ATACAR O DIABO EXTERIOR PARA ESCONDER OS DEMÓNIOS INTERIORES
Uma
parte importante do país sairá à rua para "receber mal a senhora
Merkel". Durante um dia, a rua transpirará de injunções contra a
chanceler puritana, luterana, protestante, severa, insensível,
inflexível, "vinda do Leste", contra a Alemanha opulenta, rica,
exploradora dos povos, "dona da Europa", racista, nazi reciclada,
responsável pelo Holocausto, que é feia e gorda e veste mal, tendo
inclusive cometido o pecado capital de usar duas vezes o mesmo vestido
em público.
A Igreja Católica Apostólica Romana, hipócrita,
pecadora, indulgente, ferida pelas marteladas de Lutero na porta da
igreja do castelo de Wittenberg, complexada pela superioridade moral do
monge e pela sua defesa do "arrependimento verdadeiro" versus "a
moeda que tilintando no fundo da caixa das esmolas libertava uma alma do
Purgatório", gostará desta demonização do puritanismo protestante. As
almas sensíveis dos artistas do "1% para a cultura" sentir-se-ão
violentadas pela "inflexibilidade" inumana da senhora, certamente fruto
da sua pouca atenção à Documenta de Kassel. Os comunistas vingar-se-ão
do fim da gloriosa e tecnologicamente ímpar República Democrática Alemã,
fruto das melhores tradições de Luxemburgo, Liebknecht e Thaelmann, e
também de Erich Honnecker aos beijos a Brejnev. A turba deprimida do
nosso jet-set nacional e das bocas no Twitter rejubilará com
aquilo que acha ser a grosseria de traços da mulher alemã, que investe
nos palcos do mundo como um "paquiderme", levando tudo à frente como se
fosse um tanque. De arianas eles preferem as princesas de Fürstenberg
modernas, vagamente raçadas de Paris Hilton, entre a Hola de
direita e o Twitter imbecil da esquerda que cintila de trivialidades. Em
suma, uma salada de motivos para "receber mal a senhora Merkel" e eu
adoço a coisa por educação, porque é para correr "a" Merkel lá para a
fora.
Mas haverá dois pequenos grupos de portugueses que ficarão
particularmente felizes com o palco ocupado por meia dúzia de dias pela
senhora Merkel: os fãs de José Sócrates e a dupla Passos Coelho-Relvas e
os seus propagandistas. Cada insulto à chanceler personifica o
provérbio de que enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. O ódio a
Merkel concentrará as atenções na Alemanha, na Europa, nos factores
externos da nossa miséria, e isso será eficaz "para fazer folgar as
costas", porque realiza a junção de queixas à direita e à esquerda.
Quando
as queixas são, como se diz, transversais, tornam-se muito poderosas e
eficazes. E quer aos europeístas que desejam o federalismo e o fim de
toda a soberania nacional nuns Estados Unidos da Europa, quer aos
nacionalistas anti-euro, quer aos "indignados" anarquistas e os
populistas saudosos de Salazar, a senhora Merkel é um alvo propício, com
a enorme vantagem de unir "socratistas" e "passistas" na abjuração do
exterior, do estrangeiro, da conspiração dos mercados e dos bancos, da
falta de investimento alemão, das taxas de juro "usurárias", da
fidelidade canina ou da negação pavloviana da troika, tudo vai dar a Merkel.
A
senhora tem responsabilidades, mas convém não nos iludirmos: o mal está
cá, o diabo exterior não pode esconder a corte de demónios interiores
que nos assombram. Merkel personifica os factores externos da crise que
só um cego diria não existirem, mas reduzir a crise que atravessamos aos
seus condicionantes externos é um exercício de desresponsabilização que
é central na propaganda de legitimação de Sócrates e Passos Coelho, mas
ilude-nos quanto à realidade.
De quem é a responsabilidade da
crise de 2011? Sócrates em primeiro, segundo, terceiro, enésimo lugar, e
no lugar enésimo mais um acrescenta-se Passos Coelho. A "narrativa", ou
seja, o argumentário que hoje alimenta os mais esclarecidos defensores
de Sócrates, António Costa, Pedro Silva Pereira e Santos Silva assenta
numa combinação de factores externos agindo na linha cronológica como
causas. Primeiro, a crise "tóxica" da banca ameaçou destruir o sistema
financeiro, o que explica o salvamento do BPN. Depois, em resposta a
esta crise, segue-se uma política europeia expansionista, disparando os
gastos públicos com permissão táctica de violação dos défices, o que
explica coisas como a Parque Escolar. Depois, crise das dívidas
soberanas, motivada pela revelação das mentiras das contas gregas, e
descalabro dos juros por causa da Grécia. Em resposta, liderada pela
mesma Alemanha que tinha mandado gastar no mês passado, manda-se no mês
seguinte travar às quatro rodas a política keynesiana do atirar dinheiro
à crise.
Sócrates, endividado até aos limites, fica entalado em
ano eleitoral, e, após as eleições, inicia a austeridade com os PEC,
com o beneplácito activo da senhora Merkel, que lhe teria prometido
cobertura (não se sabe bem como e até quando). Tudo factores externos. A
esses factores externos soma-se um interno, o voto contra o PEC IV,
resultado de uma conspiração de Cavaco e de uma acção de Passos Coelho.
Esta recusa do PEC, associada a uma "traição" de Teixeira dos Santos,
precipita a entrada da troika e a derrota eleitoral clamorosa de Sócrates.
Esta
sequência tem o mérito de ser uma "narrativa", o que sempre é melhor do
que o silêncio incomodado das hostes de Seguro, que deixa o PS sempre a
perder, quando o PSD e o CDS vêm com a história (aliás, por confirmar)
de que dali a uma semana não havia dinheiro para pagar salários, mas é
falsa. Ignora um aspecto essencial da nossa crise, que tornou o disparo
exponencial dos juros nos mercados inevitável e imparável, fechando-nos
os mercados, e que tinha a ver com o nosso descalabro da dívida e do
défice, resultado das políticas dos governos PS. Quem fez as PPP, quem
criou os Magalhães, quem aumentou os funcionários públicos em vésperas
de eleições não foi a senhora Merkel, para não ir mais longe.
De
quem é responsabilidade da crise de 2012? De Passos Coelho, Relvas e
Gaspar. De Relvas, porque com ele, o Governo está sempre no estado de
zombie, de Gaspar, porque caminha sem um segundo de dúvida para
"ajustar" o navio ao icebergue, com o rumo à latitude 41º 46" Norte e à
longitude 50º 14" Oeste. De Passos Coelho, por tudo isto e tudo o mais.
Também aqui os factores externos não explicam as sucessivas previsões
erradas, a ignorância profunda do país, no plano social e económico, a
incompetência generalizada, o governar em cima do joelho aos arranques e
recuos, a incapacidade de aprender com os erros, a arrogância face aos
sofrimentos dos portugueses, a destruição sistemática do país, em nome
de um profetismo "refundador" de pacotilha que só a ignorância
justifica. A culpa não é certamente da senhora Merkel.
Por isso,
protestem contra senhora Merkel, se entenderem, porque ela também não é
inocente, mas não se iludam quanto às responsabilidades principais. Em
Paris, no Quartier Latin, e em S. Bento, haverá um grande sorriso,
enquanto os portugueses se esforçarem para exorcizar um Lúcifer e
longínquo e deixarem povoar o quarto de poltergeist, fantasmas e legiões de demónios secundários. Mais vale ler a Pseudomonarchia Daemonum e rezar a S. Bartolomeu, que sabia de demónios.