
ÁLVARO CUNHAL: BIOGRAFIA DE UMA BIOGRAFIA
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1. Entre 1999 e 2005, publiquei três volumes de uma 
biografia de Álvaro Cunhal, e estou neste momento a trabalhar no quarto,
 correspondendo aos anos de 1960-1968. Começa na primeira noite que 
Cunhal viveu em liberdade, depois da fuga [da prisão de Peniche], e 
termina com a queda de Salazar da cadeira e a sua incapacitação para 
continuar presidente do Conselho. Será o primeiro volume da série que 
termina num facto cujo significado é essencialmente político, o início 
do "marcelismo", e não é marcado por nenhum acontecimento dramático da 
vida do próprio Cunhal. Até então, no final de cada volume, havia uma 
mudança significativa das próprias circunstâncias biográficas de Álvaro 
Cunhal, a "reorganização" do PCP em 1941, a sua prisão em 1949, e a fuga
 de Peniche em Janeiro de 1960. Acresce que cada um destes 
acontecimentos compreendia um ciclo de dez anos, cada década muito 
diferente da anterior. Do ponto de vista da narração era uma sequência 
ideal, e marcava um fim lógico para cada volume que podia assim conter 
uma "história" com princípio, meio e fim.
 
 2. Quando comecei a trabalhar na biografia de Cunhal, a
 URSS terminara como realidade geopolítica, o sistema comunista mundial 
desagregara-se e a guerra fria passara à história com uma clara vitória 
americana e dos seus parceiros da OTAN. Um subproduto dessa importante 
mudança história foi a abertura atribulada dos arquivos soviéticos e, 
mais tarde, de muitos outros partidos comunistas europeus. Essa abertura
 foi caótica e conheceu avanços e recuos, documentos que era possível 
ver nos anos 90 era quase criminoso tentar ver na década seguinte, 
porque se tinha de novo retomado a sua classificação de "secreto". Do 
mesmo modo, a abertura era desigual, centrava-se nos documentos da 
antiga Internacional Comunista, depositados no então chamado Instituto 
do Marxismo-Leninismo, mas depois esta fonte fechava-se nos chamados 
"arquivos presidenciais", só para se abrir excepcionalmente com a 
decisão de Ieltsin de permitir o acesso aos financiamentos do PCUS aos 
partidos comunistas. Os dinheiros deixaram de ser segredo, mas muito do 
resto voltou à velha tradição soviética onde só outro dinheiro, o das 
grandes instituições universitárias e fundações americanas, permitia, em
 joint-ventures com investigadores russos, continuar a aceder a novas 
fontes.
 3. Porém, pela primeira vez, era possível fazer uma 
história do comunismo que não se concentrava apenas nos escassos 
arquivos conhecidos, uns apreendidos durante a Segunda Guerra Mundial, 
outros resultado de personalidades que, com risco da sua própria vida e 
em segredo, guardavam cópias dos papéis que lhes passavam pelas mãos, 
como era o caso do kominterniano Jules Humbert-Droz. Começou também a 
conhecer-se mais daquilo que os serviços de informação ocidentais 
sabiam, porque nesses arquivos também a guerra fria ia acabando, como 
foi o caso do tráfego rádio conhecido como "Venona", que retratava as 
relações clandestinas da Internacional Comunista e depois do Kominform, 
mas também dos serviços secretos soviéticos. O impacto desse acesso a 
documentos numa história até então dominada pelo testemunho 
memorialístico, muito marcado pela dicotomia comunismo-anticomunismo, 
foi enorme e traumático. Em partidos como o PCF ou o PC dos EUA, e para o
 movimento comunista mundial como um todo, a abertura dos arquivos 
soviéticos suscitou polémicas duríssimas, algumas que se reflectiram na 
recepção hostil do Livro Negro do Comunismo e, nos EUA, na polémica 
ainda em curso sobre o julgamento dos Rosenberg [Julius e Ethel 
Rosenberg, casal norte-americano executado em 1953 por espionagem a 
favor da URSS], do papel de personagens como Alger Hiss [alto 
funcionário norte-americano acusado de espionagem em 1948] na espionagem
 soviética da época.
