ABRUPTO

11.1.15


CHARLIE

N'EST PAS

CHARLIE

1. Este poderia ser um título do Charlie Hebdo se se mantiver o espírito dos assassinados. Eles seriam os primeiros a satirizar a sua própria morte e a gozar com o unanimismo que hoje sai à rua a seu pretexto e em nome de uma "liberdade de expressão" de que eles, no conjunto da sua vida, só conheceram porque a forçaram. O Hara-Kiri que o diga que, com o seu título provocatório depois da morte de De Gaulle, foi encerrado. "Bal tragique à Colombey: 1 mort" foi o título.

2. A marcha de hoje pode muito bem chegar ao milhão de participantes ou ainda mais. O sentimento de quem participa é de genuína revolta e é respeitável. Para além disso as pessoas gostam destes unanimismos e a mobilização maciça que é feita pelos media, cria quase um dever moral de participar. Mas a marcha de hoje já tem todas as ambiguidades que a tornará inócua e por isso mesmo perigosa.

3. À sua frente vão os homens e mulheres que estão a construir uma Europa não democrática, de Merkel a Passos Coelho, que abandonaram qualquer ideia de uma Europa assente na solidariedade, que ajudaram a criar e a reforçar sociedades em que não há mobilidade vertical, o único mecanismo que permite assegurar o melting pot, logo a integração de todos, os que cá estão e os que conseguem passar as aguas do Mediterrâneo sem morrer nelas.  Mas, pior ainda, fecharam os olhos aos problemas que coloca aos valores da nossa civilização "ocidental", ( e sei bem que todas estas palavras são ambíguas, mas servem), a emergência de um Islão transformado num movimento político que assume exactamente esse carácter político ao combater esses valores. É esse o seu conteúdo político e o resto é a sharia.

4. O "politicamente correcto" está em reduzir o problema desse Islão político às suas manifestações mais radicais, ao terrorismo da Al Qaida ou do ISIS, quando é um problema societal e cultural que está muito para além disso. E este "politicamente correcto", presente como um mantra bem intencionado repetido por todos, oculta os problemas para debaixo do tapete. E debaixo desse tapete habita a Senhora Le Pen, que percebe muito melhor os problemas que são sentidos por milhões de franceses, os problemas de proximidade, os mais perturbadores, do que os discursos vazios de Hollande e os seus amigos europeus.


5. Alguns dirigentes muçulmanos, quase todos com a cabeça a prémio pelos fundamentalistas,  são a voz da razão e moderação. Mérito deles. Aliás, se o Rei e a Rainha da Jordânia participarem na marcha, é deles a maior coragem. Mas a verdade é que fora destas tragédias, dos atentados e assassinatos, não é a comunidade muçulmana que sente como seu primeiro problema o assalto aos valores da democracia, e da liberdade feitos em nome da sua religião, mesmo nos países ocidentais. Só uma minoria, muito minoritária, fala como deve falar e mesmo assim nunca falaram alto e bom som  pelo direito de se ser blasfemo numa sociedade livre, como não falam com clareza sobre a principal fractura civilizacional que separa o mundo ocidental das sociedades islâmicas, o papel e condição da mulher.

6. A questão não está na religião em si, (embora do ponto de vista histórico, como se passou com o cristianismo, a autoridade interpretativa teológica mais forte no papado assim como no xiismo e menos no sunismo, tenha algum papel)  mas no modo como é vivida, entendida e controlada por imans, clérigos e dirigentes civis, universidades, escolas, instituições de beneficência,  poderes e autoridades, como não havendo separação entre estado e igreja, logo impondo ou legitimando padrões de comportamento na sociedade que ofendem a liberdade individual. O problema é que mesmo nos casos em que a "primavera árabe"  tentou democratizar as sociedades, o que emergiu, como já acontecera na Argélia com a vitória eleitoral da FIS, foi uma enorme pressão para o retorno da sharia, e a punição dos infiéis. O mesmo se passa nos países "libertados" dos seus ditadores pelo apoio ocidental, como a Líbia, o Iraque, ou a tentativa de derrubar Assad na Síria, todos deram origem a sociedades onde ser-se ateu é correr um real perigo de morte, e as mulheres se escondem debaixo de camadas de véus, e o que aumenta é a Al Qaida ou o ISIS.

7. Ora em sociedades europeias em que comunidades muçulmanas crescem pela história colonial ou pela emigração mais recente, estes mesmos códigos de comportamento tem vindo a estabelecer-se. Não estou a falar obviamente dos radicais fundamentalistas, embora haja relação entre o crescente recrutamento por exemplo para o ISIS e este processo de maior controlo religioso, de maior intransigência face aos comportamentos considerados "pecaminosos", das mulheres em primeiro lugar. E este problema não pode ser deixado à Senhora Le Pen.

8. Para usar um exemplo do judaísmo, eu não quero que haja, onde vivo, no espaço público,  algo de parecido com o Bairro Mea Shearim de Jerusalem e o que acontece em certos sítios da Europa, a França em particular, é que se caminha para aí. Eu se for a uma mesquita cumpro os códigos de decoro que me são pedidos, como aliás acontece nas igrejas cristãs. E penso que é legítimo pedir esses códigos mesmo às mulheres. Quem não quer não vai lá. Mas espero que na rua da esquina da mesquita uma banca de jornais possa ter o Charlie Hebdo ou o Playboy, sem correr o risco de ser vandalizada ou  incendiada. Faz toda a diferença.


(Continua.)

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© José Pacheco Pereira
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