ABRUPTO

1.8.12


ENCOSTADOS A UM CANTO
Antes do "ajustamento", as pessoas "ajustavam-se" para ir para o Algarve e a grande transumância entupia as estradas de Norte para o Sul. Várias vezes escrevi sobre isso e habitualmente, no princípio de Agosto, previa-se o "estado do país" em Setembro, no regresso, e em Outubro com as primeiras chuvas. Já há vários anos que, no regresso ao trabalho, para quem tinha férias - sempre o sublinhei, uma minoria -, a coisa estava mais negra do que antes.

O declive do país não é de agora e já de há muitos anos a esta parte se percebia que nada estava a melhorar e várias coisas estavam a piorar. Mas a dimensão ainda era apenas a de um lento declínio, um escorregar manso para os fundos da casa nacional. Agora é mesmo uma queda acentuada, já não para os fundos da casa, mas para o inferno sobre o qual ela assentava e que se abriu aos nossos pés. Daí saiu o Diabo e comeu-nos o futuro.

Não há futuro, chega dizer isto. Não há futuro e as pessoas sabem-no. Não há futuro para uma grande maioria, mas a queda não é para todos, as pessoas também o sabem demasiado bem. Antes, lá íamos cantando e rindo, empurrados pela silly season. Agora lá vamos chorando e com ranger de dentes. Faz toda a diferença. Eu sei, os meus severos leitores sabem-no, os portugueses também, o Governo sabe e até o habitante da Vila do Corvo o sabe. Não há futuro. Faz toda a diferença.

Em Setembro, todos os actores do poder, da oposição e das diferentes forças políticas, económicas e sociais estarão encostados à parede num quarto cada vez mais pequeno. Encostados a um canto. Uns sabem, outros não. Uns vão saber a mal, outros vão tentar abrir um buraco na parede. Na verdade, já lá estão todos no canto, mas o mês dos banhos, da transumância e do cancro na pele, este ano acumulará mais tensões do que descansará. Este ano não haverá sequer silly season que pegue, por muito inquérito imbecil que os jornais façam. Vai haver quem faça tudo para a estação ser silly, e há gente com muita capacidade para a patetice e que a exerce como quem respira, mas os ânimos não estão para as brincadeiras de praia. Ah! E não se esqueçam que o vendedor de "línguas-da-sogra" tem que passar factura e podem ser multados se não a pedirem.

Já escrevi e repito que nesse canto da casa onde estamos, a raiva vai ser a resposta mais comum. A raiva é um sentimento complicado, que nem sempre transparece na violência pública, seja contra os familiares, os colegas, os polícias, a montra de um banco, ou um carro preto do Governo. George Santayana escreveu que "a depressão era uma raiva espalhada fina" e, numa das melhores descrições da raiva "espalhada grossa", Melville falava do capitão Ahab que descarregava sobre a baleia branca "a raiva e ódio sentido por toda a raça humana de Adão até aos nossos dias". E como se não chegasse tão monumental violência ainda diz que se "o peito [de Ahab] fosse um morteiro, faria explodir a granada do seu coração em brasa sobre ela", a baleia. Já temos baleia, temos o morteiro e temos o capitão Ahab.

Não há segredo nenhum sobre a pretensa passividade e "aquiescência" dos "pacientes" e "pacíficos" portugueses face ao "ajustamento". E não há segredo nenhum porque não há qualquer dessas atitudes, nem paciência, nem passividade, e muito menos aquiescência. O modelo que vê a "impaciência" pelas batalhas campais nas ruas gregas, quando uma minoria de anarquistas, esquerdistas e outros partidários do cocktail Molotov se atira à polícia, esquece que o bloqueio político que resulta do voto e da abstenção dos gregos é muito mais importante para a "crise" do que os confrontos de rua. E muito mais democrático, porque aí pode-se falar em nome dos gregos com propriedade, mesmo dos que votaram na Nova Democracia.

