para tornar real o que escreve nos blogues …
Ou um livro de ficção cientifica sobre um blogue obscuro, lido por um obcecado professor de filosofia de Oxford, especialista no idealismo alemão, e que descobre que Salomon Maimon autor dumas apreciadas Kritische Untersuchengen über den menschlichen Geist oder das höhere Erkenntnis- und Willensvermögen, dito de outra maneira umas “Investigações Críticas sobre o Espírito Humano ou a Faculdade superior do Conhecimento e da Verdade” , publicadas em 1797 , tinha a “faculdade superior” de estar vivo em 2003 e por isso não podia ser humano …
Ou, se Borges fosse vivo, encontraria aí um “sendero” …

Aposto dobrado contra singelo que tudo isto vai ser escrito.

4.7.03
 


SOBRE A GUERRA CIVIL DE ESPANHA

Saudei nos Estudos sobre o Comunismo a aparição dos Estudos sobre a Guerra Civil de Espanha. No entanto, tenho sérias objecções a que seja compatível “uma perspectiva científica mas não academicista”, como diz o seu autor, com a ideia que a guerra civil de Espanha foi “o elemento enformador do combate histórico entre fascismo e socialismo” .

Do mesmo modo é contestável a sua descrição , mesmo como elemento de uma “memória colectiva”, da “romantização última

do derradeiro confronto – face a face, corpo a corpo, bala a bala – entre a expressão totalitária das velhas forças conservadoras e a precursão visionária do cunho libertador da «Guardia Roja»

Esta “romantização”, aliás presente nos textos escolhidos no blogue, é incompatível com uma apreciação e o estudo científico da guerra civil espanhola. Hoje, que já se tem acesso a uma massa documental considerável, em particular com os arquivos ex-soviéticos entretanto abertos, é impossível ter qualquer visão romântica da guerra - um conflito cruel entre as grandes ideologias totalitárias do nosso século, se se quiser , para utilizar um conceito polémico, um episódio da "guerra civil europeia" .Só no domínio da pura imaginação ou da retórica política é que se pode falar “da precursão visionária do cunho libertador da «Guardia Roja». Não era “visionário”, nem “libertador”, mas um projecto de poder igualmente totalitário, num certo sentido ainda mais totalitário porque mais moderno, mais dinâmico e mais globalizante, do que o das “velhas forças conservadoras”.
 


APRENDENDO

Com os meus alunos de Boticas, (que hoje devem ser homens e mulheres feitos, trabalhar na agricultura, de donas de casa, em empregos públicos no estado e na autarquia, na fábrica – o que significa nas Aguas de Carvalhelhos - , guardas florestais, comerciantes, etc. ) aprendi que as páginas tem “coroa” .

“Senhor professor posso escrever na coroa da página?
Onde?
Na coroa da página. Aqui.
Podes. “

E aprendi sobre a autoridade absoluta:

“Senhor professor, posso virar a página?
Podes.”

*

Com os pedreiros, aprendi que a pedra tem “coração”. Nas pedras há a pedra e o “coração da pedra”, onde ela é mais dura. O núcleo duro da pedra, dizemos nós, estragando tudo.
Eu conhecia a “Educação pela pedra”, mas não a pedra.
 


VALE A PENA : EARLY MORNING BLOGS


O Comprometido Espectador acrescenta novos elementos sobre a situação italiana por quem a conhece em primeira mão.
E propõe um “Ver outra vez” a acrescentar ao “Ler outra vez” . Primeira menção : o Pinóquio de Disney .

Os Jaquinzinhos , coisa que eu não sabia o que era antes de descer à capital, faz um exercício revelador de como a mesma notícia pode ser dada no “jornal independente rosa” e no “jornal independente laranja” com cor e tudo. É a teoria da garrafa meia cheia, meia vazia ou da senhora de Toulouse-Lautrec , a vestir-se ou a despir-se. Um exemplo:

"No Jornal Independente Rosa: "Sem conseguir descolar definitivamente para a maioria absoluta, Durão tenta um último esforço para convencer o eleitorado ainda indeciso."
No Jornal Independente Laranja: "A um passo da maioria absoluta, o líder do PSD Durão tenta um último esforço para convencer o eleitorado ainda indeciso
."


