ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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25.10.13
O GÖTTERDÄMMERUNGZINHO
Entre os produtos do
romantismo alemão que circulam na cultura popular está a ideia do
Götterdämmerung, título de uma ópera de Wagner, mas, mais do que isso,
uma vasta encenação trágica do fim, da decadência, da queda. Não de uma
queda qualquer, mas de um fim dos tempos, em que tudo desaba e se
desintegra, corpos, cabeças, nações, impérios. No final da ópera tudo é
destruído pelo fogo e pela água, num reverso da criação original, em que
mesmo os deuses conhecem o seu destino final. Como sempre, em todo o
romantismo alemão, a morte tem um papel central.
Os dicionários enunciam variadíssimos significados para o poderoso tom de fim do "crepúsculo dos deuses": em francês, "déclin", mas também "dégringolade"; para o inglês "demise", "descent", "downfall", "fall", "flameout", "comedown", "breakdown", "burnout", "colapse", "crash", "meltdown", "ruin", "undoing"; "defeat", "reversal", "abasement", "disgrace". Não nos faltam palavras, muitas com "down"
no princípio ou no fim, e muitas que parecem (e algumas são) títulos de
filmes catástrofes. Mas o alemão é para estas coisas a melhor língua,
"crepúsculo dos deuses" em alemão tem toda uma história mítica e
cultural que se tornou universal, um arquétipo.
Ninguém retrata a grande purga estalinista como um "götterdämmerung",
nem o genocídio do Ruanda, nem os massacres bélicos da Guerra da
Secessão, nem, em bom rigor, nenhuma guerra do presente ou do passado. A
guerra termonuclear, que felizmente para a humanidade, permanece apenas
uma hipótese mereceu esse epíteto, como o da encarnação do Armagedão,
mas são classificações virtuais. No entanto, na cultura alemã, na
literatura, na poesia, no teatro, no cinema e mesmo nas ciências humanas
como a história, o "götterdämmerung" parece um pólo magnético. O livro de Ian Kershaw sobre o último ano do Reich chamava-se apropriadamente apenas The End, o "fim", e o filme Der Untergang
feito a partir da obra de Joachim Fest o primeiro filme alemão com
Hitler como personagem, retrata esse ambiente de "queda", ou melhor
dizendo de "götterdämmerung". Muitas destas obras são
controversas, porque existe uma enorme dificuldade em traduzir
racionalmente, como é suposto, numa análise e numa interpretação, algo
que acaba por ter uma dimensão mítica e simbólica e a queda de Hitler
tem essa dimensão "crepuscular".
Em todas estas obras se refere
como Hitler entendeu punir o povo alemão por lhe ter "falhado" e perdido
a guerra e que com a sua queda se extinguia não só o homem Hitler, mas
também a nação alemã, a identidade alemã, o "espírito" ariano do Reich
de mil anos. Por isso, pouco importava o sofrimento enorme para os
alemães, civis e militares, com o prolongamento absurdo da guerra,
quando todos, a começar por Hitler, sabiam que ela estava perdida. Ele
olhava à sua volta e via-se no "götterdämmerung", encarnando um qualquer Deus nórdico da guerra, e por isso, os alemães mereciam a morte.
Mas
por que razão vou eu gastar estas velas de cera cultural com tão ruim
defunto como é o nosso primeiro-ministro? Não é porque não pense que
qualquer comparação mesmo negativa com personagens como a deste
"götterdämmerung" só podem ser grotescas e ridículas. Não me passa pela
cabeça qualquer comparação de Passos com Hitler, nem com Churchill, nem
com qualquer figura histórica com dimensão nem pequena nem média, quanto
mais grande.
A comparação é puro overkill, mas nalguns
aspectos ajuda. O ponto é que há qualquer coisa que sobe à cabeça dos
governantes em determinados momentos e que os leva a pensarem, na sua
mediania, que também eles são os depositários do destino de um povo e
fundem esse destino com o seu próprio, mostrando assim um traço de
obsessão que tem uma dimensão psicológica, mas, mais do que isso, tem
consequências políticas muito perigosas em democracia. Não é preciso ser
um génio, nem um iluminado, nem ter qualquer pulsão, ou "vontade de
poder", pode-se ser vulgar e ter ilusões destas. Numa altura em que
vivemos tempos de "maldição" essa tentação pode fazer estragos muito
para além da qualidade ou falta dela do seu ilusório instrumento.