É na pedrada na rua que se vê a raiva? Não, não é. Não olhem para a raiva de baixo, olham para a raiva de cima. É que não são só os de baixo que percebem que estão a ficar encostados a um canto, são também os de cima. Os de cima já perceberam que os melhores tempos já estão no passado, que o Governo já está mais estragado e hesitante do que o que eles desejavam, que já não está intacto e forte, mas que uma mistura de Relvas, mais o défice incontrolado, mais, espantem-se, a proximidade de eleições, está a dar second thoughts àqueles que queriam apenas como "bons alunos" e executores. O magma da "política", que os de cima tanto desprezam, começa a vir à superfície e será o "ruído" que não desejam. Ou, como diz o FMI de forma certeira, há "fadiga do ajustamento". E os de cima pensam que ainda está muita coisa para fazer, para agora já lhes começarem a dizer que se chegou ao limite. Começam a ter a sensação de que foi uma oportunidade única, ainda é uma oportunidade única, mas que está a acabar, começa a faltar o espaço. O canto começa a ficar apertado. Daí a raiva crescente.

É quando Pedro Ferraz da Costa diz, com aquele ar perpetuamente zangado e enjoado com o mundo, que é preciso acabar com 100.000 ou 200.000 empregos na função pública, sem problema nenhum, porque o Estado vai continuar a funcionar na mesma. É que não é análise, é desejo. É quando se defende um mundo que funcione para as "empresas" - uma abstracção funcional porque o que eles querem dizer é outra coisa - sem ter que emperrar porque há leis, direito e direitos, instituições e eleições, interesses outros que não os das classes "certas". Quando esse discurso, bruto e sem ambiguidades, veio ao de cima com a decisão do Tribunal Constitucional, percebemos bem a raiva.

No meio disto tudo, Passos Coelho fornece outro produto, mais à sua dimensão de executante, mas que também transporta alguma desta raiva. É quando Passos Coelho diz que "não estamos a exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a "exigir" e ainda não levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral que mostra o imaginário onde estamos metidos; não podemos correr o risco de nos cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e sapatos Jimmy Choo!

Passos dizia que as pessoas "simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar".

O papel destas ideias, elas sim "simples" no sentido bíblico, é que são aquilo que está metido dentro da cabeça do discurso do poder actual, mais por parte dos executantes do que dos mandantes. O teatro do poder actual é composto por poucas personagens a preto e branco: os credores, os devedores, os empreendedores, os "não competitivos", os que "vivem acima das suas posses" e os "ajustados", os "alavancados" e os "desalavancados", os "piegas" preguiçosos e os bons alunos que fazem o "trabalho de casa" e não querem ter direitos, os "pacientes" e as "baratas tontas". Não é um mundo muito complicado, é até assustadoramente simples, mas assusta saber que é este teatro de sombras que move o discurso do primeiro-ministro. Nele não há pessoas e quando as há estão do lado do mal, são "ruído", são não-económicas na sua essência.

Para alguns, falar dos de cima e dos de baixo, é marxismo. Coitados, sabem bem pouco o que é o marxismo, para sequer perceberem que Marx escreveu toda a sua obra para explicar que não era "científico" falar assim dos conflitos sociais. Não, não é marxismo, nem pcpismo, nem bloquismo, é apenas repetir a mais velha percepção de que os conflitos sociais de sempre se fazem entre quem ganha e quem perde, quem é mandado e quem manda, entre quem tem e quem não tem. Vem em Aristóteles e vem em Aristófanes, a sério e a gozar.

Em alturas de mudança social profunda, neste caso associada à destruição da classe média e ao empobrecimento generalizado, quem não percebe isto, não percebe nada. Em Setembro, acordará do seu sono percebendo o canto a que está encostado. Ou em Agosto, ou em Outubro. Porque estas coisas, uma vez maduras, não escolhem nem dia nem hora.
 
(versão do Público de 29 de Julho de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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