ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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13.1.13
A DERIVA ANTIDEMOCRÁTICA A FAVOR DE UM GOVERNO "SEM ENTRAVES"
A democracia é feita de duas componentes fundamentais: o primado da
soberania popular, expressa essencialmente por uma escolha pelo voto, e o
primado da lei num Estado de direito. Não é apenas a escolha pelo voto
que caracteriza a democracia, porque senão viveríamos numa tirania,
associada a uma demagogia populista. Foi assim que Hitler chegou ao
poder, com eleições, mas violando o primado da lei e do direito, e este é
o modelo latino-americano de ditaduras populistas como as de Péron a
Chávez.
Na prática, as coisas são mais complicadas, mas por muito
complicadas que sejam, convém não esquecer o simples, que é também o
essencial: é o voto mais a lei e não é só o voto, nem só a lei. Ora,
poucas vezes se tem assistido a uma tão grande ascensão de posições
antidemocráticas como nos últimos tempos, o que mostra como a "crise" -
uma palavra muito ambígua, mas que serve como descrição de um tempo e um
modo - tem uma forte componente antidemocrática, que provoca uma séria
corrupção dos fundamentos da democracia.
Há dois movimentos não inteiramente distintos na motivação e no modus operandi,
que estão hoje a corroer os fundamentos da democracia em Portugal. Um,
grosso modo, pode considerar-se que vem "de baixo" da insatisfação
popular, da radicalização de sectores sociais como a classe média, do
populismo nas ruas e nas redes sociais e que representa uma pressão a
favor da "democracia directa". Os "indignados" a fazerem assembleias
populares com cem pessoas, convencidos que representam o povo, são a
face ridícula de um movimento mais profundo contra os partidos, os
políticos, o Parlamento, o Governo, a presidência, a representação. Não é
que eles não mereçam muitos dos epítetos menos amáveis que lhes são
dirigidos, mas a "democracia directa" não é pura e simplesmente uma
democracia, mas uma tirania demagógica.
Outro movimento
antidemocrático, bem mais perigoso a curto prazo visto que tem mais
capacidade de subverter as instituições, vem "de cima", da elite do
poder, do governo e do establishment politico-económico que o
controla e lhe define a orientação. O modo como a questão da
constitucionalidade do Orçamento do Estado (OE), do papel do Presidente
da República e do Tribunal Constitucional está a ser tratada constitui
uma deriva perigosa contra a democracia. A sua face visível inclui
recentes declarações de Eduardo Catroga sobre a Constituição como
"entrave à governação", ou de Ferraz da Costa no mesmo sentido, ou de
uma série de empresários e banqueiros politizados que aparecem na
vanguarda de defesa do Governo, no mesmo sentido de considerar que o
Governo devia ter a liberdade de tomar as medidas que entender "para
salvar o país", mesmo que elas fossem ilegais à luz do Estado de direito
encimado pela Constituição.
Há muita indiferença democrática
nessa deriva, mas há também uma vontade de que uma governação em nome de
interesses, ideologias e elites possa ser feita sem qualquer peia
legal, sem "entraves", ou seja, de forma ilegal e antidemocrática. Há
hoje por isso uma pulsão fortemente antidemocrática por parte de grupos,
partidos, políticos, personalidades públicas, e depois amplificada pela
tropa menor dos propagandistas e bloguistas, de cujo alcance nem eles
próprios se apercebem, porque há também muita ignorância atrevida à
mistura. Claro que há também muita necessidade de bodes expiatórios e
consciência de fracasso, ressentimento e radicalismo.
Não me
surpreende que seja assim, visto que os elementos antidemocráticos
inscritos numa democracia que nunca verdadeiramente se emancipou dos
longos quarenta e oito anos de autoritarismo são muito fortes na vida
pública portuguesa. Eles surgem na coligação entre mais velhos que tem
poder económico, já viram muito e compraram gente de mais, sabem muito
bem o que querem e são indiferentes à democracia, e jovens muito
ignorantes, amorais, subservientes aos velhos por complexo e interesse, e
que sem o manto da protecção partidária não seriam nada de nada, como
aliás nunca foram. Neste caldo de cultura e interesses, as ideias sobre a
política, a gravitas de estado, a hipervalorização do "consenso", a
hostilidade ao debate, o medo à competição e ao escrutínio, o receio do
"outro", são a norma que funciona a favor de um universo fechado,
assente nos poderes fácticos e na sua delegação, e que não quer ter
nenhum limite nem aos seus interesses, nem às suas carreiras.
