ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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23.9.13
SAÍA AÍ UMA "NOVA CULTURA POLÍTICA". SE FAZ FAVOR, EM QUE SE CHAME AOS DESPEDIMENTOS "REQUALIFICAÇÃO"
O ministro Poiares Maduro,
no estilo bastante arrogante com que faz declarações, diz que quer "uma
nova cultura política para Portugal", coisa que ele sabe o que é,
escolheu no lote de "culturas políticas", e que nos acena como "melhor".
Repare-se que ele não se fica por pedir uma outra política, ou outras
práticas políticas, quer nem mais nem menos do que uma "nova cultura
política", ou seja, que pensemos de forma diferente.
Muito bem.
Embora eu não saiba o que é essa "nova cultura política" que não temos
(e que se percebe que, no entender do Ministro, resistimos a ter), sei
qual é a que temos, sei muito bem qual é a que o primeiro-ministro, o
vice-primeiro-ministro, o Governo e o actual poder têm. E sei que sem
essa "cultura política" ser combatida, não há nenhuma "nova cultura" que
se imponha e muito menos uma "melhor cultura política". E sei muito bem
qual é o contributo que o ministro Poiares Maduro pode dar para essa
"nova cultura política": demitir-se de imediato e denunciar o discurso, a
prática, a linguagem do actual poder, a mais velha e perniciosa cultura
política que existe em Portugal, uma mistura de muita ignorância, apego
ao poder, desprezo pelos portugueses, partidocracia e dolo. Em que casa
é que ele pensa que está?
Mas Poiares Maduro entrou para o
Governo para substituir Relvas como ministro da propaganda, portanto a
"novidade cultural" que podia trazer seria de imediato incompatível com o
cargo e as funções se ele fosse menos ambicioso e se se respeitasse
intelectualmente a si próprio, ou seja, se tivesse uma outra "cultura
política". Ele não podia deixar de saber ao que vinha e para que vinha. E
sabia-o tão bem que de imediato se colocou na função de repetidor da
propaganda governamental naquilo em que ela é mais dolosa, função que
tem desempenhado até ao dia de hoje, como circulador de falsos
argumentos e de afirmações manipulatórias. O intelecto e a arrogância
ajudam, a subserviência acrítica de muita comunicação social faz o
resto.
Um bom exemplo foi dado logo numa das suas primeiras
entrevistas à TVI, onde se percebe muito bem ao que vem: dar uma
cobertura intelectual e de falso "saber" àquilo que em bruto repete
qualquer deputado das filas de trás do PSD e do CDS na Assembleia. Nessa
entrevista (sigo o resumo do PÚBLICO), dada em meados de Junho de 2013,
afirmou "que a coligação governamental PSD/CDS é "muito coesa" por comparação com outras existentes na Europa" e teorizou dizendo que isso até era uma vantagem porque as ""várias perspectivas" dos diferentes membros, que sendo discutidas e consensualizadas, dão valor às políticas públicas". E ainda, do alto da sua sabedoria europeia, afirmou que "em Portugal temos uma coligação muito coesa", por comparação com "governos de coligação na Europa que têm divergências muito fortes, como no Reino Unido e na Holanda". E insistiu que não havia "qualquer indicador para achar que esta é uma coligação a prazo".
Quinze
dias depois, Paulo Portas pedia a demissão, seguindo-se o psicodrama
que conhecemos. Tenho a certeza de que Poiares Maduro teria argumentos
profundos para explicar como tudo o que se passou foi excelente para
mostrar a "coesão" da coligação. Ingleses e holandeses olharam com pasmo para o "valor" que a crise deu "às políticas públicas"
da coligação milagrosa, só os mercados é que não se convenceram e
perdemos uns milhões pelo caminho. Estes ao menos não podem ser
assacados aos reformados.
Na mesma entrevista, repetiu todas as
mentiras governamentais, na mesma linguagem orwelliana de propaganda,
que é sua função no Governo produzir.Garantiu que não iria haver
despedimentos nos professores, e ensarilhou-se com os duodécimos dos
subsídios cujo atraso se devia a um "conflito de normas": "O que devia ser pago no Natal será, e o Governo já está a pagar o de férias desde Janeiro."