 4. Por volta de 1997, numa conversa com Francisco José
 Viegas, discuti um dilema que tinha entre escrever uma primeira 
história não-oficial do PCP ou uma biografia de Álvaro Cunhal. Pensava 
então que ainda não havia condições para fazer a história do PCP, mas 
que podia haver para escrever a biografia. Portanto, a decisão inicial 
foi puramente pragmática e a escolha biográfica não tem o sentido que 
hoje se lhe atribui de favorecer uma interpretação predominantemente 
subjectiva, pessoalizada da história, repetindo as suspeitas contra as 
biografias, que vinham da interpretação marxista da história e da sua 
revisão mais recente pelo estruturalismo.
 É verdade que havia também a intenção de alguma maneira de reabilitar a
 biografia, género que tinha caído quase em extinção. Que me recorde, 
apenas Maria Filomena Mónica, na mesma época, fazia um trabalho 
semelhante sobre Eça de Queirós. Depois as biografias tornaram-se moda. A
 escolha pela biografia como género tinha também outra vantagem - era 
privilegiar uma narração que pudesse ser facilmente lida por não 
especialistas (na verdade, na época quase não havia especialistas...) e 
usar a figura de Cunhal para fazer um embrião de história da oposição a 
Salazar. Se se quiser havia, e há, uma intenção pedagógica e cívica no 
que escrevi.
 5. Nunca esteve em causa fazer senão aquilo que nos 
meios anglo-saxónicos se chamava uma "biografia não autorizada". Tinha 
igualmente decidido não referir os aspectos da vida de Cunhal de 
natureza estritamente pessoal, quando não fossem relevantes para sua 
acção política. Eu sei que essa fronteira era muitas vezes ténue, mas 
pretendia respeitar a privacidade de Cunhal, então vivo. Tal não 
significava que não recolhesse todos os elementos sobre a sua vida, mas 
afastei deliberadamente da biografia as referências quer à sua vida 
pessoal e afectiva, assim como outros detalhes, como seja relatórios 
médicos. Escrevi então uma carta a Álvaro Cunhal dizendo-lhe da minha 
intenção de fazer uma biografia essencialmente política, sem voyeurismo 
pessoal sobre a sua vida, pedindo-lhe a sua disponibilidade para ser 
entrevistado. Nunca esperei que respondesse, mas entendi que o devia 
fazer à partida.
 6. Era por isso uma biografia não autorizada sobre uma
 figura como Cunhal, que não era uma pessoa qualquer, e sabia que corria
 à partida um enorme risco: seria sempre muito difícil sobreviver a um 
ataque directo de Cunhal, uma vez publicado um volume, que podia pegar 
em dois ou três pormenores e tentar desacreditar a obra. Sempre era da 
vida dele que se tratava e como argumento de autoridade não havia 
melhor. Isso levou-me a um extremo cuidado em fundamentar cada linha, 
mesmo sabendo que era quase certo que havia imprecisões e erros nas 
fontes, que ele poderia apontar atribuindo-me negligência ou dolo, mas 
que eu não podia corrigir sem outros elementos.
 Cunhal nunca o fez, nem ninguém do PCP por ele, e isso foi o primeiro 
sinal que tive de que a recepção do primeiro volume e dos seguintes pelo
 biografado tinha sido mais favorável do que os meus receios iniciais. 
Mais tarde vim a saber por diferentes testemunhos, que Cunhal manifestou
 várias vezes, na fase final da sua vida, uma apreciação positiva da 
biografia. Disse ao seu médico que eu sabia "mais da vida dele" do que 
ele, o que num certo sentido era verdade, porque pudera consultar 
documentos que ele desconhecia, como seja a parte soviética das notas 
das reuniões em que participara, por exemplo, com Suslov [ideólogo do 
Partido Comunista da União Soviética].
 7. Porém, não foi fácil, nem Cunhal facilitou a 
tarefa, bem pelo contrário. Cunhal, prevenido, tentou tudo para evitar 
que recolhesse depoimentos de que precisava, principalmente sobre os 
seus anos de juventude. As pessoas com que precisava de falar eram quase
 todas octogenárias e já em número reduzido. Carolina Loff recusou 
liminarmente. Ludgero Pinto Basto aceitou e depois, quando compareci a 
um encontro combinado em sua casa, não abriu a porta. Soube depois que 
Cunhal o contactara. Havia uma espécie de omertà que reduzia o número de
 depoimentos directos, em particular os mais importantes para esse 
período.