Naquela
encenação de entrevista que passou na RTP, uma forma masoquista dos
jornalistas porem em causa a sua própria função e de dar um palco ao
primeiro-ministro, Passos Coelho repetiu com a enfâse do convencimento -
um sinal de perigo evidente - a ideia de que, ou ele tinha sucesso e
"Portugal" e os "portugueses" também o tinham, ou caso não o tivesse,
era Portugal que iria pagar um enorme preço. Numa versão benévola desse
"sucesso", este consistia na passagem de Portugal do "ajustamento"
exigido pelos credores ao "plano cautelar", também exigido pelos
credores, a versão pós-2014 do "ajustamento". Caso tal não aconteça, cai
sobre nós o mesmo que caiu sobre Sodoma e Gomorra, e a terra fica
salgada para muitos e muitos anos. Não lhe passa pela cabeça que todas
as premissas e todas as conclusões podem estar erradas, ele pode estar
errado, e o país pagar um preço muito mais elevado do que o que seria
necessário, quer falhe, quer, acima de tudo, tenha "sucesso". Temo
aliás, mais pelo "sucesso" hipotético do que pelo falhanço real, porque o
"sucesso" é o congelamento de um país empobrecido até aos limites
aceitáveis pela União Europeia - que são muito mais elásticos do que se
pensa - destinado a fornecer um mercado para o sol de Verão e
mão-de-obra barata, com enormes diferenças sociais, e governado pela
burocracia de Bruxelas e pela nossa elite colaboracionista.
No
meio da obsessão de "que o meu fracasso é o fracasso de Portugal",
convém lembrar que no fundo do que estamos a falar não é de uma guerra
apocalíptica, nem do travar um meteoro, nem dos deuses a caminho do
Valhalla, mas de políticas, de opções de política, de democracia. E que
em democracia, mesmo em "estado de emergência financeira", há opções e
há leis para cumprir, há tribunais e há protesto e há voto. É verdade
que, em consonância com esta linguagem, um fruto milenar e profético da
"inevitabilidade", cada vez mais nos dizem que há coisas que não se
podem discutir. Não se pode falar do segundo resgate, a não ser para o
usar como ameaça. Não se pode falar da insustentabilidade da dívida
porque isso é "masoquismo". Não se pode falar de eleições antecipadas,
porque não é responsável. Não se pode falar de escolhas eleitorais
porque não há verdadeiras escolhas, estamos "obrigados" a cumprir o que
os nossos credores "exigem". Não se pode dizer que uma eleição significa
alguma coisa, porque, por definição, nenhuma eleição pode significar
alguma coisa enquanto nos encontrarmos debaixo do "protectorado". Ou
seja, deixem-se de política em democracia, porque a única política
permitida é a que não tem escolha, ou seja, a que não é democrática.
Toda
esta exibição de "o meu fracasso é o fracasso de Portugal" pode não
passar de incutir medo, pressionar o Tribunal Constitucional ou de, pura
e simplesmente, preparar uma saída baixa vitimizada caso o Tribunal não
deixe passar qualquer lei com incidência orçamental. Suspeito aliás, e
não é de agora, que este plano de enviar legislação claramente
inconstitucional para o Tribunal e receber o respectivo "não", se
destina a atirar para o Tribunal o ónus do falhanço próprio e preparar
uma demissão do Governo. De facto, o nosso "götterdämmerung" é um götterdämmerungzinho, a palavra mais kitsch que escrevi na vida. E os que pensam que eu comparei Passos Coelho a Hitler não perceberam nada.
É
o "zinho" que é a nossa sina, e, se tomássemos à letra a comparação,
ainda bem. Mas, mesmo o "zinho" faz imensos estragos e puxa-nos para
baixo. Até porque não lhes passa pela cabeça esta coisa simples que
nasce do valor intangível da dignidade humana: é que, dificuldades por
dificuldades, os portugueses podem preferir sofrê-las sem salvadores,
nem tutores, nem mandantes, nem euro, nem Bruxelas.
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© José Pacheco Pereira
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