Não era verdade, até porque o Governo não contava pagar dois subsídios,
mas não tem importância. Relvas diria o mesmo, sabendo que estava a
mentir sem problemas, mas Maduro traz a vantagem de usar o doubletalk em todo o seu esplendor, ou seja, entende que basta mudar um nome a uma coisa para essa coisa não ser o que é, mas outra.
Talvez o melhor exemplo disso mesmo está em que, na mesma semana em que nos exortou a uma "nova cultura política", em que "as ideias sejam discutidas em vez de ser substituídas por slogans", ele assinou um comunicado do Conselho de Ministros. Nesse comunicado diz-se, quanto ao "processo de requalificação" (que ele já tinha jurado na entrevista à TVI não ter como objectivo despedir ninguém), que os primeiros doze meses se destinam "a reforçar as capacidades profissionais do trabalhador", e que, por isso mesmo, dão logo origem a uma brutal diminuição de salário, seguida de um ersatz do despedimento, apenas porque o Tribunal Constitucional não permitiu a fórmula anterior. Quer dizer "reforçam-se as capacidades profissionais do trabalhador", gastando dinheiro e recursos, e depois deita-se fora. É isto que é uma comunicação "menos baseada na táctica política e mais nas opções políticas de fundo, e fornecer às pessoas o máximo de informação viável"? Um intelectual que aceita chamar "requalificação"
àquilo que o Governo pretende há muito fazer, despedir funcionários
públicos, não merece qualquer respeito, nem que tenha mil doutoramentos.
Verificou-se que o país, jornalistas e políticos não estavam à altura dos méritos dos seus briefings,
por isso, continuar a fazê-los, seria deitar pérolas a porcos, fazer
coisas como se faz em Inglaterra para portugueses. Depois, está-nos
sempre a chamar atrasados e relapsos devido à "cultura velha" que temos, que tem todos os defeitos de não "ser baseada na verdade e na realidade em que vivemos", uma variante da fórmula hoje muito em voga para substituir as "inevitabilidades" e o "não há alternativas" do período Gaspar, e da fase inicial de adoração da troika.
Essa fórmula é muito comum nos textos de Joaquim Aguiar e de João César
das Neves, que acham que existe uma espécie de monismo da "realidade",
em que esta é interpretada como sendo um estado natural, que só por
ilusão, cegueira, engano e irresponsabilidade se pode ignorar. Eles são
os "realistas", os outros são os "iludidos" ou, pior ainda, os
vendedores de ilusões.
Noutra altura, vale a pena ir mais longe
na percepção de como esta "realidade" é um reducionismo muito
empobrecedor (e por isso não "funciona" nem é sustentável na condução
dos "negócios humanos" em democracia) da complexidade de uma sociedade
em que a gestão de bens escassos está muito para além do sentido
"economês" em que é interpretado. Classes sociais, mitos, valores
simbólicos, esperanças e expectativas, tradições, memórias, "culturas",
história, hábitos, são tudo elementos que esta "realidade" compreende
mal e por isso faz asneiras e, acima de tudo, não resulta. Mas isso é
tudo "cultura velha".
Mas não vale a pena ir muito mais longe com
Poiares Maduro. Este discurso da "realidade" é apenas outra maneira de
dizer que ou as coisas se fazem como o Governo quer ou não se podem
fazer. Ou se fazem como o Governo quer ou são ilusões irrealistas. Como é
que um simples mortal pode discutir com os excelsos intérpretes da
"realidade", que têm consigo a força das leis da física, o peso imenso
da natureza e da "realidade", e as atiram à cara de uns ignorantes que
pensam que não é bem assim, que talvez haja outra maneira de fazer as
coisas, e que a "realidade" é outra, ou que há várias "realidades" e que
a performance dos "realistas" tem sido um desastre, e que podem
sempre lembrar que 2014 era o ano dos 2% de défice e agora o Governo
está a pedir que lhe autorizem mais do dobro, ou que neste mês de
Setembro regressaríamos em pleno aos mercados?
Alguma coisa falhou na
"realidade", não é verdade?
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© José Pacheco Pereira
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