 Eu dispunha de alguns depoimentos obtidos sobre o PCP e Cunhal, 
anteriores à decisão de escrever a biografia, desde o tempo da revista Estudos sobre o Comunismo,
 incluindo os de Francisco Ferreira e Cansado Gonçalves, e tivera um 
encontro com "Pável" quando ele esteve em Portugal. Podia sempre fazer 
essa história com os documentos da Internacional em que Cunhal estava 
presente, mas seria diferente sem o comentário testemunhal de quem o 
conhecera in the making. Foi Stella Piteira Santos que rompeu 
esse silêncio e a sua colaboração dedicada foi fundamental para obter um
 fluxo de informações e "percepções" fundamentais. Fiquei-lhe sempre 
agradecido com o seu acto de coragem, porque de coragem se tratou.
 8. Quando comecei a escrever a biografia de Cunhal, 
sabia-se muito pouco sobre a história do PCP. Hoje, muito do que 
entretanto se veio a conhecer teve origem na biografia que escrevi, 
muito usada mas pouco citada ou nunca citada, no caso do PCP. Esta 
exclusão, que continua nestas "comemorações", estendia-se para além dos 
círculos do PCP para muitos que pretendiam fazer algum trabalho sobre 
Cunhal ou o PCP, e pretendiam usar a biografia ou usar-me como 
"consultor", mas punham como condição não me citar, "visto que isso 
impedia a colaboração do PCP". Mandei-os passear num sítio bizarro, mas 
nem por isso o plágio ou a estrutura da biografia deixou de ser usado 
extensivamente, havendo casos de um filme em que a vida de Cunhal era 
muito detalhada até à data em que podiam consultar a biografia que 
escrevera e depois repetia os lugares-comuns que ainda hoje circulam 
sobre Cunhal e o PCP. Passemos adiante.
 9. O que o PCP fizera de facto, que papel tinham tido 
Bento Gonçalves, José de Sousa, Miguel Wager Russell, Gilberto de 
Oliveira, e acima de tudo Francisco Paula de Oliveira "Pável" era ou 
ignorado, ou mitificado no caso de Bento Gonçalves. Numa altura em que o
 PCP era verdadeiramente uma "secção" da Internacional, controlado por 
quadros estrangeiros como Stella Blagoeva (nome então completamente 
desconhecido na história do PCP), tudo se desconhecia. O mesmo acontecia
 com a participação do PCP na guerra civil espanhola, as circunstâncias 
do seu afastamento da Internacional, e o confuso e obscuro processo da 
reconstituição das redes internacionais, entre a política e a 
espionagem, depois de 1939. No meio disso tudo, era preciso retratar o 
papel que começava a ter esse jovem em ascensão que era Álvaro Cunhal, 
papel que a "história oficial" ocultava de todo, até porque estava bem 
longe de ser linear.
 
  
 10. Essa "oficialidade" da história reflectia-se em 
particular nos anos muito complexos de 1939-41, o período do Pacto 
Germano-Soviético, com o PCP afastado do movimento comunista 
internacional, e nos anos de duro conflito fraccionário interno entre o 
grupo libertado do Tarrafal e a direcção legítima do partido no 
interior. Cunhal foi um activo defensor do Pacto Germano-Soviético, 
escrevendo sob o seu nome no Diabo alguns dos artigos que mais longe iam
 na legitimação da concepção de que Inglaterra e França eram iguais à 
Alemanha nazi. Porém, a colaboração de Cunhal no jornal que substituíra o
 Avante!, o Em Frente, foi e é cuidadosamente esquecida. Aliás, para 
todos os efeitos o Em Frente não existiu nunca na historiografia do PCP.
 A mesma ocultação se passava do papel de Cunhal, que estava ligado à 
direcção do interior, era visto com suspeita pelos "reorganizadores" e 
depois muda de campo e torna-se um dos principais activistas do grupo de
 Fogaça, Militão, Pires Jorge, Vilarigues e Dias Lourenço, escrevendo um
 violento requisitório contra os seus antigos companheiros, agora 
intitulados de "grupelho provocatório".