E a Esquina do Rio mostra uma outra peculiaridade dos blogues que entra na discussão sobre os ditos – a sua continuidade, em certos casos, com a imprensa escrita. Leia-se “hoje está impresso”, que reproduzo com vénia, para que fique registado na discussão sobre os blogues :


O que me agrada nesta solução (articular uma coluna de opinião semanal com um Blog) é o carácter de bloco-notas que o blog assumidamente tem, que possibilita que todos os dias partilhe temas que descubro, sensações que vivo, ideias que me vêm à cabeça. Por outro lado é curioso o exercício mental a que um blog obriga. Dantes as coisas aconteciam e, ou duravam o espaço de uma semana e ganhavam corpo suficiente para serem escritas, ou nunca apareciam. Com o blog tudo pode aparecer porque, como já disseram muitos que escreveram sobre este assunto, o critério editorial dos media tradicionais, baseado na relativização entre o espaço disponível e a importância do tema e mediado pela figura do editor, não se aplica aqui. A decisão editorial passa exclusivamente para o plano pessoal - escrevo o que é, para mim, naquele instante, relevante escrever. Publico quando quero, consigo ter uma ideia muito aproximada de como sou lido. Na generalidade dos casos procuro colocar-me como intermediário de informação: prefiro não transportar sobretudo opiniões e reflexões pessoais, opto por sugerir links, alinhar assuntos, partilhar informação. É este lado - o partilhar constante de informação de diversos níveis, que é aliás o factor mais interessante dos blogs, mecanismo que é potenciado por citações recíprocas, e que leva a uma cascata de descobertas que é em grande parte a responsável pelo carácter viciante e obsessivo que a escrita dos blogs tem e que a procura constante por novos blogs e novas actualizações alimenta.!"

3.7.03
 


CARTA DE TIMOR

Uma amiga minha, a "Z." , foi para Timor e lá leu o Abrupto. Os cliques vem de lá, no pequeno espaço asiático do contador, e, conhecendo a "Z.", devem ser suficientes para elevar o longínquo pico. De Timor, escreveu-me uma carta com o olhar das inglesas na Índia, da Passage to India , medido pela distância de ser portuguesa e não inglesa. Mas é um olhar "colonial" muito especial, que talvez só agora os portugueses possam começar a ter. Aqui ficam, dos antípodas, as palavras:

"Estou em Timor. Nem me lembro se houve alguma razão que me fez escolher Timor para os próximos anos. Nem demorou mais do que se tivesse feito rodar um globo e apontado com um dedo de olhos fechados, para onde imaginei acertar nos trópicos. Abruptamente...
(...)
A Ásia é fabulosa. Size matters. Mais um planeta. Uma sensação de que vivo mais uma vida do que aquela a que tenho direito.
Eu estou nas sete quintas... Nada funciona numa lógica linear de maneira que estou no meu habitat preferido. É tão fácil viver aqui. Um imenso calor dia e noite, uma humidade acima dos 85%, o som dos helicópteros que chegam directamente de Hanói e esta coerência arquitectónica neo-realista tipo Beirute em 1985. E nem tenho que pagar o preço de um "cenário de guerra". Parece um dos lugares mais seguros do mundo. Ando aqui de um lado para o outro a qualquer hora sem problema nenhum. Até a guerra no Iraque ficou lá para outro planeta onde ainda há guerras e para outro tempo que não aquele em que vivemos aqui.
As notícias que acompanhei em directo na BBC e na CCN mais pareceram documentários do que noticiários.
Só cheguei em Janeiro de forma a que o 4 de Dezembro para mim nunca aconteceu. Apesar de bastar uma pequena faísca para isto virar um enorme fogo de artifício (que é o que vai acontecer no segundo imediatamente seguinte à retirada dos militares) parece quase impossível que esta gente se transforme tão facilmente em monstros furiosos. Mas isso seria compreender a própria Ásia, que é tão fabulosa. Tão diferente de tudo. Size matters.
Pois é, seja a nostalgia que me fazem os helicopteros Puma, o peso do calor dos trópicos, ou o simples facto de não estar em Portugal ou na Europa, a verdade é que daqui só saio por motivos de força maior. E mesmo assim…
Neste momento estou cá sózinha, mas a situação corriqueira é com parte da família que agora está aí de férias. (...) Também temos Bridge e gin tónico. (...) Até tenho cães! Três cães. Isto deve soar à India do tempo colonial...
Pouca coisa me liga ao nosso país. Ainda me ligo a pessoas. (,,,)
Nos últimos seis meses estive tão actualizada sobre os debates do estado da nação, os disparates dos do costume ou sobre o que vai sair nos jornais do dia seguinte, como quando estava em Lisboa. É igual conversar ao telefone de Lisboa para Lisboa ou entre Berlim e o Suai.
Impressionante as linhas que ainda dedico a este tema, não é?
Farto-me de viajar. Por aqui. Pela minha área. Para a semana vou para Java. Espero apanhar um banho de verdadeiro caos em Jacarta. Imagino que incompreensível para si.
Quando me perguntaram em miúda qual era a colecção que eu fazia, eu respondi de monstros. Perguntaram-me de seguida se eu tinha pesadelos, disse que não. Mas que os meus monstros tinham muitos pesadelos...
Em relação aos lugares, provavelmente, também me apaixono pelos seus defeitos. Ou pelo contraste dos dois lados da mesma moeda, isto é, do mesmo objecto."
 


