ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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3.8.13
OS AMANHÃS QUE CANTAM
Há uma obscena falta de
vergonha incrustada no texto da moção de confiança que o Governo vai
apresentar e que, por si só, é um retrato de uma política que, após as
ingenuidades e ignorâncias iniciais, tem sido feita pelo dolo, para a
manipulação e para o engano. Que haja intelectuais por detrás desta
mistificação, faz-me confirmar uma velha desconfiança quanto à corrupção
que a ambição traz ao pensamento. E mais: com esta moção, todos os
membros do Governo passam a ser versões de Paulo Portas e a reverem-se
no modelo de duplicidade sobrevivente do "irrevogável".
O que esta moção nos diz é uma completa mistificação desde a primeira letra. Diz-nos que havia um ciclo político pensado em duas fases: uma, o cumprimento do "programa", outra, o desenvolvimento e o crescimento. A crise governativa das últimas semanas foi o rito de passagem, a perda da pele da serpente, que permitiu abandonar a velha pele, para fazer reluzir a segunda. Ou seja, ainda bem que houve esta crise, catártica na sua bondade, para podermos, limpos e lustrais, apresentar um "novo ciclo" aos portugueses. Nada disto é verdade, nem o "programa" foi cumprido, bem longe disso, nem este "novo ciclo" estava previsto nestes termos na programação governativa, nem as vítimas da "austeridade" podem esperar qualquer alívio, nem as vítimas que se seguem, as da "reforma do Estado", podem escapar à desvalorização do seu trabalho e ao desemprego. O programa real continua, o virtual vem aí. Só que não é para os mesmos.
Cumpriu-se o "programa", apesar de nenhum dos
números do défice e da dívida ter sido atingido? Podemos "regressar aos
mercados"? Obtiveram-se os resultados miraculosos do "ajustamento"? Bem
pelo contrário, o que Passos, Gaspar, Moedas e outros pensavam, em
completa consonância com a troika, é que após uma varredela para o
lixo da economia "ultrapassada", após o desmantelamento do Estado
social, após a inversão das relações de poder na legislação laboral,
após o fim dos "direitos adquiridos", depois da "libertação" da
sociedade do Estado, após o "ajustamento" dos portugueses a viverem "de
acordo com as suas posses", muito poucas, aliás, a economia exportadora,
a economia desenvolvida tecnologicamente, a sociedade dinâmica dos
"empreendedores" esmagasse os "piegas", sem que o Estado tivesse
qualquer outro papel do que garantir a ordem pública e a hierarquia
social estabelecida. O "arranque" viria da sociedade "libertada", e
nunca jamais, em tempo algum, o Estado voltaria a ser
"desenvolvimentista".
Ora isto não aconteceu, nem podia
acontecer, houve demasiadas "surpresas" e estes homens ficaram presos
nas ruínas do seu discurso, arrastando-o, já não para construir o seu
modelo utópico, mas para encobrir e remediar os estragos do que tinham
feito. Já há algum tempo que as medidas sucessivas de austeridade se
destinam não a qualquer "ajustamento", mas a tapar a ineficácia das
anteriores. Gaspar percebeu isto e percebeu que o primeiro-ministro já
estava a hesitar com o partido e eleições, e como precisava de uma
determinação absoluta, foi-se embora.
Passos ficou no ar, entre
um discurso cuja simplicidade e "economês", feito de algumas leituras
sobre Singapura, lhe era atractivo e as pressões partidárias e
atribulações governativas. Continua no ar, lançando mais confusão do que
clareza -, o discurso partidário de ruptura das conversações é o oposto
do texto da moção de confiança e só passou uma semana - mas, como
sempre disse, nunca me convenceram pessoas que se tornam ideólogos de
uma coisa, quando essa coisa está na moda. E por isso, o Passos
desenvolvimentista e socrático contra Manuela Ferreira Leite pode
regressar a qualquer momento, até porque não foi assim há muito tempo.
Não
é hoje tão fácil fazer estas inflexões quando se tem o lastro dos
desastres cometidos, mas não é impossível. No fundo, todos eles são
Paulo Portas. A verdade é que Passos aprovou uma moção de confiança que,
se tomada a sério, é uma crítica dura aos seus desvarios de engenharia
utópica. Substituir Gaspar por Maduro, ambos tendo influência por via da
insegurança académica de Passos, a mesma que o faz entrar mudo e sair
calado dos Conselhos Europeus, pode ser reconfortante como mentor, mas
não chega. E, por isso, o discurso governamental vai-nos dizer à
saciedade que saímos de uma encruzilhada "má" para uma estrada "boa".