 11. Ao escrever sobre Cunhal tive que reconstruir uma parte importante 
da história do Partido Comunista Português (PCP). Isto significava dar 
uma outra vida a personagens que eram nomeadas (as que não tinham caído 
em desgraça), mas que, com excepção da memorialística da repressão, na 
prática não existiam como parte activa dessa história. Cunhal ofuscava 
muitas dessas pessoas, muitas vezes com um papel decisivo em eventos da 
história partidária, mas a "história oficial" ofuscava-os muito mais. 
Eles apareciam como paisagem, mas não como actores.
 Ora essa história foi feita por eles, para o bem ou para o mal da 
"história oficial", mas eles eram homens de carne e osso, muitos ainda 
vivos quando comecei a escrever a biografia e com um sentimento de 
injustiça, que algumas vezes exprimiam sobre o seu "apagar" da história.
 Estavam na história heróica e épica, mas não na história política.
 12. Havia casos flagrantes de pessoas como Pires Jorge, com um papel 
decisivo em toda a história do PCP, dos anos trinta até ao pós-25 de 
Abril, que deixara um pequeno volume de memórias ao estilo habitual e 
impessoal, mas cujos actos, decisões, opções, modus operandi na 
clandestinidade, fora decisivo na história do PCP, e que falecera sendo 
um "nome", mas não uma vida. O mesmo acontecia com muitos outros como 
Dias Lourenço, que era uma daquelas pessoas que "sabia tudo", ou Jaime 
Serra, militantes e dirigentes cujo contributo para a história do PCP 
está muito para além da versão "oficial". Muitos outros, cujo rastro nas
 breves necrologias do Avante! aparecia retratado em frases vagas e 
estandardizadas. Um dos aspectos mais problemáticos de ter uma "história
 oficial" é não incentivar a história real, e objectivamente favorecer o
 esquecimento.
 Recordo-me a este propósito de um encontro (junto com João Arsénio 
Nunes) com Manuel Guilherme de Almeida, um velho alfaiate, decano da sua
 classe profissional, na sua loja de alfaiataria chamada Academia de 
Corte Maguidal. Ele recordava que quando foi preencher a sua ficha 
depois do 25 de Abril no PCP e, perguntado sobre desde quando era membro
 do PCP, respondeu 1921. E contava ele, com ironia e alguma revolta, a 
"menina" nem pestanejou, ignorando que estava perante o último 
sobrevivente vivo da fundação do PCP.
 13. Na biografia de Cunhal este foi um aspecto que sempre me interessou,
 dar cabeça, tronco e membros a todos aqueles que fizeram o PCP e a 
resistência ao salazarismo. Devo por isso e para isso, muito a homens 
como Dias Lourenço ou a Jaime Serra. Lourenço, comquem várias vezes me 
encontrei e que, mais do que factos e histórias, me permitiu perceber as
 relações pessoais entre o pequeno grupo de dirigentes que conduziu o 
PCP desde a "reorganização" de 1941 até ao pós-25 de Abril, as suas 
idiossincrasias, simpatias e antipatias.
 O papel de Fogaça, que já pudera antever em conversas com os seus 
companheiros dos anos trinta, em Portugal e no Tarrafal, como era o caso
 de Francisco Ferreira ou Francisco de Sousa ("Macedo"), podia assim ser
 "actualizado" até aos anos do "desvio de direita" e à sua queda e 
condenação. O modo como a questão da homossexualidade de Fogaça era 
vista por dentro do partido, onde era conhecida sem ambiguidades, fez-me
 sempre duvidar da ideia de que fora afastado por essa razão, por um 
qualquer sobressalto moralista. Estamos a falar de um partido onde 
centenas de militantes passaram pela prisão e, quer no Tarrafal, quer 
nas prisões insulares e continentais, práticas homossexuais eram 
conhecidas e aceites, com muito menos puritanismo do que se imagina. 
Como sempre acontece em organizações clandestinas perseguidas como era o
 PCP, o problema essencial era saber se elas punham em causa a 
"segurança" da organização. Essa é que era a "linha vermelha".