BERLUSCONI (Actualizado)

Não era minha intenção falar do que aconteceu ontem no PE com Berlusconi, mas já li relatos e comentários em diferentes blogues e alguns leitores do Abrupto pediram-me para comentar os eventos. Penso que tem sentido aqui descrever testemunhalmente o que se passou, por parte de um observador comprometido. Não é jornalismo, mas esforço-me por ser o mais rigoroso que posso nos factos. O resto é opinião.

Sabia do que se preparava, assisti ao que aconteceu e , por razões que tem a ver com as minhas funções, tive e tenho um papel nas sequelas possíveis do evento. Sobre esta última parte compreenderão que não fale, como também não falarei dos aspectos de debate interno e das conversas em que participou Berlusconi.

A parte dos incidentes que tem sido divulgada é a que envolveu Berlusconi e Schultz , com a história do "capo". É apenas uma parte do que aconteceu e não pode ser tratada isoladamente se queremos ter uma apreensão informativo e opinativa do que aconteceu.

Pode no entanto esta parte dos incidentes ser validada isoladamente e não é difícil fazê-lo: a "piada" de Berlusconi é de mau gosto, ofensiva , completamente desapropriada e em nenhuma circunstância devia ter sido dita. Quando instado pelo Presidente do PE a retirar o que disse, Berlusconi recusou-se, o que ainda mais agravou a situação. Berlusconi é o PM italiano, Presidente da UE e nessa dupla qualidade tem obrigações de comportamento institucional que prejudicou com o incidente.

Incidentes deste tipo , exactamente deste tipo, são comuns em todos os parlamentos. O confronto parlamentar favorece-os e declarações absolutamente inadmissíveis e ofensivas , abundam. Só para dar um exemplo do parlamento português : Gama a chamar Bokassa a Alberto João Jardim. Só que na maioria dos casos, quando há uma admoestação do Presidente, os autores de ofensas ou as retiram ou declaram que a sua intenção não foi o insulto pessoal. Berlusconi teve essa oportunidade e desperdiçou-a.

Dito isto com clareza, vamos ao resto. O que descrevo a seguir não justifica, nem legitima o incidente, porque o ónus da maior obrigação de comportamento recai em Berlusconi. Quando decorreu o incidente do "capo" já Berlusconi estava há mais de uma hora no PE numa situação muito difícil : sujeito a uma manifestação agressiva por parte da esquerda parlamentar, em particular os comunistas , os verdes e uma parte dos socialistas. Estes prepararam uma manifestação no interior do hemiciclo com cartazes contra Berlusconi , manifestação essa em que, de forma institucionalmente inadmissível, participaram funcionários do PE e dos grupos políticos da esquerda, levantando cartazes e vaiando-o enquanto falava. Não é irrelevante a circunstância do lugar que ocupa o Conselho no hemiciclo ser encostado ao lado dos comunistas e dos verdes, de modo que a proximidade física dos manifestantes com Berlusconi era grande. Talvez se ele estivesse do outro lado nada acontecesse. A história é assim.

Este comportamento é simultâneo com o decorrer da sessão, ou seja Berlusconi está a falar e mal se ouve, tal é o barulho, os risos e as vaias, vindos da mesma parte da sala. A Mesa tinha dificuldade em controlar a situação e não quis interromper a sessão. Infelizmente situações deste tipo são comuns, embora com menos gravidade da que ocorreu ontem, no plenário, onde os verdes, os comunistas e uma parte dos socialistas costumam fazer manifestações dentro da sala com exibição de cartazes. Quem dirige a sessão e a maioria dos deputados, incluindo muitos socialistas tem condenado estes procedimentos, mas lacunas do regimento impedem uma actuação clara da mesa . Nas actas do PE está um caso de um incidente, em que eu próprio estava a dirigir a sessão, com um deputado basco ligado à ETA.

O que aconteceu na sala não se limitava à manifestação. Berlusconi estava permanentemente a ser insultado em várias línguas, mas com predominância do italiano, de "ladro", "capo", "mafioso" e outros epítetos do mesmo teor por alguns deputados, com predominância dos verdes e comunistas. Um dos verdes que habitualmente toma a liderança destes incidentes e que funciona como uma espécie de bufão (com grande efeito e aplauso jornalístico) é Cohn Bendit. Acham-lhe graça.

Por fim, o discurso do deputado Schultz contem igualmente partes ofensivas para Berlusconi, e referiu-se a questões de política interna italiana violando uma regra tácita do PE. Isto obviamente não justifica as palavras ofensivas de Berlusconi.

