 A FÚRIA DA RAZÃO
A FÚRIA DA RAZÃO
           
            
                
                
Quando já se viu bastante, 
durante muito tempo, e com muitas reviravoltas de fortunas, sucessos e 
desastres, olha-se para as coisas de outra maneira. É um olhar sem 
inocência, com muito pouca esperança, que tem defeitos, mas também pode 
ter virtualidades. Claro que posso valorizar as virtualidades e 
menosprezar os defeitos - isso vem no "pacote" do olhar -, mas é o que 
há, e não se consegue outro. Vem isto a propósito daquilo que alguns 
pensam ser o meu "radicalismo" na análise e comentário sobre a situação 
presente, crítica que pouco me incomoda mas que me interessa entender, 
quando é de boa-fé, e interrogar até que ponto tem ou não sentido. E 
algum terá, não pelas razões que são sugeridas, mas por outras.
A 
reflexão sobre a intervenção pela escrita e pelo comentário no debate 
público é hoje uma questão polémica, que inclui também elementos de 
confronto corporativo entre jornalistas e políticos pelo bem escasso da 
influência. Voltarei a essa questão noutra altura, mas não é disso que 
vou falar. Aquilo que vou fazer é uma reflexão pessoal sobre os efeitos 
do meu próprio acesso ao espaço público e participação nesse espaço, e é
 necessariamente subjectiva e impressionista. Pode ter também algum wishfull thinking
 mesmo que freudianamente inconsciente, embora eu saiba o suficiente 
para ter poucas ilusões nesta matéria e só mesmo se Freud tiver muita 
razão, do que não estou certo. 
Sei suficientemente sobre história
 para não ter dúvidas sobre a inanidade das ilusões que cada um tem 
sobre o rastro do seu papel, mesmo quando ele possa parecer existir por 
uns dias ou um mês. Com excepção de meia dúzia de pessoas, a história de
 Portugal levará todas as outras para as notas de futuras teses muito 
especializadas de doutoramento. E, com o tempo, cada vez mais 
especializadas, e com cada vez menos nomes. Por isso, quem pensa que por
 ser conhecido por algumas centenas de milhares de portugueses, fruto do
 poder da televisão, significa mais do que isso, vai ter muitas 
surpresas para o seu ego. 
"Ser conhecido" sou, isso é verdade, nem sempre pelas melhores razões, mas, para quem escreve nos media ou "aparece" nos media
 desde os catorze anos, e, repito, com a força da televisão, isso não 
vale muito por si. Porém tenho consciência de que os efeitos do que 
escrevo e digo nestes dias - e é possível medir pelo menos a intensidade
 da audição e da audiência - se deve a factores muito peculiares da 
crise que vivemos e é essa relação de que me interessa falar.
O 
que tenho dito e escrito, as provas materiais desse "radicalismo", tem 
vindo a ter sucesso, mesmo que esse sucesso seja polarizado, muito apoio
 e alguma recusa, em ambos os casos de forma veemente e pouco moderada, 
porque os tempos não estão para a moderação. Basta-me ir à rua, basta-me
 ler o correio que recebo, acompanhar a Rede, e ver o cortejo de 
admirações e irritações que por aí circulam, para o perceber. Já não é a
 primeira vez que isso sucede, com altos e baixos, mas agora estou 
perante alguma coisa de diferente de momentos do passado, em que um ou 
outro artigo ou intervenção circularam significativamente, como o artigo
 sobre os incidentes na Ponte 25 de Abril, que vem hoje nas antologias e
 é dado nas escolas.
O que há hoje de diferente é um efeito de 
representação, mais do que de concordância. As pessoas que se manifestam
 a favor do que digo sentem-se "representadas", e esse sentimento está 
para além do mero apoio intelectual ou da comunidade de pontos de vista.
 Esse efeito de "representação" é fruto dos tempos em que vivemos, em 
que, mais do que perceber - no essencial as pessoas percebem tudo -, se 
deseja uma voz, alguém que fale deles e por eles. Sei bem que isto é 
muito ambíguo, e não vai durar, mas existe e como hoje nunca me 
aconteceu. Este efeito de representação não é aquilo que habitualmente 
se chama "influência", e por si só não exige um especial mérito, pode 
inclusive abrir caminho ao populismo.
