ABRUPTO

14.9.13


A CONSTRUÇÃO DE UM CUNHAL MÉLI-MÉLO 


Um dos resultados das comemorações do centenário de Álvaro Cunhal foi a deliberada construção, feita por propagandistas e inocentes úteis, de um Cunhal méli-mélo, cheio de "interesse humano" e vazio de política. O livro de Judite de Sousa, apressado, cheio de incongruências e contradições, é o culminar desse processo, que já vinha de antes. O PCP, que não abre nenhuma informação dos seus arquivos aos historiadores, abre-se generosamente a jornalistas e autores, mesmo muito sensacionalistas e muito de direita, dando-lhes acesso a depoimentos e testemunhos - não a papéis, mas a testemunhos.

 O resultado é a imagem "humana" de um Cunhal sensível, familiar, amigo das crianças, amoroso, marido atento, irmão e filho dedicado, a somar ao artista e escritor. Cunhal pode ter sido todas estas coisas, - não foi, - mas isso só é relevante no contexto da sua persona política, que é o que o torna uma figura publica com um papel muito importante na história portuguesa do século XX. Não menosprezo o papel que a sua vida pessoal e íntima possa ter tido na sua biografia, mas verdadeiramente nem sequer fico a saber muito mais por esta literatura cor-de-rosa, até porque ela continua a seguir as conveniências e o cânone, ocultando dados e pessoas, fazendo uma amálgama de testemunhos e interpretações, errando ou sendo vago nas datas e nos locais.

 A mitificação de Cunhal nestes termos tem implícita a ideia de que se pode ser um duro e ortodoxo dirigente comunista, e ser "humano", comum, frágil como toda a gente, ou seja, um de nós, que ainda se torna melhor por ter essa dimensão afectiva que ganha tal dimensão porque é apresentada como uma “descoberta”, à revelia do seu secretismo e da sua imagem de dureza. Ora, qualquer pessoa que saiba alguma coisa do comunismo e do modo como os partidos comunistas moldam os seus cultos de personalidade, - e o culto de personalidade é inerente à construção propagandística dos lideres, - sabe que esta construção "humana" é a regra para todos os dirigentes, a começar por Staline. Foi feita para Thorez e Togliatti, para ir buscar dois exemplos próximos. Aparecer com crianças é uma das imagens icónicas, beijando-as, erguendo uma, recebendo com um enorme sorriso um ramo de flores. Outra representação da iconografia comunista são gestos de companheirismo, de igualdade, de humildade. O grande líder caminha ao lado, ou à frente ou ao meio de um grupo, em gestos comuns com gente comum, tudo imagens estereotipadas. As mangas de camisa de Krutchov e a roupa desalinhada revelava o filho de camponeses, em Thorez, o mineiro, o “filho do povo”. Ou então aparecem rindo-se, conversando ou jogando, bebendo uns copos de vinho tinto, ou aparecem nostálgicos e vagamente tristes. Uma versão, de que há exemplos muito parecidos para Mao Zedong e, imagine-se Salazar, visto por Rosa Casaco, é o líder solitário, diante do mar, ou numa via-férrea, olhando para o infinito, pensando, com o peso do mundo nas costas, mas de pé e firme.

Em todas estas fotos, (e noutra altura falarei da Fotobiografia organizada pelo PCP) convém não esquecer que alguém escolheu aquela que foi divulgada e não outra , pode ter sido o próprio, ou alguém próximo. Não são nunca verdadeiras fotos de família, a não ser na infância e adolescência, ou então são tiradas pela “outra” parte da família. Cunhal, que era particularmente fotogénico e sabia disso, está lá, mas é abusivo ir muito longe nas conclusões, até porque, vistos com atenção aos pormenores de postura, e lidos, com rigor, os depoimentos e testemunhos não são assim tão “afectivos” como parecem.

 Significa isto que Cunhal era um homem insensível, sem sentimentos, nem qualidades “humanas”? Longe disso, só que nem sempre são os que lhe atribuem, como, mesmo esses, eram mitigados por uma dedicação maior à sua causa. É nessa dedicação que reside o verdadeiro Cunhal, o Cunhal que é diferente, e que transportou as suas inegáveis qualidades e talentos, para um combate político que é o que foi, e não o que agora se pretende adocicar com esta face meli-melo do “Àlvaro”, em conjugação com a “Eugénia” e “Ana”, como aparece no título do livro de Judite de Sousa, tudo construções ficcionais mais do que pessoas.

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© José Pacheco Pereira
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