Por último, uma observação quanto ao "caso Berlusconi" e que tem a ver com a duplicidade do tratamento que lhe é dado. Digo isto para que se compreenda que a selecção dos "escândalos" que são graves e os que não são, é politicamente motivada. A esquerda europeia nunca "engoliu" os resultados da verdadeira revolução que Berlusconi fez no sistema político italiano (matéria sobre que podemos falar depois) e que a tirou do poder.
Berlusconi não é o único dirigente político europeu com problemas com a justiça, mas parece que é. Não é preciso ir mais longe do que o presidente Chirac. Mas, como os políticos não estão acima da justiça , depois de terminar o mandato irão a tribunal.

Depois, no caso italiano, é preciso uma prudência diferente no julgamento dos "casos de justiça" dada a acentuada politização da acção judicial. Neste mesmo parlamento estão algumas personalidades célebres de juizes "acima da política" que, usando a sua credibilidade como juizes, entraram numa carreira política e são hoje deputados. Dá que pensar.

Por último, Berlusconi é empresário e os anátemas contra o dinheiro, contra o capitalismo e a economia de mercado tendem a descrever essa actividade como uma forma superior de roubo. Lembram-se de Proudhon que dizia que a "propriedade é um roubo..." ?

De qualquer modo, quem mais perdeu com tudo isto foi Berlusconi.

*

Comentários a esta nota em O Comprometido Espectador , A Esquina do Rio , De Esquerda , País Relativo , Linhas de esquerda , Valete Frates ! , Linha dos Nodos , O Intermitente . Estes blogues foram os que encontrei, para já, com referências ao "caso".

2.7.03
 


DISCUTIR OS BLOGUES - EDIÇÃO / NÃO EDIÇAO

O aspecto dos blogues não terem editor, e haver uma comunicação não mediada entre quem os escreve e quem os lê é relevante para a sua caracterização. Em teoria, deveria ser um dos elementos de distinção com o jornalismo, embora não sendo o elemento primário de distinção, que permanece o aspecto factual da notícia como matéria prima do jornalismo. O jornalismo existe para nos informar, o resto vem por acrescento e à volta disso. Convém lembrar.

No entanto há que reconhecer que esta distinção edição / não-edição tem cada vez menos sentido.
Primeiro, porque o jornalismo se tornou ficcional , uma espécie de "creative nonfiction" nos seus melhores e raros momentos. Nos piores, ou seja na maioria dos casos, produzem-se apenas redacções opinativas, mais ou menos escolares, que,a última coisa que querem é que lá dentro entrem factos. É o que acontece nalguns blogues .
( Quando colocar as "notas sobre o jornalismo político do Independente" , que tem como principal característica não ser jornalismo, falarei destas questões )

Segundo, porque uma das coisas que enfraqueceu o seu papel no nosso jornalismo, com a dissolução da autoridade nas redacções e o igualitarismo, foi a figura do editor.

Nota final: há também blogues que mantém formas de edição. No Abrupto, que é um "blogue totalitário", no sentido em que não tem comentários, faz-se a edição da correspondência enviada, eliminando repetições, comentários pessoais e reorganizando-se fragmentos das cartas por tema. Como num jornal.

*
Comentários com interesse a esta nota em Liberdade de Expressão .
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 11

A série dos "objectos em extinção" é a que tem tido mais sucesso no Abrupto. Todos os dias recebo sugestões novas e novas formulações de sugestões antigas. Um ar de nostalgia, uma vaga tristeza, uma "pena" pelo tempo já passado, acompanha os textos, todos muito pessoais. Percebe-se a importância que tem os objectos como sinais do tempo e como marcadores quase imperceptíveis da sua passagem. Mudam-se os objectos - e temos usado uma definição muito ampla de objectos de maneira a incluir hábitos, comportamentos ligados ao uso das coisas ou ao consumo de "experiências" fixado no tempo ( como na nota de Luis Miguel Duarte em baixo são os "horários") - e envelhece-se.
As páginas que a Carta Roubada podia escrever ...

Luis Miguel Duarte recorda uma vida nocturna menos nocturna

"Horários aventureiros de juventude: quando em férias, nos juntávamos no café, depois de jantar, entre as 9 e as dez. Quando íamos em carros colectivos, táxis ou boleias, para discotecas, nas quais entrávamos antes das onze, e que fechavam às duas. Quando regressávamos a casa excitadíssimos com a noitada, que custava uma ressaca de quinze dias. Agora, em muitas discotecas entra-se às quatro da manhã, a não ser que se chegue mesmo às cinco ou às seis. E o que está a dar é, numa noite, correr várias. Ficar-se por uma é 'cota'. "


Sérgio Faria também faz questão de dizer que, ao falar "de coisas extintas" (...) guardo alguma nostalgia." E não é por acaso que "as coisas extintas" são quase todas recordações de adolescência :


"Kalkitos. Eram umas "transferências", muito engraçadas, que permitiam que definíssemos a posição e a distribuição de um lote de personagens num cenário previamente estampado numa folha.


