ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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9.11.13
MANUAL PARA LER O VAZIO
1. O papel a que se chamou o
"guião para a reforma do Estado" apresentado por Paulo Portas, a solo, é
um documento bizarro em qualquer governo. Um subtítulo diz que se trata
de uma "proposta do Governo", não se sabe a quê nem a quem, mas
significa que foi sancionado pelo Conselho de Ministros. No entanto,
sendo em teoria pelo seu título, circunstâncias e longa preparação(?), o
mais importante documento do Governo Passos Coelho, não se percebe que
não tenha sido o primeiro-ministro a apresentá-lo.
Na verdade,
percebe-se, o verdadeiro documento para "reforma do Estado" é o
Orçamento restritivo e de continuidade que na mesma altura estava a ser
discutido no Parlamento, que é a materialização da saga dos cortes desde
que Passos Coelho apareceu aflito a falar da "refundação do memorando".
Essa é que é a política que conta. Este papel de Portas não é tomado a
sério por ninguém, a começar pelos seus colegas do Governo. "É uma coisa
do Portas", não é política a sério.
Compreende-se porquê. Este é
um documento pomposo, mistificador e assustadoramente vazio. Numa altura
em que o país se encontra num momento muito difícil da sua História e
em que a exigência da governação deve ser maior, depois de todas as
cenas com a "reforma do Estado" esperava-se outra coisa que não fosse
esta medíocre compilação de lugares-comuns, soluções contraditórias, e
formulações vagas e vazias. Como tudo o que Portas faz hoje, ele é muito
mais um monumento de papel à sua sobrevivência política, do que
qualquer outra coisa. E como acontece com quem já se está há muito tempo
a afundar, é mais um esbracejar do que sequer uma vinda fugaz à tona.
No
entanto, vale a pena perder algum tempo com ele porque mostra muito do
que habita a cabeça dos governantes e da sua ostensiva falta de
preparação para os tempos que vivemos. Portas coordenou-o, pediu
trabalhos aos assessores, mandou copiar umas ideias de Livros Brancos,
recebeu propostas dos ministros, que juntou numa amálgama sem nexo.
Depois acrescentou-lhe os seus habituais soundbites e
frases-títulos para pastorear a comunicação social, mas já nem sequer
isso ele faz com muita convicção porque deu tanta reviravolta que se
gastou, está usado, reciclado muitas vezes, baço e sem brilho.
2. O
documento retrata bem o vazio de pensamento desta geração de políticos,
o entranhamento do "politiquês" como linguagem, os slogans, e a
completa falta de vergonha em nos enganar por regra e sistema, como quem
respira. Por outro lado, está bem dirigi-lo ao PS, cuja linguagem
política é igual e a vacuidade semelhante.
Podia-se dizer que o
documento reflecte uma visão liberal do Estado, mas nem isso. Podia
dizer-se que o documento reflecte uma visão social-democrata do Estado,
mas nem isso. Podia dizer-se que o documento reflecte uma visão
socialista do Estado, mas nem isso. Como diz Portas, mostrando como
nenhuma coisa tem o seu significado, "é, (...) necessário afirmar que a
maioria que apoia o Governo tem uma matriz identificada com o chamado
modelo social europeu". Ou, noutra frase "hiperbólica": "O debate não
deve ficar cristalizado entre a hipérbole da estatização, (...) e o
chamado Estado mínimo ou Estado de mínimos, cujos conceitos esta maioria
política não partilha. O objectivo é construir um Estado melhor." De
facto, palavras tão vazias como "melhor" resolvem tudo. Ou seja, é isso
tudo, liberal, social-democrata, socialista, e coisa nenhuma, um
pastiche ideológico e político, subordinado ao papel que Portas quer ter
de moderado, humilde, sensato e reformista. Tudo aquilo que não é.
3.
A característica dominante do documento é a prevalência do truísmo, do
lugar-comum e da frase feita. Se cortarmos os casos mais evidentes,
deixando mesmo assim muitos outros, fica reduzido a meia dúzia de
páginas. Exemplos: "A reforma do Estado é um processo contínuo e
coerente"; "Reformar o Estado é racionalizar as suas entidades";
"Reformar o Estado é ganhar eficiência"; "Reformar o Estado é
simplificar procedimentos"; "Reformar o Estado é tornar a justiça mais
amiga do cidadão e da economia"; "Reformar o Estado é modernizar a
Defesa Nacional ", etc.
