ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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1.12.12
OS INTELECTUAIS E "A ANULAÇÃO DO DESTINO"
Ninguém pode, a não ser por abuso, tratar os portugueses como se não estivessem conscientes de que os tempos estão difíceis Pode-se sempre dizer que qualquer tempo é um tempo de
exigência para os intelectuais, embora os intelectuais não tenham uma
história particularmente brilhante de "interpretação" dos tempos. Bem
pelo contrário, os intelectuais têm uma história no século XX de
participarem activamente nas grandes mentiras do século, fascismo e
comunismo em particular, e de justificarem as mais monstruosas das
ideias e das práticas, quando estas enunciavam, mais do que praticavam,
dar-lhes um papel de interlocutor privilegiado na "interpretação" do que
se passava.
Mas, também por isso, tempos como os de hoje são
particularmente exigentes para a réstia de função que ainda podemos
atribuir aos intelectuais. Por duas razões: há uma enorme circulação de
mentiras em curso, e há um enorme sofrimento na maioria das pessoas
comuns e uma perda colectiva da esperança, em si mesmos, na sociedade,
na democracia, no país. Esta é a crise perfeita, como a tempestade
perfeita.
Comecemos pelo sofrimento. A não ser em guerra, onde
todo o tipo de violências, a começar pela morte, marca indelevelmente a
vida de cada um, o plano inclinado da pobreza e da miséria são
particularmente destrutivos. Não estamos numa parte do mundo onde se
morra à fome, onde a vida seja destruída por epidemias evitáveis, ou no
limiar da subsistência. Nem vale a pena perdermos tempo com esses
exageros que muitas vezes nos deitam à cara, para estarmos mesmo assim
felizes porque não passamos o pior. Não é a miséria africana, a
violência urbana latino-americana, o espectro da pobreza asiática do
Bangladesh.
Não é isso. É uma sociedade europeia, saída ainda há
muito pouco tempo de uma pobreza ancestral rural e de bairro de lata, da
emigração e da tuberculose, da mortalidade infantil e do analfabetismo,
para um mínimo de condições de vida, de esperança, de conforto urbano,
de consumos "espirituais", de posse de alguns bens materiais e de
segurança e alguns direitos precários. Tudo pouco acima do mínimo, com
diminuição da pobreza, criação de uma classe média, e também retorno de
alguma riqueza. A diferenciação social e a exclusão continuaram, mas
foram colocadas num patamar diferente.
Foi tudo uma ilusão
artificial, como agora nos dizem? Teve aspectos ilusórios, expectativas
excessivas, mas não foi uma ilusão, foi uma melhoria. Não precisamos que
nos venham dar lições morais com a parte da ilusão, para nos arrancarem
as melhorias, porque a melhoria de vida dos portugueses deve ser
defendida ao limite. O que conseguiram nos últimos anos foi feito com
muito esforço, já para não falar da obrigação de reparação do muito que
se devia ao homem comum, pobre e trabalhador, pela ideologia da
santidade da "pobreza honrada" dos últimos quarenta anos, que deixou uma
pilha de ouro no banco e uma população analfabeta e cujos filhos
morriam no parto como tordos.
A discussão em "economês" dos
nossos dias faz-se para legitimar o desprezo por estas melhorias, tidas
como esbanjamento; pela esperança das pessoas em não perder o pouco que
conseguiram, tido por uma reivindicação egoísta de direitos; a que se
soma um efectivo desprezo pelo seu sofrimento, tido como pieguice.
Sempre achei que atribuir aos governantes que têm de tomar medidas
difíceis estados de alma de indiferença face às dificuldades era
excessivo, mas agora não tenho qualquer dúvida sobre a frieza e a
incompreensão com que olham para o sofrimento dos seus concidadãos.
