A propósito do centenário lembro aqui um texto já antigo (2006), em que algumas ligações já não funcionam, e uma tentativa de fazer um blogue sobre Camus que se encontra para aí no cemitério da Rede: Cadernos de Camus.
OS BLOGUES ANTES DOS BLOGUES
"Tenho o fragmento no sangue."
(Cioran)
A
escrita que se encontra hoje nos blogues é velha como o tempo, embora o
tempo pregue partidas, transformando as coisas noutras muito
diferentes. O tempo é aquilo a que hoje se chama os "suportes", no caso
da escrita na Rede, a forma dos blogues.
Repito, a tecnologia do
software em que assentam os blogues tem um papel ao moldar a sua forma.
Vimos no artigo anterior como ela valoriza o presente, presentificando a
escrita, obrigando-a à actualidade. Agora podemos ver como ela acentua
aspectos da escrita: favorece o texto contido, aquilo que na linguagem
da blogosfera se chama o "post curto". O "post curto" gera uma tensão
sobre o espaço das palavras, acentua a utilização estética da frase, em
combinação com o título e com outros elementos gráficos. O facto de os
blogues poderem usar simultaneamente texto e imagens, sons e vídeo está a
dar origem à primeira grande vaga de um novo tipo de textos, nascidos
na Rede e para serem lidos na Rede.
Os blogues revelam e geram novas normas de leitura na Rede que são distintas dos livros, acentuando a não-linearidade da leitura. Esta segue não apenas a frase, mas as ligações, ganha em espessura ao deslocar-se entre as diferentes páginas associadas pelo hipertexto ( mais em Hypertext).
Move-se não apenas no texto, mas também pelas imagens e sons ligados ao
texto, em detrimento da leitura sequencial, habitual no livro e nos
jornais. A leitura num ecrã raras vezes anda para trás, tende a andar
para o lado antes de andar para a frente. A escrita nos blogues é
moldada por estas características físicas do novo texto electrónico e,
no seu conjunto, está a ensinar a uma geração um novo cânone de leitura e
escrita que poucos exploram conscientemente, mas que molda a todos.
Ora
nem todo o tipo de texto, nem todos os conteúdos se prestam a esta nova
forma que despedaça legibilidades antigas a favor de novas. No "post
curto" a escrita vai desde a mera frase com uma ligação, ou seja, uma
porta, um caminho que nos leva para longe daquela página, daquele ecrã
até à entrada diarística, impressionista ou faceta, até ao mini-ensaio,
pouco mais do que o aforismo. É uma escrita que favorece, comunicando
quer com os títulos de jornais, quer com o aforismo, a utilização de
mecanismos poéticos, mas também humorísticos e sarcásticos. Nesse
sentido os blogues caem sob a crítica que Lukács fazia aos textos de Nietzsche -
a de serem, pela sua forma, naturalmente irracionalistas, valorizando a
metáfora, a sedução estética, em detrimento da argumentação.
Que
textos têm esta qualidade de serem protoblogues? Toda a escrita moldada
pelo tempo, ou pela "construção" da personagem (ou da obra) pelo tempo.
Os diários, ou uma forma muito francesa de diários, os "cadernos". Mas
também alguma correspondência e ensaios. Textos que colocados em blogues
parecem ser escritos para blogues encontram-se no Para Além do Bem e do Mal de Nietzsche, em anotações de Kafka, nos
"propos" de Alain, nos diários de Morand, nos "cadernos" de Camus,
Valery e Cioran. Noutros casos, o tempo e a história "partiram" os
textos originais, dando-lhe essa qualidade de escrita de blogues, como
acontece com os fragmentos dos pré-socráticos, restos de textos mais
compridos, de tratados e de livros. E muito do que encontramos em
dicionários de citações, frases que vivem por si próprias, são
matéria-prima de blogues.