Livros da colecção «Falcão». Eram livros de BD, tamanho de bolso. Os tópicos tratados não eram muitos, oscilavam entre estórias sobre a II Guerra Mundial e cowboiadas. Fui aí, pela primeira vez, que me cruzei com o Major Alvega. Com uma personagem que representava um "aristocrata" envolvido na resistência francesa na luta contra os invasores nazis. Com o Buffalo Bil. Ou com o David Crocket.

Cadernetas e cromos. Em particular sobre futebol. Com cromos daqueles que necessitavam que, nas costas, se lhes colocasse uns pontos de cola, para os fixar na caderneta.


Pastilhas elásticas «Pirata». Existam dois tamanhos, cada um com a sua forma de embrulho. O embrulho das mais pequenas era tipo rebuçado. Uma outra maravilha, associada a estas pastilhas, eram os blocos de impressos para jogar à batalha naval.


Pirulitos. Eram uns refrigerantes, tipo gasosa, mas sem carica. Para se abrir tinha de se empurrar um berlinde para dentro da garrafa.

Cassetes de cartucho. Quando comparadas com as actuais cassetes-audio, as cassetes cartucho parecem uns autênticos pacotes. Aliás, parecem muito mais próximas das cassetes-VHS do que das cassetes-audio.

Telefonias a válvulas. Ligavam-se e, antes de se conseguir ouvir o som, era necessário esperar algum tempo, até que as válvulas aquecessem. As suas caixas eram pesadas e, muitas delas, de madeira. À frente, por norma, um tecido forte, rugoso, frisado ou não, servia de adorno e de protecção à "coluna" da telefonia.


Máquinas de copiar a stencil. Funcionavam à manivela. E as matrizes eram uns impressos com três ou quatro vias, com um cheiro pestilento, que se riscavam, para produzir um efeito tipo papel químico.


Papel químico. Quando ainda eram díficil conseguir cópias, o papel químico era também uma solução. Usava-se recorrentemente nos livros comerciais e de contabilidade. E nas máquinas de escrever, para permitir o arquivo da cópia da correspondência emitida.


Máquinas de calcular e máquinas registadoras a manivela. Após a marcação de cada número desejado, carregava-se na tecla da operação desejada e, depois, para processar, era necessário puxar ou rodar a manivela. Imagine-se aquelas somas com inúmeras parcelas...


Telefones de baquelite, pretos, com disco. Eram uns telefones pesadíssimos. A marcação dos números era feita por disco. Colocava-se, por ordem e à vez, o dedo nos algarismos que compunham o número e, depois, rodava-se o disco até ao batente existente, por norma, próximo da posição do 5 nos relógios.
"


 


NOTAS EUROPEIAS (FRANCESAS NESTE CASO) 3 (Actualizada)

CLOSED SHOP

A França, um dos países mais centralistas e culturalmente chauvinistas da Europa, proíbe, em nome da "excepção cultural", a publicidade de filmes na televisão, para que não se corra o risco dos franceses quererem ver mais filmes americanos do que os que já querem ver.
Este dirigismo cultural, verdadeira manutenção do proteccionismo mais cediço, mostra até que ponto a tradição jacobina é pouco liberal. Não admira que conduzam todos os dias uma batalha cada vez mais perdida pela língua e pelo que resta da influência da cultura francesa, não por causa de qualquer conspiração global dos estúdios de Hollywood, mas porque o closed shop faz definhar o que "fecha".

*

Acrescenta o "Cidadão Livre" em e-mail: "sugiro a leitura da seguinte notícia da BBC: "Pela primeira vez, a lista dos livros mais vendidos na França é encabeçada por um livro em inglês – Harry Potter e a Ordem da Fênix"
 


NOTAS EUROPEIAS (FRANCESAS NESTE CASO) 2

COMO SE FAZ UMA TEMPESTADE POLÍTICA

Foi em França, mas podia ser em Portugal.- a criação de uma tempestade política completamente artificial. Esta assisti a um metro e meio de distância e por isso posso testemunhar. Num encontro comemorativo do aniversário do PPE falaram várias pessoas incluindo os Primeiros Ministros da Eslováquia e da França e Helmut Kohl. O PM eslovaco citou uma frase atribuida a Churchill : "Socialism is workable only in heaven where it isn't needed and in hell where they've got it." Houve risos. A frase é , como se diz, bem apanhada e os socialistas até devem achar meritória a referência ao facto do "céu" ser governado por um governo da Internacional Socialista.

Em seguida falou Jean-Pierre Raffarin, o PM francês, que é o protótipo da bonomia, pequeno, encorpado, com a cara típica de um boulanger de província, bem disposto , nada snob nem altaneiro, irónico e senhor da sua boutade. E re-citando a frase, que tinha ouvido há minutos, lembrou-se de dizer na brincadeira que, a julgar pelo que pensava Churchill, a França devia estar no Purgatório, visto que "ainda há os socialistas". Depois passou adiante, num discurso de circunstância em que nada havia de política interna. A assistência sorriu, até porque já tinha rido da frase de Churchill, e ninguém ligou nenhuma ao Purgatório.

