ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
|
14.9.13
CONTRATOS PARA CUMPRIR E CONTRATOS PARA VIOLAR
A questão que se segue pode
ter um tratamento jurídico, mas não é esse tratamento que me interessa.
Pode ter um tratamento de ciência política, mas não é esse tratamento
académico que me interessa. O único tratamento que me interessa é um
tratamento que se pode chamar "civilizacional", cultural no sentido
lato, político no sentido restrito, de escolha, visto que prefiro viver
numa sociedade assente em contratos, confiança e boa-fé, do que numa
selvajaria em que impera a lei do mais forte. Este é portanto um artigo
muito conservador, contra o "revolucionarismo" desleixado e impensado do
Governo e do poder actual, que semeia tempestades que deviam repugnar
qualquer cidadão que prefere viver numa democracia onde impera a lei e o
direito e onde não há "estados de excepção" unilateralmente proclamados
pelo poder executivo contra o poder judicial.
A questão tem a ver
com a "confiança" e tem sido discutida à volta da decisão do Tribunal
Constitucional. Chamam-lhe "o princípio da confiança", e os juristas
diriam que está implícita na noção latina de que pacta sunt servanda,
os contratos são para cumprir, a que eu acrescentaria a noção de que
essa é também uma base do funcionamento de uma sociedade democrática e
de uma economia de mercado. A ideia de que os pactos devem ser
cumpridos, ou seja que a lei os deve proteger, foi um dos grandes
adquiridos na Holanda, que permitiu o aparecimento dessa grande invenção
que foi a "companhia", ou seja, o capitalismo moderno.
A
tempestade originada pela decisão do Tribunal Constitucional equipara a
"confiança" a um "direito adquirido", uma expressão que ganhou hoje, na
linguagem do poder, a forma de um qualquer vilipêndio. Segundo essa
linguagem, repetida por muito pensamento débil na comunicação social, os
"direitos adquiridos" não são mais do que privilégios inaceitáveis, que
põem em causa a "equidade". (Se parassem para pensar veriam que não há
equidade nenhuma, e meditariam um pouco sobre por que razão se fala de
equidade e não de igualdade. Mas essa questão da "equidade" fica para
outra altura.) Claro que os "direitos adquiridos" são essencialmente do
domínio do trabalho, dos direitos do trabalho e dos trabalhadores,
activos e na reforma, e não se aplicam a outros "direitos" que esses são
considerados intangíveis na sua essência. Por exemplo, os contratos com
as PPP e os swaps, ou a relação credor-devedor, são tudo
contratos que implicam a seu modo "direitos adquiridos", mas que, pelos
vistos, não podem ser postos em causa.
O meu ponto neste artigo é
que o Governo e os seus propagandistas, ao porem em causa os "direitos
adquiridos" quando eles se referem a pensões, salários, direitos
laborais e emprego, estão também a deslegitimar os outros contratos e a
semear a "revolução". Assim mesmo, a "revolução", defendendo uma
sociedade em que o Estado e, mais importante, a lei ou a ausência de lei
em nome da "emergência financeira", não assegura qualquer "princípio de
confiança", ou seja, os pactos feitos na sociedade, pelo Estado, pelas
empresas, pelas famílias, pelos indivíduos.
Esta lei da selva é,
espantem-se ó defensores da ordem, outro nome para a "revolução", a
substituição do Estado de direito e da lei pela força, seja a da rua,
seja a do poder sem controlo, seja a da imposição arbitrária assente em
decisões conjunturais que passam por cima da "confiança" contratual que
permite uma sociedade equilibrada, pacífica, com institucionalização dos
conflitos, com mediação dos interesses, e com o funcionamento... de uma
economia de mercado.
Ao porem em causa o cumprimento dos
contratos com os mais fracos, os que menos defesa têm, eliminando
qualquer "princípio de confiança" ou "direito" livremente adquirido
entre as partes, abrem o caminho para que se pergunte por que razão é
que os contratos das PPP são "blindados" (ou seja são "direitos
adquiridos") e não podem ser pura e simplesmente expropriados, em nome
da "emergência financeira". Eu não estou a defender essa expropriação,
mas apenas a dizer que se o Governo e a sua máquina de repetidores
entende que pode confiscar salários, empregos, carreiras, horas de
trabalho, e direitos legalmente adquiridos pelas partes, e aí não se
preocupa com a "blindagem" (que foi o que o Tribunal Constitucional
garantiu, mesmo que precariamente), torna igualmente legítimo que se
defenda o confisco da propriedade e dos contratos, a começar por aqueles
que unem credores e devedores, ou partes num swap ou numa PPP.