No
plano gráfico, muitos "cadernos" de desenhos, a começar pelos desenhos
de Leonardo da Vinci com anotações, muito dos moleskines de artistas, em
que o esboço e o texto manuscrito se entrelaçam, alguma banda
desenhada, alguns livros de viagens. A fotografia deu origem a
fotoblogues, mas está longe de revelar as suas potencialidades na
construção narrativa dos blogues, para onde transporta, em imagem, tudo o
que valoriza o texto curto: a impressão, o fragmento da realidade, o
"olhar" no tempo. No vídeo, o sketch,
o pequeno filme caseiro do género dos "apanhados", alguns filmes
publicitários. O som é o menos explorado nos blogues, mas a sua
utilização, por exemplo no Kottke.org
como complemento de viagem - o som dos semáforos de Singapura, o ruído
de um mercado, o barulho de uma fábrica -, acentua a fragmentação da
narrativa ou da ilustração que está no âmago da escrita dos blogues.
Muito
significativamente, todo este tipo de material é favorito na actividade
de "cópia-colagem" que também a forma blogue e a Rede favorecem,
apropriando-se cada um das citações, de textos e imagens que servem de
reforço da sua identidade em linha. Nalgumas experiências com sucesso na
blogosfera, diários foram colocados na Rede, como o de Samuel Pepys,
que foi transformado num blogue, com o texto original e ligações, dando uma nova legibilidade ao texto original do século XVII.
Seria
possível fazer o mesmo com muitos "cadernos" de Cioran, Camus e Valery,
muito diferentes entre si, mas todos passando o teste do blogue. O
facto de, no caso de Cioran, este não ter a intenção de os divulgar e
inclusive ter pedido para que fossem destruídos, não retira aos seus
textos a pulsão fragmentária que os aproxima do registo dos blogues.
Aliás, Cioran, autor dos Silogismos da Amarguraé um cultor de uma forma de escrita muito adaptada ao "post curto".
Valery
passava o teste e os seus cadernos ganhariam muito com o uso de
hipertexto e ligações. Um aspecto fundamental, nos cadernos de Valery, é
a sua utilização como instrumento para a construção da obra, como meio
de treinar o pensamento, mas também de o desenvolver, experimentar,
testar, deixando-o aparecer sem a responsabilidade do ensaio final, do
livro a publicar. Valery usava os seus cadernos, que escreveu
ininterruptamente (no final eram cerca de 261 com 28.000 páginas), como
um instrumento para pensar, fazendo uso não só da escrita, mas também do
desenho, e escrevendo sobre tudo: arte, filosofia, poesia, matemática. E
escreveu sobre como o "eu", como o "seu cogito" "funcionava", matéria
de blogues, como se sabe.
Camus
é, de todos, quem, sem dúvidas, faria um blogue excepcional. A escrita,
umas vezes mais tensa e outras mais solta, curta e imagética,
intercalando fragmentos de diálogos, recordações de paisagens e de
encontros, notas de leitura, revela o olhar de Camus sobre a sua
geografia africana peculiar, a Argélia, e sobre os acontecimentos que
está a viver. Os cadernos de Camus não só suportariam o formato do blogue,
como ganhariam com a imagem na sua dimensão mediterrânica. Ganhariam
também com o hipertexto, embora menos que Valery ou Cioran, que quase o
exigem para serem devidamente lidos.
Em todos os casos que
referi, a legibilidade dos textos na actualidade ganharia com a forma
blogue, pela representação mais perfeita do tempo que a Rede permite. Os
cadernos de Camus são os que melhor se lêem, enquanto os de Valery e de
Cioran só são legíveis, na sua forma livro, em antologias depuradas. O
de Cioran tem centenas de páginas de um grosso volume e os de Valery
estendem-se por dez volumes na edição da Gallimard. Mesmo em Portugal
foram os únicos divulgados numa edição barata e popular, de há muito
esgotada.
Por tudo isto, valia a pena, e acabará com certeza por
ser feito, o teste prático de colocar todas estas escritas na Rede
usando modelos iguais ou próximos dos blogues. A blogosfera terá então
ao seu lado Nietzsche, Valery, Camus, Cioran e tantos outros, como
autores de blogues.