
A CRISE POR DETRÁS DA "CRISE"
Andamos tempo de mais a esquecer-nos de que Portugal
ainda é uma democracia. Esquecemo-nos também de que Portugal ainda é um
país soberano e independente. Há demasiadas pessoas a dizerem-nos que
tudo isto é só nominal, porque não podemos viver em democracia sob o
jugo da “economia” e não há soberania, enquanto houver Memorando.
Aceitem e calem-se, porque o país deve ser governado sem lei, nem
Constituição, e submetam-se a tudo que a troika nos diz, porque os
nossos soberanos são os “credores”. Isto, dizem-nos, é indiscutível, é a
“realidade”, no dizer do primeiro-ministro, e a “realidade” não se
discute.
Daqui resulta uma enorme
perturbação, como se vê nos filmes de ficção científica quando o Sol
resolve destruir-nos, ou surge do fundo do Pacífico o grande lagarto
Godzilla, ou as plantas resolvem matar-nos. O ministro dos Negócios
Estrangeiros acha normal descrever o seu país como um protectorado. Como
eram Marrocos, a Manchúria, a Boémia e Morávia, a Basotulândia, ou as
ilhas Tonga. Repito: eu posso dizê-lo, ele não. O facto de o ministro
usar essa classificação (ele não é analista, é ministro, pelo que a sua
voz é aceite pelas diplomacias estrangeiras como sendo a descrição
legítima, não só de facto mas de jure, da situação portuguesa) não tem
origem em nenhum acto do Parlamento, nenhuma rendição de tropas, nenhum
Pétain a assinar a submissão a Hitler, em nome da “salvação nacional”.
Se somos um protectorado, devemos organizar a resistência ou ser
“colaboracionistas”?
O que é significativo é que a existência de
um Memorando, do teor do que foi assinado há dois anos, é considerado
pela nossa elite do poder como uma cedência total da soberania, e uma
suspensão da democracia, comportando-se em consequência com a maior das
naturalidades. Não é apenas uma medida de emergência financeira,
pactuada com entidades de que Portugal faz parte (Portugal é membro do
FMI, do BCE e da UE), mas uma rendição que põe em causa tudo, a começar
pela independência e a acabar na democracia.
Na verdade, a
questão mais de fundo é que a política definida no Memorando era para
uma elite económica-financeira-política muito mais do que um plano de
emergência financeira, era o programa salvífico para “nos comportarmos
bem”, e para que “o país nunca mais seja o mesmo”. Era uma oportunidade
única e foi defendida com tropas em batalha, como se fosse uma guerra. E
era, era e é, uma guerra social.
Ou seja, o Memorando foi não só
uma emergência, mas também uma salvação divina. Deu aos seus
colaboracionistas um bordão político que ia muito para além do seu
cumprimento, tornando-se o programa de regeneração nacional que poria em
ordem os preguiçosos gastadores dos portugueses que “viviam acima das
suas posses”, reduzindo-os punitivamente à sua condição de pobres de que
nunca deveriam ter saído, ainda por cima com dinheiro emprestado e
encostados ao Estado. Quem eram esses portugueses? Os trabalhadores, os
funcionários, os pequenos empresários, os reformados, os pensionistas,
os “de baixo”.
Os de cima pagavam uma taxa, uma portagem, mas
reforçavam o seu mando e ficavam com um país de mão-de-obra barata,
assente no “estabilizador” do desemprego e na perda quase total de
direitos laborais. Asseguravam que Portugal continuaria a pagar as suas
reparações de guerra aos “credores”, na guerra em que o país tinha
ficado um protectorado e, colaborando no presente, apostavam no futuro.
No seu futuro. Para eles, a “salvação nacional” é a manutenção da
hierarquia social e o reforço da sua desigualdade. Sabem os de cima e
sabem os de baixo.
