ABRUPTO

28.4.14


VASCO E OS COSTUMES DOS PORTUGUESES

Excerto de uma intervenção numa homenagem a Vasco Graça Moura, há um ano. 


Quando lhe tirei esta fotografia, no dia do seu doutoramento honoris causa pela Universidade do Porto, o Vasco, sorriu e disse: vou pôr-me na posição do Jorge Luís Borges. E colocou as mãos, o corpo e a bengala na posição de uma célebre fotografia de Borges.

"Nas minhas recordações das nossas deambulações europeias recordo em particular um dos nossos habituais jantares na Petite Écurie de Estrasburgo. Tratava-se de um pequeno restaurante, um bistrot, a que regularmente íamos, - porque ele e eu somos pessoas de hábitos e, se estamos bem num sítio não precisamos de outro, – e que tinha aquele aspecto de acolhimento quase rural, de um Estrasburgo mais provinciano do que cosmopolita.

Um dia, no restaurante, a nossa conversa começou com o pretexto da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, não sei bem porquê. A uma dada altura, um de nós perguntou: mas não são hoje os portugueses os mesmos? Os mesmos da Peregrinação? A pergunta apareceu, sem ser “intelectual” na medida em que apenas nos perguntávamos se aqueles portugueses de barrete vermelho, perdidos no Mar da China, matando, pilhando, aprisionando e sendo aprisionados, eram os mesmos de hoje. Havia tanta naturalidade na pergunta, como se estivéssemos a falar de futebol num café, e alguém perguntasse nostálgico, se o seu clube era o mesmo de “antigamente”, há vinte anos.

A conversa pendeu para o “Veloso amigo” e o seu outeiro nos Lusíadas de Camões e não sei se foi para o Soldado Prático, mas a pergunta era a mesma: somos os mesmos ou mudámos? Esta gente dos navios do Oriente e da Índia, eramos nós mesmos, embora vivendo no “país estrangeiro” que é o passado? Não havia resposta certa, mas ambos suspeitávamos que não éramos. A resposta não é nova: há 200 anos que todos os que reflectem sobre a história portuguesa pensam na decadência da pátria e dos homens sendo que o período das Descobertas parece ser essa excepção, a partir da qual é só caminhar para baixo. Trivial.

Mas, não era tanto o conteúdo da conversa que importava, – também importava, - era o facto de nós acharmos, ao mesmo tempo que a fazíamos, que era a mais improvável das conversas, a sensação de que pouca gente teria essa conversa nos nossos dias, assim tão “habitualmente”. Quem estaria, algures nos anos noventa do nosso velho século, a discutir Fernão Mendes Pinto, Camões, Diogo de Couto, num jantar ameno de bistrot, numa Alsácia que fica europeia e estrangeira durante uma semana? Podem pensar que era presunção, mas nenhum de nós tinha uma gota de presunção, mas de perplexidade sobre o nosso velho país, a nossa pátria, a nossa língua, e falávamos dos nossos antigos para o exprimir. Não, não éramos os mesmos, éramos outros e, sendo outros, que identidade desse Portugal longínquo podia restar hoje? 

Recordando essa conversa bizarra, antiga, antiquada, na capital artificial da Europa, entre detentores da mais moderna das funções – deputados europeus, estrangeirados, deputados de uma utopia dos nossos dias, que, como todas as utopias, sabíamos ir a caminho de se tornar uma perigosa engenharia utópica, voluntarista e a correr para o desastre, ambos sabíamos que os portugueses em si, do povo, do povo comum, não eram assim tão diferentes, sempre mais “Velosos” do que “Gamas”, como é normal.

Sabíamos que a grande diferença entre os séculos XV e XVI e os dias de hoje está nos costumes. Os costumes de hoje amolecem-nos, as ideias circulantes nos pequenos e médios intelectuais, abastardam os fortes sem proteger os fracos, e é contra essa influência deletéria dos costumes que Vasco Graça Moura combate desde sempre na sua actividade pública e politica. Há aqui algum pecado elitista, ou soberba? Talvez haja. Mas é saudável pecá-lo num mundo feito de frases feitas, hipocrisias vazias, amiguismos interesseiros e pouca bravura. Muito bragadoccio, mas pouca bravura.

Na nossa conversa estrasburguesa havia pelo menos um “antigo”: Vasco Graça Moura. A voz que ele transportava consigo, o fio das palavras que vem da Grécia, de Roma, da Idade Média, da Renascença até à modernidade, era também essa voz antiga em que Camões, Sá de Miranda, Diogo de Couto falavam, a dos portugueses valentes das naus da Índia e a dos portugueses valentes que não queriam, como o “velho do Restelo”, iludir-se ao cheiro da canela. 

É talvez por isso que habitualmente se diz de Vasco Graça Moura que, sendo um grande poeta, tradutor, intelectual, é na sua intervenção política rude e brutal. Este tipo de afirmação parte de uma incompreensão profunda do sentido da obra de Vasco Graça Moura que, aliás, como no caso de Jorge de Sena, não deixa de expressar preocupações de repúdio e repulsa semelhantes na sua acção pública, nos seus poemas e na sua correspondência, face aos costumes pátrios. Aliás, esta cesura entre obra intelectual e cultural e acção pública, no sentido global do termo, acção para a polis, repete um arquétipo salazarista que vê com distância e nojo a participação pública e politica como menor, como poluindo a criação, pensada sempre no domínio do intangível para permanecer inócua. Insisto, como em Sena, ou mesmo em Pessoa, e, medidas as distâncias, em Camões ou Antero, há um contínuo entre a escrita poética, a ensaística e o discurso sobre a sociedade e os seus costumes, os costumes que engrandeceram os portugueses antigos e esmaeceram os modernos."

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© José Pacheco Pereira
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