Muitas destas frases podiam ser escritas
de trás para a frente, mudando os verbos e os adjectivos, que fica tudo
na mesma. Por exemplo: "Reformar o Estado é não desistir da eficiência e
reforçar a transparência", podia ser "reformar o Estado é reforçar a
eficiência e não desistir da transparência".
Mesmo saindo das
frases curtas citadas acima, para não entediar o leitor, quando se vai
mais longe é a mesma colecção de banalidades. Por exemplo: "O nosso
objectivo é reformar, pensando na coesão social e com abertura à
negociação política e na concertação social, factores distintivos de
Portugal neste tempo excepcional que estamos a viver." Não é verdade,
basta ler os documentos com origem na concertação social, ou a recusa do
PS, mas mesmo que fosse, o que é que adiantam frases como estas? Ou
falando da diplomacia económica, mais uma banalidade cuja repetição não
vale o preço da tinta da impressora: "A escolha, preparação e formação
dos diplomatas portugueses deve acentuar a componente económica e
empresarial, e o mapa das embaixadas e consulados portugueses não deve
ser estático, de modo a acompanhar a vertiginosa mudança da economia
global e as oportunidades que esta abre". Ou, em mais uma frase feita,
como toque de Portas: "Se o exemplo vem de cima, é preciso referir,
desde logo, a necessidade de a própria organização dos ministérios ser
melhorada". Ok, fico deslumbrado!
4. O grau de vacuidade é tal que
ficamos sem saber o que se pretende dizer com frases pomposas como
esta: "Não tendo o Governo poder de iniciativa em sede de revisão
constitucional, declara-se, no entanto, a nossa abertura para reformar a
arquitectura institucional do sistema judicial, o que pressupõe um
esforço de consensualização política. Mas que "arquitectura
institucional" é esta? Silêncio. Mais à frente: "Revalorizar um Estado
imparcial perante as empresas, intransigente quanto a actividades
ilícitas, e transparente, desde logo, com os seus serviços, constitui
também uma obrigação reformadora." Mas o que é que isto quer dizer, que
não seja já presente na suposta existência de um Estado de direito em
Portugal que combata as "actividades ilícitas"? Um dos aspectos que mais
sobressai nestes truísmos e na vacuidade do papel é o seu carácter
proclamativo. Portas proclama tudo e mais alguma coisa. Por exemplo: "A
função educativa do Estado é primordial e não está - nem estará - em
causa". E depois?
5. Claro que a assinatura de Portas está muito
presente em certas frases e em particular nos soundbites, de que o
melhor exemplo é ""cortar" é reduzir; reformar é melhorar. Pouco importa
que não haja uma única parte concreta do documento em que os cortes
realizados não estejam justificados como se tivessem nexo. Supostamente o
documento destinar-se-ia a superar uma mera política de cortes
(desculpem, poupanças), mas na verdade aqui ele tem que voar muito baixo
para não ter os seus colegas ministros à perna. Com ele diz, deve
inserir-se na "trajectória": "Uma nova geração de reformas no Estado tem
de ser coerente com a trajectória de garantir que há consolidação
orçamental". E por isso repete todas as falsidades relativas aos cortes
dando-lhes um enquadramento teórico, fazendo aqui aquilo que Maduro
habitualmente faz como intelectual de serviço. Um exemplo é a história
das 40 horas na função pública, cujo verdadeiro objectivo é deixar de
pagar horas extraordinárias e abrir caminho para os despedimentos, mas
que Portas alcandora a reforma estrutural. Ou seja, tudo o que foi feito
para cortar, tantas vezes a olho, encontra aqui justificação no "Estado
melhor".
6. Nesta selva de vacuidades vale a pena discutir as
medidas? Vale pouco, porque este papel não tem função, até porque a
maioria delas podiam ser feitas por este Governo que tem maioria
absoluta, sem qualquer dificuldade. Que impede o Governo de recomeçar de
novo com o Simplex, ou vender escolas, ou "introduzir mecanismos de
maior articulação, coordenação, transparência e eficiência", seja lá o
que isso for? Se não as faz é porque não quer ou não sabe fazê-las e
para isso este "guião" não serve para nada, como muito bem sabem os
colegas de Portas no Governo. E Passos Coelho, que o deixa, como dizem
os franceses, "patauger dans sa sauce".
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© José Pacheco Pereira
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