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14. O enorme pragmatismo dos dirigentes clandestinos com mais 
experiência, em que talvez o caso mais evidente seja o de Pires Jorge, 
levavam-nos a ver com muito mais desprendimento e sem qualquer 
puritanismo, as forças e fraquezas da condição humana de homens e 
mulheres que viviam no limite do risco. A excepcional experiência 
clandestina da direcção do PCP, que Cunhal também traduziu no Se Fores 
Preso Camarada..., apelando mais aos valores mediterrânicos da "honra e 
vergonha" do que à ortodoxia comunista, permitia muito mais consciência e
 tolerância com as fraquezas do que apologia das forças. A sexualidade 
tinha aí um papel importante, como bem eles sabiam, mesmo para o caso de
 Cunhal, sabendo bem de mais o que significava para um homem estar preso
 na pujança da sua idade adulta. Ou para os pais de crianças na 
clandestinidade que tinham que se separar dos seus filhos, o ónus que 
isso significava para as mães.
 
 15.Esquece-se também que os critérios morais dos anos trinta em que 
estes homens se formaram e dos anos cinquenta em que eram dirigentes são
 muito diferentes dos posteriores aos anos sessenta, e muitas atitudes, 
principalmente face às mulheres, não podem ser vistas do presente para o
 passado. A idealização meli-melo da biografia de Cunhal, hoje em curso 
por certo jornalismo apoiado pelo PCP, a quem interessa reconstruir a 
"humanidade" de Cunhal transformando-o num bom filho, bom pai, bom 
irmão, bom marido e bom "namorado", pode ser sobre muita gente, mas não é
 sobre o Cunhal real.
 16.Com pesar da minha editora, o meu próximo volume da biografia de 
Cunhal não vai sair a tempo do centenário de Cunhal. Digo isto à 
vontade, porque sou sensível à fragilidade do mercado livreiro e se 
tivesse possibilidade teria certamente acabado o livro a tempo de 
engrossar a "moda Cunhal". Mas continua a não ser fácil escrever sobre 
Cunhal e o PCP, e em cada época os problemas são diferentes.
 Para o período de 1960-8, há um problema central com as fontes 
disponíveis, diferente dos volumes anteriores. Existe um número de 
depoimentos e testemunhos possíveis muito superior, embora ainda muito 
marcados quer pela dissidência, quer pela dicotomia 
comunismo-anticomunismo. Mas, pelo contrário, escasseiam os documentos 
que contam. Os arquivos soviéticos para este período estão fechados ou 
são escassos, embora alguma coisa possa ser reconstruída dos arquivos 
dos partidos comunistas europeus ou americanos que já estão abertos. 
Porém, desde 1961 que a PIDE nunca mais apreendeu qualquer arquivo 
"central" do PCP, visto que desde 1960, o PCP usando uma máquina que 
viera da RDA, passou a fotografar e microfilmar os seus documentos e a 
levá-los para fora do país. De igual modo, muito do que de mais 
significativo aconteceu nesses anos já ocorreu fora de Portugal, 
reuniões do Comité Central, o VI Congresso e toda a documentação do 
Secretariado, nunca entrou em Portugal até 1974. Depois do 25 de Abril 
parte significativa dessa documentação regressou, mas permanece 
encerrada no arquivo do PCP. Não perdi de todo a esperança de o PCP 
poder ter uma atitude de maior abertura - apesar de tudo a publicação 
das Obras Escolhidas de Cunhal é uma ruptura nas práticas da 
"história oficial" -, percebendo que muitos dos documentos cujo acesso 
nega podem permitir que o verdadeiro papel do PCP na história portuguesa
 se possa estabilizar sem mitificações, mas também sem vilipêndio.
 17. Sem os documentos, subsiste o problema das fontes testemunhais 
disponíveis, a cujo acesso o PCP tem facilitado em particular a 
jornalistas de direita cujo conhecimento da história do PCP é escasso. 
Na elaboração do actual volume coloco em bases de dados toda a 
informação disponível que é possível extrair desses depoimentos e 
defronto-me com um problema que muita da indústria do centenário 
desconhece ou omite: é que, mesmo oriundos da mesma pessoa, mesmo vindos
 de gente com enorme proximidade aos factos, os depoimentos não 
"encaixam" nem nas datas, nem nas circunstâncias, nem no conteúdo. E 
então quando há documentos, ainda menos "encaixam". Umas vezes é a 
memória que falha e é inocente a reconstrução errada do passado, outras 
vezes é deliberado.