No
meio disto tudo, acabou a esperança, ou seja, acabou o futuro. Para
várias gerações, em particular aquela que o desemprego de longa duração -
um eufemismo para não dizer eterno - marca com enorme violência, o
futuro acabou. Sabem, com um saber magoado mas certeiro, que a partir de
agora é só caminhar num plano inclinado sem fim, ou seja, até ao fim
dos seus dias. O resultado é não só uma vida devastadora no presente,
onde tudo está a começar ou já começou, e onde o amanhã é apenas o
agravamento do dia de hoje. Estes homens e mulheres estão sozinhos e
também já perceberam que ninguém cuida deles. Estão do lado torto de
tudo, não são "jovens" e por isso nem sequer têm direito ao discurso
retórico sobre a juventude, são os restos vivos do "esbanjamento" do
passado, mesmo quando eram apenas operários têxteis, metalúrgicos,
empregadas de limpeza, secretárias, professores, enfermeiros,
funcionários públicos, encarregados de armazém, trolhas. Ao lado deles,
os jovens têm um futuro radioso, só que fora do país.
Por tudo
isto, as mentiras são insuportáveis, até porque as pessoas comuns sabem a
verdade. Toda a gente tem uma percepção realista da situação, as
pessoas sabem que não vão poder continuar como antes, sabem que as
dificuldades são inevitáveis, e sabem que medidas de autodefesa têm que
tomar, com as suas poupanças e com os seus gastos. Ninguém pode, a não
ser por abuso, tratar os portugueses como se não estivessem conscientes
de que os tempos estão difíceis, e que não podem esperar muito, sendo
que este "ajustamento" natural das pessoas já se deu há muito.
Só
que uma coisa é esta percepção e outra é validar políticas cujo
objectivo não é corrigir excessos, mas empobrecer estruturalmente o
país, para que ele possa fornecer mão-de-obra barata, e atirar para a
caridade ou para o estrangeiro os muitos milhões de portugueses que
estão a mais neste glorioso plano de "refundar" Portugal como um país
estruturalmente pobre, que talvez daqui a algumas décadas - a palavra
surge com cada vez mais regularidade nos discursos do poder - possa
ficar um pouco menos pobre, se "trabalhar muito" e "fizer o trabalho de
casa". Será que os governantes não percebem como isto é ofensivo?
Daí
as mentiras e a petulância. Um secretário de Estado resumiu essa
mentira entranhada quando afirmou no Parlamento que os portugueses
deviam estar felizes porque iam ter a devolução de um dos subsídios
tirados, porque o Governo cumpria, presume-se com alegria, a decisão do
Tribunal Constitucional. Aliás, ele apenas se excitou canhestramente com
uma das muitas mentiras circulantes cujo melhor exemplo é o Orçamento
do Estado e as sucessivas avaliações positivas da troika, peças de uma política cujos perigos dois ou três dias depois vem o FMI enunciar. A verdadeira avaliação da troika é essa, repete o que toda a gente está a dizer do Orçamento, antecipa o que vai acontecer, mas "Tout va bien Madame la Marquise".
Há
por isso mais verdade, na tentativa tardia e desesperada de no
Orçamento comunitário se tentar obter o maior número de fundos para
Portugal, do que no mambo jambo irreal do nosso Orçamento.
Porque, face ao falhanço dos méritos da política de "ajustamento", os
nossos governantes, mais Passos do que Gaspar, voltam-se desesperados
para as ajudas europeias, porque sabem que são a única esperança de
poderem minimizar as suas asneiras. São hayekianos cá dentro e keynesianos lá fora e serão o que for preciso porque se começa a perceber o desespero nas hostes.
Na
verdade, os portugueses também já "ajustaram" os governantes. "Miúdos",
"garotos", como o povo manifestante bem intui, percebendo a sua
inexperiência da "vida", saídos da pior escola, carreiristas e espertos,
obcecados pela "imagem" mediática, conhecedores de mil e um truques,
tão vingativos como ignorantes, deslumbrados pelo seu poder actual,
subservientes face a todos os poderosos, e que incorporaram um
profetismo grandioso sobre "refundar" o país, que rapidamente se torna
numa luta pela própria sobrevivência política, custe o que custar. O
resto é expendable, no inglês técnico de que gostam.
Pode ser que, mais uma vez, os intelectuais traiam, com a obsessão de respeitabilidade, o respeitinho moderado e o sufoco dos bens escassos para distribuir. Mas a obrigação do intelectual, como escreveu Emerson, é "anular o destino", pensar para haver "liberdade". Presos neste miserável destino, o sofrimento de muitos é uma efectiva ameaça à liberdade.
(Versão do Público de 24 de Novembro de 2012.)
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© José Pacheco Pereira
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