Eis senão quando, olho mais tarde para uma televisão e vejo a Assembleia da República francesa num verdadeiro pandemónio com os socialistas a exigir desculpas públicas, a instar o Presidente a colocar na ordem "Matignon", perante o "grave insulto, pior do que os de Le Pen" e por fim, socialistas e comunistas a abandonarem em protesto a Assembleia interrompendo o importante debate sobre as reformas. O "grave insulto' foi a história do Purgatório.
Tudo isto, fossem quais fossem os partidos envolvidos, mesmo que fosse ao contrário, é de tal modo ridículo que mostra como está a vida política europeia.
 


NOTAS EUROPEIAS (FRANCESAS NESTE CASO)


Está a ocorrer em França uma greve de um sector que se intitula de forma bizarra "intermittants du spectacle" e que se auto-designam de "artistas" : bailarinos, cabeleireiros, montadores de palcos para espectáculos, "animadores culturais" , etc. É na França um número significativo de pessoas, o que mostra os frutos a prazo da política de Malraux de constituição de um forte sector estatal da cultura, entendida como um instrumento da propaganda e da legitimação do estado. Era na sua origem uma política de direita, gaullista, feita em nome da "grandeur de la France" e emigrou para a esquerda com Lang ( e para Portugal com Santana Lopes e Carrilho, ambos discípulos de Lang). A "cultura" é vista essencialmente como alta propaganda, indiscutível pelo seu estatuto e excelente como mecanismo de influência política. Uns fizeram-na com as vanguardas estéticas, outros com o teatro de revista e o Pedrito de Portugal, mas é o mesmo mecanismo.

A greve, que está a abater todos os festivais de Verão, Avignon, Montpellier, etc., mostra a dimensão de indústria que hoje a "cultura" tem nas sociedades contemporâneas, o seu peso económico, a sua intimidade com o estado (grande em França, menos nos países anglo-saxónicos), assim como a confusão essencial de tratar esta "cultura" como associada à criação, retirando daí uma intangibilidade face às mesmas críticas que, por exemplo, escrutinam uma política de turismo, ou de animação urbana , ou a propaganda política. É por isso que jornais como o Le Monde noticiam a greve na secção de "cultura" , junto com os livros e os filmes novos. É também por isso que não há maior equívoco do que a existência de Ministérios da Cultura, que, com excepção do património, pouco mais fazem do que gerir indústrias culturais e serem, nos tempos fastos, ministérios da propaganda. A "cultura" devia ir para os ministérios da educação, da indústria, do comércio externo, onde as suas virtualidades em cada uma destas áreas deveriam ser maximizadas, e haver apenas um Ministério do Património.

1.7.03
 


ARRUMAÇÃO DA CASA

Muito de interessante para mim e todos os leitores do Abrupto chega-me pelo correio. Nesta secção "arrumo a casa", sem desprimor, bem pelo contrário, para as sugestões e comentários mais avulsos.

IMPACTOS DA INTERNET

José Carlos Santos chama a atenção para

"um aspecto do impacto da Internet na vida das pessoas que me parece que ainda não começou a ser estudado. Refiro-me ao impacto que tem na vida das pessoas que têm algum problema mental que lhes cause sofrimento e que, graças à Internet, descobrem que não são as únicas a tê-lo. Quem fizer uma busca na Internet por Prosopagnosia ou por Síndroma de Asperger, por exemplo, encontrará imensos relatos de pessoas que se sentiram muitíssimo aliviadas por descobrirem que o seu problema não só é partilhado por muitas outras pessoas como, ainda por cima, é algo que já se encontra diagnosticado. "

"E EU TAMBÉM TENHO DIREITO A UM MOVIMENTO SOCIAL?"

"Luhuna C." transcreve um "panfleto anarquista" que teria sido "distribuído" no FSP. Não sei se é verdadeiro ou falso, pode ser aquilo que antigamente se chamava "provocação", mas tem o tom certo e merece registo.

