ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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7.4.13
POR QUE NÃO SAIMOS DA CEPA TORTA
Não há melhor exemplo da
miséria da nossa vida pública, na sua versão mediática, do que o facto
de José Sócrates ser a sua figura dominante num dia só, quanto mais por
meia dúzia de dias. Isso, sim, é que é revelador e preocupante, não a
figura do antigo primeiro-ministro, ou, acima de tudo, o que ele disse
ou possa vir a dizer, e muito menos a sua putativa futura vida política,
que, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e conhecimento da
realidade sabe que, se passar pelo voto, tão cedo não existe. Mas a
cerimónia colectiva de incomodidade e embasbacamento com a entrevista,
essa sim, é um péssimo sinal da anomia dos nossos tempos e das fortes
correntes de nostalgia e radicalismo que a atravessam.
Tudo isso explica o "efeito Sócrates", tão intenso quanto é nula a importância do que disse, um remake
da série de obsessões, mentiras e falsificações de números,
estatísticas e factos, que tiveram um papel muito relevante no
agravamento da crise do país e em colocá-lo numa situação de bancarrota.
Sim, porque, com mais ou menos "narrativa", a acção de Sócrates como
primeiro-ministro conduziu o país a um abismo. E sobre isso não se soube
nada de novo. Pior: confirmaram-se todas as suspeitas do que ele nos
tinha feito e continua capaz de fazer.
Se o fez por ser um "animal
feroz", ou por ter aquela determinação cega que ninguém lhe nega e tão
evidente foi na entrevista, eu ainda me preocupo mais, porque o teor
autoritário e dominador da personagem junto dos espíritos fracos foi uma
razão do seu sucesso político. Se ser "animal feroz" foi ou é
qualidade, então essa qualidade serviu para nos atirar a todos para uma
crise maior e sem fim, quando podia ser bem mais pequena e moderada nos
seus efeitos. O radicalismo que a reacção a Sócrates revela numa parte
da opinião pública e publicada, poderia ser a descoberta do populista
salvífico que muitos esperam, se não fosse tão viva a memória das suas
malfeitorias. É porque não quero que essa memória se esvaia, na fácil
máquina de esquecimento que é a comunicação social, que também aqui o
trato como assunto, porque o mal que ele traz alimenta-se do silêncio,
não da fala.
Este homem foi um perigo, ajudou, e muito, a
afundar-nos colectivamente, e seria hoje de novo um perigo, se não
houvesse tão recente e viva memória dos seus "feitos". Mas o que é
interessante é perceber que dele não nos defenderam muitos dos
iluminados da nossa praça, à direita e à esquerda, como agora também não
seriam capaz de o fazer. A razão por que me preocupa a reacção à
entrevista é esta: este homem seria o populista ideal, e muita gente
abre-lhe alas, apenas porque ele fala alto e grosso, num mundo em que
Seguro é o que é e Passos e Relvas são que são e não suscitam nem temor,
nem entusiasmo. Apenas tédio e preocupação.
Quando falei da
nostalgia que alimenta esta reacção à entrevista foi disso mesmo: a
direita precisa de um inimigo e trata-o como a quinta-essência das
malfeitorias da esquerda, coisa a que nunca pertenceu, porque precisa de
encontrar identidade pela construção de um adversário. Sócrates é o
adversário ideal, e é por isso que foi com a sua colaboração e
assentimento que o Governo lhe abriu as portas da "sua" televisão. Para
além disso, calcula que, por muito que possa vir a ser atingido por um
ou outro remoque certeiro, Sócrates será um problema essencialmente para
o PS. Os estragos que Sócrates possa vir a fazer ao Governo serão
sempre entendidos como danos colaterais, aceitáveis pela enorme vantagem
de ele impedir, pela sua mera existência semanal na televisão, a
consolidação da liderança de Seguro. Por outro lado, a vendetta
pessoal de Sócrates contra Cavaco é também bem-vinda, porque, para o
grupo à volta de Passos Coelho, Relvas, Menezes e Ângelo, colocar o
Presidente na ordem é uma necessidade estratégica. E pensa, e bem, que
não será possível a Sócrates no seu comentário escapar à "síndroma" de
Santana Lopes em que qualquer coisa discutida em 2013 vai dar, por volta
da terceira frase, à incubadora, ou, no caso de Sócrates, aos eventos
de 2011 e à contínua autojustificação de tudo pela traição alheia.