Com a capacidade que tem a comunicação social para reproduzir a
linguagem do poder, esta propaganda vai ser repetida sem prudência. Até
ao dia em que tombará e o contrário será a norma. Tem sido sempre assim,
com Sócrates e Passos, não vai ser diferente.
Claro que haverá
algumas "medidas", nos impostos para as empresas, no IVA da restauração,
na concertação social, com uma UGT desejosa de voltar ao "consenso",
com um PS cujo compromisso real com este "novo ciclo" desconhecemos. E
vamos admitir que há mesmo "sinais" de alguma recuperação da economia,
como nos diz a propaganda governamental, seleccionando para o efeito os
indicadores positivos e não falando dos negativos. Vamos admitir que
estamos na véspera de uma "mudança", de "uma segunda oportunidade", de
"uma nova fase". Vamos admitir isso tudo, mas não vamos admitir que nos
digam que isso significa o que nos querem dizer que significa.
Vamos
admitir que o "pior já passou", mesmo que se trate apenas de bater no
fundo. Claro que há-de haver uma altura - não sei se ainda esta -, em
que, estando tudo mal, já não se pode piorar. Na verdade, não é bem
assim, pode-se sempre piorar, basta a passagem do tempo para o fazer. Um
ano de empobrecimento não é a mesma coisa que três e quatro, e estar
desempregado a única dinâmica que conhece é o passar do tempo, para
pior.
Olhando estes "sinais", as perguntas que temos que fazer são
duas. Uma, o que é que ficou para trás destruído sem recuperação, cujos
restos estão por todo o lado, e como é que eles vão envenenar o
presente e o futuro? Outra, bem mais importante e "subversiva", é que,
se houver "recuperação", quem é que dela beneficia? A resposta
politicamente correcta é que beneficia a todos. A resposta verdadeira é
que a poucos, muito poucos, e aos mesmos de sempre. Talvez umas migalhas
cheguem aos de baixo, ou nem isso, porque eles podiam lembrar-se de
comprar electrodomésticos e lá se vão os números das importações.
Numa
sociedade em que se agravaram os factores de exclusão e em que uma
parte importante - classe média, desempregados, "novos pobres", mundo do
trabalho desprotegido - perdeu todo o poder, os frutos de qualquer
tímida "recuperação" seguirão as linhas de água profunda cavadas pela
ruptura social na sociedade portuguesa e correrão para onde sempre
correram.
Este óbvio facto, de que ninguém que levou com a
"crise" em cima vai beneficiar dos "sinais" em tempo da sua vida, é
ocultado por um discurso político que foi reduzido nestes últimos anos
ao "economês". Esse discurso não se vai embora apenas porque passamos a
ter uma retórica política que fala do "crescimento" em vez do "rigor
orçamental". Bem pelo contrário, pode até reforçar-se, moldando o modo
como se vai ver a "recuperação" e os seus frutos, legitimando a
continuação da austeridade para os mesmos e "libertando" alguns de
impostos, regulações, limitações, leis. Leis, no limite da Constituição,
um dos programas escondidos das "negociações" com o PS.
O "novo
ciclo" do Governo, naquilo que não é pura sobrevivência eleitoral, mas
discurso de feiticeiro, serve para reciclar a linguagem do poder aos
mesmos interesses de sempre. Mas a sua fragilidade é a mesma do discurso
do "rigor orçamental". É mais agradável de ouvir, mais enleante, leva o
PS à ilharga, foge da agressividade militante da engenharia utópica
Passos-Gaspar, mas destina-se a manter o mesmo círculo de ferro que
captura a democracia portuguesa por um establishment financeiro e
de grandes empresas nacionais (cada vez menos) e estrangeiras, e de uma
elite que aceita servi-las e aceita os seus limites de fogo daquilo que
se pode ou não fazer.
Visto de longe, sanitariamente de longe,
este Governo, para se manter, fez todos os tratos com Cassandra e abriu
todas as caixas de Pandora. É só esperar pelos resultados do "novo
ciclo".
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© José Pacheco Pereira
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