"Os jovens perguntam ao fórum:

O que querem os movimentos antiglobalização? A utopia do pós-tardocapitalismo? O capitalismo da utopia? Porque é que agora são alterglobalização e não anti? Porque é que se sujeitam assim aos jogos de linguagem e de conceitos do poder? Porque é que agora o Euromarche se chama Carrefour? O que é a alterglobalização e onde a posso comprar? No palmeiras ou no vitória? E não me estarão a vender gato por lebre? Ou anti por alter e alter por anti? E quem é o director de marketing? É aquele brasileiro? E onde começaram? Num editorial do Ramonet nas selecções do reader’s digest? Num editorial do bibi no Le monde diplomatique? Ou nas ruas escondidas e praças destruídas de outras cidades (muito antes de a SIC noticias vos avisar ou o BE/PC vos autorizar)? A attac detém agora os direitos de autor e de concessão de franchise? Posso arrotar à mesa e comer com as mãos e continuar a ser cidadão? E os movimentos sociais o que são? Existem para lá de histórias que nos contam bardos? Serão um oásis ou S. Sebastião multiculturalizado? E o que querem os movimentos sociais? A sua fatia do tardocapitalismo? A sua tarde ao sol na fatia do capitalismo? Um outro capitalismo é possível? Uma outra possibilidade é capitalizável? E eu também tenho direito a um movimento social? E a um blog? Serão os movimentos sociais anjos da guarda reificados? E aquilo que se faz assim para frente e para trás, pimba pimba, também pode ser considerado um movimento social? Será (seria) o fórum social uma gigantesca orgia? Ou uma passerelle da esquerda gourmet el corte inglês? Há after-hours no Lux? Vai haver t-shirts à venda? E qual é o quociente de paternalismo e de sentimentos de culpa presente nesta cena toda? Dado a sua contribuição ao melhoramento da sociedade deverá o estado começar a subvencionar os sociólogos e historiadores presentes? E poderíamos aplicar uma taxa tobin ás transferências de jogadores de futebol para pagar aos sociólogos e historiadores presentes? O Deco estará presente no FSP? E os “violentos”? Destruirão eles o movimento? Criaram eles o movimento? Qual é mínimo de horas que tenho de estar no FSP para depois me poder assumir enquanto participante nele? Uma tarde chega? Poderá o lugar deixado vago por Carlos Cruz e Herman José ser ocupado pelo Boaventura e pelo Carvalho da Silva? Poderá o Boaventura apresentar a roda da sorte? E quem seria a Rute Rita? (eu sei, vocês sabem?) E quem é que poderia ocupar o lugar do Paulo Pedroso (eu também sei, vocês também sabem?) E se não fosse a ingenuidade dos jovens e a velhaquice dos velhos existiria FSP? E o FSP quer um piquenique ou uma revolução? Poderei dançar o electroclash no FSP? Poderá afinal a revolução aparecer na televisão (no mínimo no “acontece”)?
Paremos este mundo, uma outra guerra é possível. Todos os nãos, um único sim.

Os filhos de Bragança.
"


DISCORDÂNCIAS VÁRIAS COM NOTAS DO ABRUPTO


JBC sobre o "Horror ao vazio"

"Atrevo-me a escrever-lhe para lhe lembrar que os seus amigos liberais norte-americanos não são menos "regulamentadores" que os legisladores europeus e quando fala de controle de comportamentos penso imediatamente nas disposições legais da Administração, seja local, estadual ou federal, sobre o controle do tabagismo."

João Correia discorda do que escrevi sobre futebol:

"A sua luta contra o futebol é antiga mas será infrutífera, porque o lazer é um bem que os humanos sabem desfrutar. A sua campanha contra o Euro 2004, assim como a do governo, não convence e tem como base uma falácia, o custo que o orçamento do Estado suporta.
Devo-lhe dizer que não sou nenhum entendido na matéria, nem especialista em contas do estado, mas acompanho a actualidade e gosto de assistir a um bom jogo de futebol.
Pelo que tenho sido informado dos cerca 600 milhões de contos que foram assinados nos contractos-progama dos 10 estádios para o Euro 2004 só cerca de 130 milhões é que serão comparticipados pelo governo. Como os empreiteiros vão pagar ao governo só dos contratos-programa cerca de 115 milhões de contos à cabeça de IVA, restam cerca de 20 milhões de contos que serão cobertos pelos cerca de 95 milhões que o governo (70%) irá receber da comparticipação dos fundos da União Europeia.

Pelo que me parece o negócio é para o governo e não para os Clubes. Isto sem contar com efeito alavanca que a economia sofre com o desenvolvimento destes investimentos assim como o efeito do evento quando este tiver lugar com os milhões de pessoas que se deslocarão pelo país.
Quanto aos desvios aos contratos-programas parte deles já estavam previstos, porque estes foram calculados com base no número de lugares dos respectivos estádios, mas de qualquer forma serão suportados pelos Clubes.
"

Filipe Figueiredo escreve sobre a "presença (ou ausência) da história" :