Nos
últimos dias, esta deriva antidemocrátiva veio ao de cima reagindo à
decisão do Presidente da República de enviar as normas do Orçamento para
verificação sucessiva da constitucionalidade, e pelo receio de que o
Tribunal Constitucional lhe dê razão. Estamos a falar de uma
Constituição que de há muito critico, inclusive em muitas das regras que
hoje estão na base do debate público a propósito do Orçamento. Há muito
tempo que tenho um ponto de vista muito negativo sobre a manta de
retalhos do texto, desde o absurdo preâmbulo a muito de programático e
declarativo que está na Constituição. E, como se tem visto nos últimos
tempos, muita dessa ganga não tem protegido de forma eficaz muitos
daqueles "direitos adquiridos" que se consideravam garantidos pela
Constituição. Por isso, mesmo como está, a Constituição tem permitido a
esmagadora maioria das medidas da governação, pelo que só muito
dificilmente pode ser considerada um obstáculo à política corrente. Tem
também permitido a transformação de Portugal numa região europeia
subordinada a um directório estrangeiro.
Mas não é isso que está
em causa, não é o conteúdo da Constituição, nem o direito de a criticar, mas sim os procedimentos que
na Constituição são o fundamento do nosso sistema democrático, que vão
desde os mecanismos do sistema eleitoral, aos poderes de Governo,
Assembleia, Presidente e tribunais. Não pode a Constituição servir para
se afirmar a legitimidade do Governo, porque tal é conveniente, e,
quando coloca em causa eventuais medidas ilegais do OE, ser uma
"entrave" inaceitável à governação e sua bondade. Até porque se as
coisas são assim, não é culpa nem do Presidente, nem do Tribunal
Constitucional, nem da Constituição, mas sim do modo como os actuais
dirigentes do PSD, antes e depois de chegarem ao Governo, trataram da
questão constitucional, primeiro minimizando-a e depois violando-a.
Este
Governo, na arrogância dos seus primeiros tempos, não deu a mínima
importância em falar com o PS para fazer uma revisão constitucional, no
início da aplicação do memorando, quando tal era plausível. Depois,
foi-se emaranhando num labirinto de arranques e recuos, como a discussão
a propósito da "regra de ouro" e do Pacto Orçamental, cada vez com a
sua posição mais fragilizada pelo desastre da política governativa. O PS
foi crescendo, e tornando rígida a sua posição, Até que o patético
apelo à "refundação" do Estado, que era na sua origem um apelo a uma
revisão constitucional in extremis, revelou um Governo acossado perante
um PS em que Passos Coelho conseguiu o milagre de colocar o seu
alter-ego António José Seguro a crescer nas sondagens. Para quem não
acredita em milagres, este move de deslumbramento o mais agnóstico dos
seres.
Hoje, temos um OE que pode estar ferido de
inconstitucionalidades graves, em medidas que são vitais para a sua
execução e põem em causa a continuidade do Governo. A culpa não é do
Presidente em mandá-las para verificação, como é seu dever, nem do
Tribunal Constitucional, se as considerar inconstitucionais, como é sua
obrigação, nem da Constituição que o Governo deve respeitar para poder
ser considerado legal e legítimo. Se o Tribunal considerar que aspectos
do OE são inconstitucionais, a culpa é em primeiro e ultimo lugar do
Governo, que insistiu, contra muitas opiniões qualificadas, em fazer um
OE com dúvidas fundadas de ilegalidade.
Porquê? Porque não sabe
fazer de outra maneira, e precisa de não ter qualquer "entrave" para nos
taxar? Ou porque, consciente ou inconscientemente, está cada vez mais a
caminhar para um abismo que pensa confortável, visto que pode cair
apontando o dedo a todos porque queria "salvar o país da bancarrota" e
"não o deixaram"? As duas hipóteses são provavelmente verdadeiras e
complementares e os motivos mesquinhos, mas ambas são demasiado
perigosas para a nossa democracia. Elas alimentam a crise e a sua
componente de deriva antidemocrática. Como se vê.
(Versão do Público de 5 de Janeiro de 2013.)
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© José Pacheco Pereira
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