 18.  Por exemplo, como e onde viveu Cunhal em Moscovo? A habitação muitas 
vezes referida como sendo a de Cunhal, numa espécie de "Telheiras" 
soviética, é-lhe atribuída por deliberação datada do Politburo do PCUS, 
quase em vésperas da sua saída de Moscovo para Paris. Cunhal teve que 
viver noutros locais, e de facto fê-lo em hotéis do partido soviético, e
 noutro apartamento diferente. Por que razão deixou Moscovo por Paris, 
aparentemente sem grande antecipação? Como é que vivia em França 
clandestinamente, tanto mais que existia um mandato da polícia francesa 
contra ele? Por que razão as relações próximas com o partido romeno e 
com Ceausescu, visível em várias fotografias do exílio omitidas nas 
fotobiografias, são minimizadas, apesar da rádio do PCP estar em 
Bucareste? Foi Cunhal em 1961 em viagem para a URSS, tendo sido a 
decisão de aí permanecer apenas posterior à queda do Secretariado em 
finais de 1961, ou já havia a decisão do exílio antes dessa data? Quis 
Cunhal desencadear alguma forma de luta armada em 1964, ou pelo 
contrário, como dizem os esquerdistas, nunca o admitiu? Como 
compatibilizar a simpatia que Cunhal mostra pela experiência checa de 
Dubcek [líder comunista durante a Primavera de Praga, em 1968] e o 
imediato apoio à invasão soviética?
 As questões são muitas e é uma resposta fundamentada a essas questões 
que me atrasa, mesmo dedicando todo o tempo possível a trabalhar na 
biografia.
 19..As minhas objecções à mitificação de Cunhal, que à direita e à 
esquerda se faz no seu centenário, vem de considerar que Cunhal é muito 
mais interessante como personagem, e foi suficientemente importante na 
História contemporânea de Portugal, para ficar preso num pedestal. 
Talvez se perceba melhor a complexidade da personagem, que é outra coisa
 diferente da reconstrução "afectiva" de Cunhal ou do seu culto de 
personalidade político, se tivermos em conta como ele se retratou na sua
 autobiografia, que não tem este nome.
 Na sua ficção, Cunhal escreveu mais do que as suas memórias, escreveu a
 sua autobiografia e, com excepção da sua experiência moscovita, de que é
 parco em palavras, escreveu sobre a sua juventude e a viagem à URSS nos
 anos trinta, sobre a sua estadia em Espanha no início da guerra civil, 
sobre a sua passagem por um regimento de "corrécios", sobre a sua 
clandestinidade nos meios camponeses, sobre a sua prisão e os seus 
companheiros de prisão, sobre a sua passagem de fronteiras, mesmo sobre o
 pós-25 de Abril e o mundo dos Centros de Trabalho do PCP. E retratou-se
 sempre em várias personagens, algumas compósitas outras inteiramente 
identitárias.
 Todas são perfeitas a seu modo, mesmo nos seus defeitos. As palavras 
mais sensatas saem da sua boca, as decisões mais acertadas pelo bem de 
todos, do partido, dos seus companheiros, são por ele ditas, os 
sentimentos mais humanos de compreensão e tolerância, são por si 
manifestados, a maior disponibilidade para o sacrifício, as maiores 
exibições de ausência de vaidade e, como se diz hoje, de "protagonismo" é
 sempre ele no papel das suas personagens que o revela.
 20..Ao homem que escreve assim sobre si próprio falta pelo menos uma 
coisa que os teólogos da Idade Média, que tinham que lidar com as ordens
 monásticas, conheciam bem. Falta-lhe "humildade", manifesta uma forma 
muito especial de vanitas, de vaidade. Não é a das pessoas comuns, mas é
 vaidade, é actuar como se a corrente invisível da História, com H 
grande, passasse pelo seu corpo. S. Bernardo, que escreveu para os 
monges, ou seja gente dedicada a Deus e à sua Ordem, como Cunhal o era à
 História e ao seu partido, sabia bem como era difícil combater esta 
forma de orgulho, que faz muito grandes homens, mas não os torna santos,
 nem santos laicos.