Há quem o tenha no espaço 
público, por exemplo, Medina Carreira, ou alguns jornalistas como José 
Gomes Ferreira, quando solta a pessoa que há em si, para além da função,
 também geram efeitos de representação. São casos muito diferentes do 
acesso ao espaço público pelo comentário, dos de Marcelo ou Marques 
Mendes, assentes em atitudes de curiosidade, vontade de saber ou ser 
informado, empatia resultante de uma longa familiaridade, e 
"comunicação" num sentido lato. São monólogos que "conversam", sendo que
 o caso mais relevante é sempre o de Marcelo. As pessoas não se sentem 
"representadas" por Marcelo, mas participam num efeito de comunicação, 
muitas vezes lúdico e intelectual, mas também irónico, maldoso, 
punitivo, uma vontade activa de aprender, um produto cívico que o 
sistema político e os partidos deixaram de fornecer.
Mas se as 
pessoas comuns não se sentem "representadas" por Marcelo, mesmo que com 
ele "comuniquem", uma parte importante da sua real influência vem de que
 os jornalistas, esses sim, compartilham com ele uma relação de mestre e
 discípulos. Desse ponto de vista, a sua influência é real, embora as 
suas opiniões sejam mais difundidas do que discutidas, classificam mais 
do que interpelam. Marcelo "fez" o modelo dominante do jornalismo 
político português, e com excepção de OIndependente de Portas e Esteves Cardoso, os quadros desse jornalismo são-lhe devedores. 
Com a crise do modelo de O Independente,
 Marcelo ficou sozinho dominando a cena da análise e do comentário 
(veja-se o mimetismo de Marques Mendes). Aliás, a estrutura do seu 
comentário é a de um jornal, incluindo agenda, editorial, notícias, 
nacional e internacional, página de desporto, montra de livros, e 
secções do tipo "gente" e "setas para cima e para baixo", e até os 
brindes especiais para os seus espectadores, dados por via dos presentes
 aos interlocutores presentes. Embora Marcelo tenha uma agenda política 
própria, ela é suficientemente transparente para não ser enganadora, e é
 subsumida pelo seu poderoso efeito comunicacional, que o torna uma 
personalidade dos media que só por censura podia ser, como vários
 tentaram, retirada do espaço público, a que acede por pleno direito. (O
 caso Sócrates é mais complicado, e exige uma análise a mais médio 
prazo, porque não estou certo de que não possa também ter efeitos de 
representação, para além da óbvia agenda política própria.)
Não 
menosprezo, bem pelo contrário, esse efeito de representação, porque 
entendo que em momentos de crise faz parte da "pertença" a uma 
comunidade o esforço de estar com os que mais sofrem das consequências 
de um mundo de que perderam o controlo e o norte. Se quisermos é isso o 
núcleo duro do "patriotismo", estar com, estar com a comunidade, com os 
que são mais fracos, mais estão a perder, e menos defesa têm. Parece um 
discurso abastardado de uma certa hipocrisia caridosa que está tão 
entranhada na nossa cultura mole quanto não se pratica. Mas não é, só 
que me faltam palavras para dizer de outra maneira. Tal não significa 
que a análise deva abandonar a racionalidade a favor de uma emotividade 
mais próxima do pathos colectivo. Bem pelo contrário, temos já pathos bastante na nossa vida pública.
É
 por causa desse efeito de representação, que assenta num mecanismo de 
empatia, seja positiva seja negativa, que é mais fácil falar em 
"radicalismo", porque as palavras, os comentários moldam as atitudes. E 
desse ponto de vista há também mais perturbação, que é transmitida pelo 
discurso. Se a veemência fosse apenas de ordem intelectual, ou seja, 
contra nada que não fosse a estupidez (e isso já seria gigantesco), não 
exerceria esse efeito de identificação. Mas não é, é contra algumas 
coisas do presente, que estão no âmago da crise.
Onde é que está a
 fonte do meu "radicalismo" e, penso eu, no efeito de 
representação-identificação de que estou a falar? Primeiro, na convicção
 das pessoas, cada vez mais consciente, de que estão a ser enganadas. Em
 segundo lugar, uma vontade simples de decência nas coisas públicas. Por
 fim, pela recusa de serem governados pelo medo, e governados para o 
medo.
Pode parecer uma agenda moralista, mas é uma pura agenda 
política no sentido nobre da palavra. Compreendo que essa agenda possa 
ser radical, mas a culpa é do estado do "presente", não é minha. O meu 
instrumento é a fúria da razão. É que o engano, o medo e a indecência 
não podem ser tratados com falinhas mansas, mas com dureza e severidade.
 Se não fosse assim, não valia a pena.