"Lá diz que: "Os nossos jornais e a restante comunicação social também não reflecte sobre a história, sobretudo porque a desconhece ou porque possui delas ideias gerais". Posso concordar em parte mas não na totalidade. É que existe uma revista na imprensa dedicada apenas à história e que tem esse mesmo nome: História. De seguida existe todos os dias no jornal de noticias( e noutros) um pagina/meia pagina dedicada a alguém ou algum acontecimento Histórico importante. Na revista do Expresso e do Público (ao Domingo) há também sempre uma folha/duas dedicadas ao mesmo. Inclusivé na revista máxima é colocada um biografia em todas as revistas. Além disso, existe um canal na TV Cabo ( e cada vez mais a população portuguesa adere à TV Cabo) sobre História. Na TV2 passam excelentes documentários Históricos (Sinais do Tempo e o Lugar da História) mais o programa semanalmente transmitido pelo Professor Hermano Saraiva. Muitos destes artigos e programas não são de ideias gerais mas de estudos por vezes profundos, o que prova que eles conhecem. E mais exemplos poderia dar mas penso principalmente que quem mais deve reflectir sobre história são as pessoas e não a comunicação social, especialmente no seguinte sentido:

Em certas situações que aconteceram no passado e que às vezes nos confrontamos novamente, ela (comunicação social), deve fazer esse exercício de recordar o que fizemos e as acções que tomamos "da outra vez" , para agora reflectirmos e voltar a decidir. Em muitos casos deve mostrar mas nunca deve determinar o caminho.

Quando diz: "Pensar a história implica conhecê-la bem e, para isso, precisamos de tempo, disciplina, vontade, gosto, precisamos de compreender a sua importância" , penso que a "vontade" e o "gosto" partem quase sempre de cada um e não é a escola (pelo menos esta) que consegue impor ou despertar a vontade. Ela pode despertar para aprendermos mais sobre ela. Mas se não desperta......acontece o debitar nos exames aquilo que se ouviu e os alunos tiram uma boa nota. E mesmo quando desperta, não é esse despertar que faz tirar uma boa nota.
"

A Maria José Vasconcelos acha que no "Estado do Abrupto (Junho 2003)" o "pico" asiático é de Timor e não de Macau, e deve ter razão.

ESTRADAS, PEDREIRAS E BLOGUES

suscitaram muito correio que será tratado à parte.
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 10

Acrescento eu agora quatro, de tipo muito diferente:

1) O programa Lotus Magellan, o melhor programa que jamais tive para "viajar" no computador. Para além de ter o nome do nosso Magalhães, era de uma simplicidade e eficácia absolutas e só o deixei de usar quando o número de ficheiros ultrapassava a capacidade do programa, que ainda estava na era do MSDOS. Até hoje nenhum o substituiu.

2) O programa Lotus Agenda que foi uma tentativa da Lotus de fazer um misto entre uma base de dados e uma agenda, ou um programa do género do MS Outlook. O programa era muito inovador e acabou por ficar num limbo do software, sem continuidade. O Agenda permitia fazer anotações em texto corrente, não formatado e uma única entrada podia ser organizada por diferentes categorias que, uma vez definidas, eram automaticamente reconhecidas. Na altura usava o DBase III ou IV, e já fazia quase todo o meu trabalho de investigação usando bases de dados. Tentei adaptar o Agenda a uma espécie de cronologia complexa, remetendo para bases de dados biográficas e por organização e o programa , apesar de alguns erros, mostrava que tal era possível de uma forma bastante criativa. Infelizmente a Lotus não fez mais nenhuma versão e deixou cair o Agenda.
Depois mudei-me para o MS Access, que é o que uso hoje, experimentei de passagem o Asksam, mas continuo a não ter algumas vantagens do Agenda, a não ser através de artifícios complicados e pesados na memória.

3) A experiência do Sud Expresso ou do antigo "comboio da noite" Porto-Lisboa e vice-versa. Voltarei à "experiência" enquanto "objecto".

4) As livrarias "marxistas-leninistas". Em breve acrescentarei aqui duas notas sobre a Banner Books and Crafts , em Londres, que desapareceu , e a Aurore, que ainda existe, minha vizinha em Bruxelas, transformada numa categoria única "antiquariat marxiste-leniniste".

e o José Carlos Santos , sugere-me um quinto objecto, mais as memórias associadas:

5) "a régua de cálculo, outrora instrumento de trabalho indispensável para engenheiros. No que me diz respeito, este objecto está ligado a uma recordação bastante agradável. Há bastantes anos atrás, um amigo do meu pai dotado de uma grande curiosidade intelectual resolveu comprar uma régua de cálculo e perceber como se trabalhava com ela. Não tendo alcançado último este objectivo e sabendo que eu me interessava por Matemática, propôs emprestar-ma para que eu aprendesse a trabalhar com ela e depois poder ensinar-lhe. Quando percebi o seu funcionamento, o meu pai combinou com o amigo que almoçaríamos juntos para então eu explicar o funcionamento da régua de cálculo. Aquele almoço foi a primeira recompensa material que tive em compensação pelo trabalho de realizar uma tarefa ligada à Matemática".


© José Pacheco Pereira
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