Ou seja, um governo que assim actua para os mais fracos comporta-se do
mesmo modo dos que querem "rasgar o memorando".
Ora, eu sou a
favor de que se cumpra o memorando, realisticamente adaptado à mudança
de circunstâncias, que se negoceiem e não se confisquem as PPP, mas que
ao mesmo tempo se tenha a mesma atitude em relação aos outros contratos,
procedendo também aí a verdadeiras negociações e não a diktats, e
procurando soluções que possam manter a "confiança", como seja, por
exemplo, encontrar modos de transição, diferenciações entre os contratos
do passado e do presente, avaliação de custos e situações.
Ora é
isto que o Governo desde o dia um do seu mandato nunca fez, por
ignorância, incompetência, dolo e ideologia. Tomou um caminho único,
defendeu-o como único, acrescentou problemas novos aos que já tinha,
começou arrogante e acabou a andar para trás, para a frente, para o meio
e para cima, tentando remediar o que tinha estragado. Sempre que
contrariado quis vingar-se, garantindo que os que uma decisão
constitucional protegia iriam pagar um preço ainda maior, se possível,
ou servir de pretexto para punir todos. E desde sempre mostrou desprezo
pela lei constitucional, porque isso lhe permitia soluções mais fáceis,
mais imediatas, até porque os seus alvos eram os que menos poder tinham.
O resultado foi romper o tecido social como ele nunca tinha sido
rompido desde o 25 de Abril, semeando a discórdia e a divisão, sem
qualquer resultado adquirido e sustentável.
Eu ouço o rumor das
objecções. Que não são a mesma coisa, que se trata de coisas de natureza
diferente, propriedade e salários, emprego e contratos, que os
tribunais decidiriam contra o Estado, levando a indemnizações muito
maiores do que os ganhos, de que secariam as fontes de financiamento
externo, etc., etc. Tudo verdade, mas tudo também verdade para o direito
de não ser despedido sem justa causa, ou de não ver a sua reforma
cortada retroactivamente.
É por isso que os nossos semeadores de
cizânia e de "revolução", da força, de uma sociedade dúplice em relação
aos contratos que cumpre ou não cumpre, deviam ponderar nas palavras que
originaram o pequeno escândalo, habitual nas redes sociais, vindas de
um jovem deputado comunista que ainda não aprendeu a "linguagem de
madeira" dos comunistas actuais: "A corja que despreza a Constituição
que se ponha a pau. É que se o meu direito à saúde, educação, pensão,
trabalho, habitação, não vale nada, então também os seus direitos à
propriedade privada, ao lucro, à integridade física e moral deixam de
valer! E nós somos mais que eles".
O homem foi tratado de "besta", "hitleriano", "aspirante a ditador", "parecido com os fascistas", tudo isto ipsis verbis.
Mas o que incomodou na frase foi que ela contém implicitamente uma
enorme verdade: é que o "vale tudo" só para alguns é infeccioso para os
outros. Ou seja, por que razão é que tenho que aceitar que o Governo me
pode confiscar o meu salário e despedir sem direitos, por livre arbítrio
de um chefe de uma repartição, ou diminuir drasticamente a minha
pensão, agora que já não existo para o "mercado de trabalho" e sou
completamente dependente, ou condenar-me ao eufemismo do "desemprego de
longa duração", ou seja tirar-me muito mais do que 60% ou 70% da minha
"propriedade", que não são acções, nem terras, nem casas, nem depósitos
bancários, e quem tem tudo isso não pode ver a sua propriedade
confiscada num valor semelhante ao que eu perco? E aí, ironia das
ironias, teríamos o Tribunal Constitucional, com os aplausos do outro
lado, a defender a propriedade e a condenar o confisco, como deve fazer.
É por isso que estes meninos estão a brincar com o fogo e depois gritam que se queimaram.
(url)
© José Pacheco Pereira
|