ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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17.2.14
A ABJECÇÃO DAS PRAXES
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É-me pessoalmente repugnante o espectáculo que se
pode ver nas imediações das escolas universitárias e um pouco por todo o
lado nas cidades que têm população escolar, de cortejos de jovens
pastoreados por um ou dois mais velhos, vestidos de padres, ou seja, de
“traje académico”, em posturas de submissão, ou fazendo todo o género de
humilhações em público, não se sabe muito bem em nome de quê.
Há índios com pinturas de
guerra, meninas a arrastarem-se pelo chão, gente vestida de orelhas de
burro, prostrações, derrame de líquidos obscuros pela cabeça abaixo, e
uma miríade de signos sexuais, e gestos de carácter escatológico ou
coprológico, que mostram bem a fixação dos rituais da praxe numa idade
erótica que o dr. Freud descreveu muito bem.
Talvez pelas alegrias
de ser vexado, o objectivo do coma alcoólico é muito desejado e o mais
depressa possível. De um modo geral está quase tudo em adiantado estado
de embriaguez, arrastando-se ao fim do dia pelos sítios mais
improváveis, bebendo aquelas bebidas como os shots que são o
atestado de que não se sabe beber, um álcool forte seja ele qual for,
absinto, vodka ou cachaça e um licor ou sumo ultradoce para ajudar a
engolir. Os nomes dos shots, do popular “esperma” ao “orgasmo”,
passando pelo B-52, “bomba atómica”, "vulcão”, “bomba”, “Singapura”,
“broche”, “inferno”, “chupa no grelo”, "Kalashnikov”, “levanta-mortos”
ao “vácuo” (muito apropriado), fazem parte da cultura estudantil da
Queima e da praxe. Por cima disso tudo, hectolitros de cerveja, a bebida
que o nosso diligente ministro da Economia conseguiu retirar da
proibição de servir bebidas alcoólicas a menores, um exemplo do que
valem as ligações políticas de um gestor no seu sucesso como
empreendedor.
A praxe mata, já tem matado, violado e agredido,
enquanto todos fecham os olhos, autoridades académicas, autoridades,
pais, famílias e outros jovens que aceitam participar na mesma abjecção.
Já nem sequer é preciso saber se os jovens que morreram na praia do
Meco morreram nalguma patetice da praxe, tanto mais que parece terem
andado a seguir uma colher de pau gigante, fazendo várias momices, uma
das quais pode ter-lhes custado a vida. Eu escreveria, como já escrevi
noutras alturas, o mesmo, houvesse ou não houvesse o caso do Meco.
(Aliás, é absurdo e insultuoso para a dignidade de quem morreu o
espectáculo de filmes de telemóvel e entrevistas que as televisões têm
passado, mas isso é outro rosário, da nossa estupidificação colectiva…)
Tenho
contra a praxe todos os preconceitos, chamemos-lhe assim, para não
estar a perder tempo, da minha geração. A praxe quando estava na
faculdade era vista como uma coisa de Coimbra, um pouco antiquada e
parola, de que, felizmente, no Porto e em Lisboa não havia tradição. No
Porto, onde estudava, havia um cortejo da Queima das Fitas e a
percentagem de estudantes vestidos de padres com capa e batina aumentava
por uma semana, mas durante o ano era raro ver tal vestimenta. A
situação era variável de escola para escola, mas a participação em
actividades ligadas com a praxe era quase nula. Aliás, qualquer ideia de
andar a “praxar” os estudantes do primeiro ano era tão exótica como a
aparição de um disco voador na Praça dos Leões. Infelizmente muitos anos
depois, apareceu uma verdadeira flotilha. Em Lisboa, muito menos, nada.
Depois, outro enxame de discos voadores com padres de capa e batina.
Quando se deu a crise em Coimbra em 1969, a contestação à praxe acentuou-se, embora algumas “autoridades” da praxe, como o dux veteranorum, tenham
apoiado a luta estudantil. Se em Coimbra a Queima das Fitas foi
contestada, porque violava o “luto académico”, no Porto, as tentativas
de a manter acabaram em cenas de pancadaria com grelados e fitados até
que progressivamente desaparecerem do mapa. Tornava-se então evidente
que o nascente conflito sobre a Queima no Porto se tinha tornado
politizado entre uma universidade que as autoridades da ditadura cada
vez menos controlavam e a tentativa de encontrar, por via da praxe, uma
forma de resistência ao movimento associativo e estudantil. As últimas
lutas mais importantes no Porto, como a contestação do Festival dos
Coros, com as suas prisões em massa, tinham colocado as praxes e a
Queima das Fitas do lado do regime e provocaram um longo ocaso das suas
manifestações. Até um dia.
Eu participei nessas escaramuças políticas, mas também culturais, e escrevi alguns panfletos, incluindo um, Queimar a Queima,
que circulou pelas três universidades em várias versões e edições. Mas,
na luta contra a praxe, tornava-se cada vez mais evidente já nessa
altura que estava em causa não apenas a conjuntura desses anos de brasa
estudantis, mas também uma recusa da visão lúdica e irresponsável da
juventude, e que, se se tratava de um rito de passagem, era para a
disciplina da ordem e da apatia política. Rallies, touradas,
bailes de gala, beija-mão ao bispo na bênção das pastas – tudo
acompanhado pelas autoridades académicas muito contentes com a
“irreverência” dos “seus” jovens, quando ela se manifestava naquelas
formas – eram muito mais uma introdução à disciplina do que o despertar
de qualquer consciência crítica. No fundo, o que se pretendia era que
houvesse uma “explosão” de inanidades, a que depois se seguiria a
disciplina da vida adulta, casamento, emprego, família e filhos, ordem
social e hierarquia.
Ao institucionalizar a obediência aos mais
absurdos comandos, a humilhação dos caloiros perante os veteranos, a
promessa era a do exercício futuro do mesmo poder de vexame, mostrando
como o único conteúdo da praxe é o da ordem e do respeito pela ordem,
assente na hierarquia do ano do curso. Mas quem respeita uma hierarquia
ao ponto da abjecção está a fazer o tirocínio para respeitar todas as
hierarquias. Se fores obediente e lamberes o chão, podes vir a mandar,
quando for a tua vez, e, nessa altura, podes escolher um chão ainda mais
sujo, do alto da tua colher de pau. És humilhado, mas depois
vingas-te.
Nos dias de hoje continua para mim evidente o papel
deste tipo de rituais na consolidação de uma vida essencialmente amorfa e
conservadora, desprovida de solidariedade e intervenção social e
política, subordinada a todos egoísmos e disponível para todas as
manipulações. Aliás, a evidente ausência do movimento associativo
estudantil da conflitualidade dos dias de hoje e a fácil proliferação
das “jotas” nessas estruturas, tanto mais eficaz quanto diminui a
participação dos estudantes em qualquer actividade que não seja lúdica
(numa recente eleição na Universidade do Porto para um universo de 32000
estudantes participaram 2000, em contraste com uma muito maior
mobilização dos professores num processo eleitoral do mesmo tipo),
acompanham a generalização da submissão à praxe. De facto, a praxe mata,
às vezes o corpo, mas sempre a cabeça.
NOTA:
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© José Pacheco Pereira
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