O
mesmo fenómeno de nostalgia e radicalização existe à esquerda. A
esquerda, principalmente a que está órfã no PS de Seguro, enfileira
atrás daquilo que pensa ser um cabo de guerra a sério e não de um clone
com falinhas mansas. Há demasiada orfandade na actual "oferta"política
para deixar um lugar para Sócrates e ele ocupa-o não porque queira o
lugar de Seguro, mas também porque, para ele, as dificuldades de Seguro
serão a sua versão dos danos colaterais. O "animal feroz" para "tomar a
palavra", que nele significa o mesmo que "tomar um castelo", sabe que
prejudica Seguro, mas é suficientemente obcecado com a sua pessoa e a
sua missão para não se preocupar com isso.
A comunicação social,
com quem Sócrates manteve uma relação muito próxima até ao momento em
que iniciou a sua queda, quando, à maneira portuguesa, todos os que lhe
apararam o jogo, o começaram a calcar com a mesma veemência com que o
adulavam, gosta de festa e Sócrates dá-lhes festa. Este homem que, como
Relvas, mas com muito mais poder e cumplicidades, usou todos os meios ao
seu alcance para afastar os jornalistas que se lhe opunham e punir
todos os que o afrontavam, volta hoje a ser tratado com a mesma
complacência com que se aceitavam sem questionar os seus anúncios
propagandísticos e sua contínua manipulação dos factos e estatísticas. O
modo como se menoriza o próprio conteúdo da sua entrevista - insisto um
remake sem novidades de tudo aquilo que andou a dizer em 2010-11 -, em detrimento do folclore do seu "efeito", mostra isso mesmo.
A
história da "narrativa" é reveladora. Sócrates apresentou-se como
pretendendo combater a "narrativa" que a direita fazia da sua governação
e queda, opondo-lhe a sua própria "narrativa". Esta história das
"narrativas", um modismo para designar uma construção ficcional de
eventos, preso exactamente pelo fio da narrativa, é atractiva porque
procede a uma selecção de factos, moldados pela sequência cronológica
escolhida, que pode não ser a que aconteceu, e pela eliminação dos
"factos-problema", que podiam prejudicar a clareza ficcional da
história. Na sua "narrativa", Sócrates coloca o seu principal motor
interior, a sua vontade, cuja determinação varreu com tudo, bom senso,
estudo, conhecimento, verdade, atenção ao real, custos, condições, tudo.
E levou-nos ao que se sabe.
É, no fundo, um argumentário
político, que pode ter uma maior ou menor aproximação à realidade ou à
ideologia, e que serve como discurso de justificação, mas não é, nem
foi, o que aconteceu, não é a realidade, nem a verdade. Não foi o que
aconteceu nem na "narrativa" contra Sócrates, nem na do próprio
Sócrates. Mas a escolha por Sócrates desta figura da "narrativa" mostra
como, para ele, os factos contam pouco, mas sim o conflito mediático
entre interpretações, o que é consistente com a recusa que sempre teve
da palavra "verdade" no vocabulário político. Ele não diz "no que
aconteceu", mas sim "na narrativa do que aconteceu". Há quem ache que
isto é que é a essência do "discurso político", a moldagem da realidade
pela vontade política. Sócrates era desta escola, uma variante mais
animada do que a moldagem da realidade pelas folhas de Excel, mas em
ambos os casos com efeitos desastrosos.
Aliás, Sócrates deu
muito poucos factos, e os que deu estão manchados, por serem falsos (a
escolha de números e estatísticas manipuladas, uma sua pecha de sempre)
ou poderem ter uma outra leitura e interpretação. Por exemplo, a
aprovação do PEC IV, com o apoio europeu (desvalorizado na "narrativa"
da direita), que tipo de ajudas garantia para Portugal? Desconhece-se.
Essas ajudas poderiam sobreviver à crise grega e à subida exponencial
dos juros nos mercados, sem darem origem a um qualquer "plano de
resgate"? Duvido. Por aí adiante. Como é que se poderia manter um
primeiro-ministro que, no momento em que mais precisava de alargar a sua
base de apoio, à frente de um Governo minoritário, hostilizava tudo e
todos? Por aí adiante. Nada foi verdadeiramente explicado na sua
"narrativa", que, no essencial, nos mostrou o mesmo homem que nada
aprende, nada esquece, e cuja vaidade e vontade varrem tudo à frente.
Não
foi a entrevista que foi interessante. Foi o seu efeito. O sucesso do
retorno de Sócrates não é o sucesso do governante de 2005-2011, nem a
sua reabilitação, mas o sucesso do populismo e da orfandade do país
político de 2013. Faz uma diferença. Faz toda a diferença.
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© José Pacheco Pereira
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