ABRUPTO

16.3.14


  
SE FOSSE A VOTOS, VOTARIA A FAVOR DA UNIÃO IBÉRICA?

1. Paulo Rangel tem o mérito de ter ideias sobre a Europa, mas essas ideias são desconhecidas de muitos portugueses e estão bem longe de ter qualquer legitimação, não constando do acordo entre PSD e CDS nas próximas eleições europeias, nem correspondendo às posições conhecidas dos dois partidos. O CDS, em particular, tem aqui um problema, porque mesmo “eurocalmo” está bem longe das posições de Rangel que consideraria, se não fosse a ironicamente chamada “Aliança Portugal” como antipatrióticas. Rangel não as esconde, mas como não há verdadeiro debate público sobre a Europa, nem este debate interessa às elites europeístas porque é demasiado revelador de um vanguardismo que, trazido à praça pública, causaria reacções muito negativas. 

2. O problema é que as ideias de Rangel sobre a Europa são ideias sobre Portugal e, se elas fossem conhecidas e discutidas, coisa que não acontecerá certamente nas eleições europeias, provocariam um repúdio generalizado. A favor de Rangel posso dizer que a indiferença e um consentimento acrítico, tem levado os portugueses a aceitar tudo que lhes colocam no prato sem pestanejar e isso tem permitido muitos abusos. 

3. Para usar um argumento que pode parecer ad terrorem, mas não é, as ideias de Rangel são tão radicais que seriam o equivalente a ir a eleições em Portugal defendendo a União Ibérica, ou seja, o fim da soberania e independência nacional e a integração de Portugal em Espanha. Ou, como diriam os seus defensores, num novo país que seria a Ibéria, nem Portugal, nem Espanha. Estas ideias conheceram algum sucesso numa parte da elite republicana que considerava, com argumentos racionais, que os portugueses estariam melhor sendo ibéricos. Na verdade, o problema é que seriam espanhóis, porque a realidade dos países advém de muitos outros factores que não apenas uma versão iluminista da universalidade racional, como seja a história e a cultura, a identidade, que não é redutível apenas a puros factores racionais. Mas há modismos na história, e hoje a União Europeia, exactamente no seu momento mais crítico, em que põe em causa tudo o que lhe permitiu o sucesso, gerou também um modismo semelhante à União Ibérica, tendo aliás como protagonistas, a mesmas elites políticas e económicas. 

 4. Rangel divulgou no Público uma comunicação que apresentará em Berlim e que mostra com muita clareza o seu pensamento sobre aspectos fundamentais da relação entre Portugal e a Europa, usando para isso uma interpretação de um status constitucional que segundo diz, já existe de facto e que importa aceitar de jure. É uma teorização dos pontos de vista que o levou a saudar a decisão do Tribunal Constitucional alemão de remeter para ao Tribunal Europeu, a legalidade de decisões do Banco Central Europeu. A interpretação que dá da decisão alemã parece-me forçada, mas é coerente com a posição ainda mais clarificadora da sua intervenção desta semana. 

5. O que é que diz Rangel? Diz que existe “uma Constituição Europeia não escrita e que os tribunais constitucionais dos Estados-membros, nomeadamente o português e o alemão, a deviam reconhecer”. O modelo de comparação que Rangel usa para esta “Constituição Europeia não escrita” é o caso inglês, comparação que me parece logo à partida sem sentido porque a única coisa que as une é serem “não escritas”. De resto, e discuto do ponto de vista histórico e não jurídico, uma assenta na liberdade, na representação nacional e nos tribunais ingleses, e a outra numa vaga Constituição imanente sem qualquer legitimidade democrática. Aliás, essa Constituição inglesa “não escrita” é e vai ser um dos principais obstáculos à pseudo-Constituição Europeia, a começar porque ela defende, para usar uma terminologia antiga, a “liberdade dos ingleses” e a outra, a existir, foi a votos e foi recusada e depois foi inscrita à má-fé e de forma disfarçada num tratado cuja única lógica procedimental foi evitar ir a votos a todo o custo. 

6. Seguindo a argumentação de Rangel, existe “uma Constituição Europeia supra-estatal e deve ser reconhecida como tal: “Uma constituição material, informal, só parcialmente escrita, largamente jurisprudencial”. E a principal conclusão que tira, e aqui não há apenas reflexão política, mas oportunismo táctico, é que os Tribunais Constitucionais nacionais estão a deliberar de forma errada e passadista “muito fixados num conceito de Estado pós-westfaliano (povo, território e soberania) e num conceito de constituição escrita pós-revolução francesa”. O que Rangel está a dizer é que são tribunais europeus que devem decidir em matérias constitucionais e que os tribunais nacionais devem seguir essas normas e não as suas próprias Constituições já ultrapassadas por “um conjunto de fenómenos de natureza constitucional, com relevância constitucional, com eficácia constitucional”. 

7. Segundo Rangel a nossa verdadeira Constituição “económica” é a que resulta da nossa adesão à Europa, incorporando as “quatro liberdades fundamentais do Espaço Económico Europeu: a liberdade de movimentos de pessoas, de capitais, de produtos e de serviços” e não os “vetustos artigos do texto português” da nossa Constituição. Sendo assim “deve reconhecer-se que houve “uma alteração do sentido das normas e dos princípios, sem uma revisão formal do texto”, ou seja, deitamo-nos com a Constituição portuguesa, votada em 1976, alterada várias vezes por maioria qualificada dos deputados portugueses, e interpretada por um Tribunal Constitucional nacional, e acordamos com uma outra Constituição “não escrita” assente na jurisdição do Tribunal sediado no Luxemburgo. Tudo isto sem qualquer legitimação democrática dos portugueses (outra realidade “vetusta”), que nunca foram consultados com clareza sobre estas matérias, nem em eleições, nem em referendos de que os governos fogem como Diabo da cruz. 

 8. O que Rangel está a dizer é de uma enorme gravidade política, uma espécie de espelho invertido, ainda mais radical, das posições do PCP sobre a Europa e o euro, ambas formuladas com muito mais prudência do que o que Rangel propõe. Rangel propõe na prática um estado europeu que se sobrepõe aos estados nacionais (uma realidade “vetusta”), com o efeito de colocar em causa todos os factores decisivos da soberania e independência nacional, processo este que já está em curso com as conversas irresponsáveis sobre o “protectorado”, e a efectiva cedência do poder orçamental, essência dos parlamentos, a uma burocracia internacional e a uma governação difusa, mas alemã. 

9. A comparação com a União Ibérica tem todo o sentido, só que a “união” agora é com a União Europeia, no momento em que a sua deriva antidemocrática mais se acentua, no momento em que o domínio de interesses nacionais de países como a Alemanha moldam políticas que de europeias só tem o nome. Ou seja, uma coisa muito diferente daquela Comunidade para que Portugal entrou num passado já muito distante.

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© José Pacheco Pereira
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