Não foi a idiossincrasia histérica de Portas,
nem a autocrítica de Gaspar que abriram esta crise, foram os efeitos da
“fadiga fiscal”, da “usura social”, do “cansaço social”, da “erosão
significativa no apoio da opinião pública”, da “profunda crise (…)
social e política”, ou seja, de tudo o que se passa fora dos gabinetes, e
que foi considerado sempre irrelevante, menor, dano colateral. Os
jornalistas e comentadores preferem valorizar as tricas políticas,
dizendo que o Governo só caiu ou só podia cair por dentro. Na verdade,
não podem admitir que aquilo que estão sempre a desvalorizar possa ter
este papel. Mas, se não fosse a agitação social, essas coisas como
greves, manifestações, protestos, Grândolas, insultos e quadra-costas,
etc., como é que se sabia que havia “erosão significativa no apoio da
opinião pública”? É, as causas exógenas actuam pelas causas endógenas.
Gaspar
percebeu bem que a inflexão que o Governo estava a conhecer, e que se
manifestou nas suas dificuldades para encerrar a sétima avaliação, se
devia à entrada em cena, com toda a sua glória, do eleitoralismo. Passos
e Portas são homens de partido, vieram de todas as jotas para o poder,
Passos da JCP, via JSD, Portas da JSD. São muito diferentes, mas em
muita coisa são iguais como políticos profissionais no actual sistema
partidário. Sabem melhor do que ninguém que nos partidos que lideram,
há, principalmente no PSD, milhares de pessoas cujo emprego depende do
partido, nas autarquias, nas administrações regionais, no Parlamento,
nas zonas empresariais ligadas ao poder político, na administração
central e no Governo. De motoristas a funcionários dos grupos
parlamentares, deputados, administradores hospitalares, membros dos
conselhos de supervisão das grandes empresas, escritórios de advogados e
consultoras financeiras onde o conúbio com o poder político é altamente
lucrativo. E essas pessoas percebem bem de mais que podem ver o seu
pool de empregabilidade e de acesso ao poder reduzido para metade num
desastre eleitoral. Também aqui a aceleração da crise no interior do
Governo vem de fora, da mesma “usura social” que ninguém quer admitir,
aqui pelos seus efeitos eleitorais no poder dos partidos.
É por
isso que a crise política em que estamos mergulhados tem tudo a ver com a
democracia, no bom e no mau sentido. Só pode ser resolvida pelo
desbloqueamento da situação política e isso só se consegue com eleições
e, por outro lado, essas eleições são vistas com pânico pelos partidos
da coligação, o PSD e o CDS. O Presidente queria esse desbloqueamento, a
troika quer esse desbloqueamento, ambos sabem que sem o PS não há
solidez nem continuidade nas medidas que desejam.
O PS, por seu
lado, podia ter assinado de cruz, e assinaria de cruz, se o tempo
andasse para trás. Ora o tempo nunca pode andar para trás, porque a
razão que levou à exclusão do PS da governabilidade foi a arrogância
utópica do “troikismo” radical, que queria fazer uma revolução e não
queria “consensos”. Ir agora buscar o PS quando tudo está a ruir viola o
princípio de autoperservação que em Seguro é da mesma natureza de
Passos Coelho. Tempo errado, senhor Presidente, se querem que Seguro
assine o que for preciso coloquem-no no poder por eleições, inseguro e
frágil, e nessa altura ele entende-se bem com um PSD humilhado pelas
urnas. É tudo muito mau, mas é assim.
Mas a crise não vai passar e
irá piorar se não houver eleições. Queira o Presidente ou não, se dá ao
Governo a remodelação que ele deseja — ela própria a melhor garantia de
que vai continuar a haver instabilidade governativa —, e os dois anos
até 2015, reforça a arrogância que Passos Coelho já mostrou na crise ao
afrontá-lo na Assembleia. O Presidente volta ao contexto do seu discurso
de 25 de Abril, mas numa situação muito mais frágil. É só uma questão
de tempo até toda a gente perguntar se era para isto, por que perdeu
todos estes dias? É que o argumento dos mercados não serve só para
aterrorizar os indígenas com as eleições, serve também para Portas,
Passos e Cavaco.
Mas há uma razão ainda mais funda, estrutural,
para que a crise não se vá embora e ela traduziu-se na grande omissão
destes dias, no enorme silêncio absurdo e cego com que se discute tudo e
três tostões como se as pessoas comuns fossem mera paisagem, os
portugueses súbditos sem voz — as eleições não servem para nada,
dizem-lhes — e colonizados pelos colaboradores dos “credores” de um
protectorado consentido sem revolta. Se nada disto mudar, é só esperar
pelos próximos episódios.