ABRUPTO

14.5.12


UMA SOCIEDADE MOVIDA A FAVORES E CUNHAS


Vai-se realizar em breve um leilão da Livraria Luis Burnay de manuscritos, fotografias e efémera, com um conjunto excepcional de espécies. O catálogo já saiu e por ele se pode medir a relevância do leilão, muito centrado nos séculos XVIII e XIX. Uma parte importante está associada a correspondência particular de e para o intendente-geral da Polícia, o famigerado Diogo Inácio de Pina Manique.

Porém, não é a importância do leilão que aqui me interessa, mas sim o que muitas das suas peças, correspondência em particular, revelam sobre Portugal, o de então e o de hoje. Cobrindo trezentos anos, o Portugal que lá está retratado não é homogéneo e tem muitas diferenças nesta série cronológica. Há todo um mundo, principalmente o do "antigo regime" até à ida da corte para o Brasil, as invasões napoleónicas, a revolução liberal e a guerra civil, que desapareceu de todo. Aquela nobreza, aqueles criados, aqueles "pardos" e "negros", escravos que andavam por Lisboa, desapareceram e com eles os lugares das "pessoas" na rígida ordem social. Já no mundo oitocentista, em particular no período do constitucionalismo monárquico, reconhecemos muito do Portugal dos nossos dias, até porque aí são políticos e intelectuais que aparecem melhor representados nos manuscritos da época, e estes mudam muito menos do que desejariam. Mas, globalmente, só por anacronismo se podia pensar que se pode traduzir à letra para o Portugal de hoje muito do que aparece nas cartas e bilhetes que vão ser leiloados. E, no entanto, se não for à letra...

A maioria dos manuscritos são cartas e bilhetes, enviados por portador, criados e soldados, e depois pelos serviços do correio. A parafernália associada à correspondência antiga está toda presente, lacres, selos, assinaturas elaboradas, envelopes desenhados com monogramas e brasões, e acima de tudo um universo da escrita elaborado, cheio de regras de etiqueta, mas muitas vezes saltando para o estilo vivo, a ironia, a qualidade literária e o valor histórico. Uma, entre várias cartas de Camilo, mostra essa ironia criativa: "O Jorge também aqui está. Come bem. Hontem depois de comer três costelletas e ½ canada de verde dizia que a respeito de ceo só conhecia um: o ceo da boca. Isto se não é puro Voltaire, a Conceição não era capaz de o dizer." Ramalho Ortigão também lá está, pedindo a um genro coisas bizarras de Paris: "Peço-lhe que me compre na Rue de l"Université n"uma brosserie que fica à entrada a caminho da minha antiga casa, logo ao sahir do Pont de la Concorde - um osso de veado destinado à adoucir la chaussure. Custa 1fr. 50"".

A correspondência era o meio habitual de comunicação num mundo sem telefone, com distâncias difíceis de percorrer, e as cartas serviam para fazer "mover" a sociedade, com os seus interesses, curiosidades, seduções, bajulações, intrigas e favores. É isso que torna estas cartas particularmente interessantes, porque nunca passou pela cabeça dos seus autores que pudessem ser conhecidas fora do seu interlocutor e muito menos publicadas. Elas contêm alguma política, alguma vida militar, alguma actividade intelectual, mas acima de tudo são aquilo que os ingleses chamam a slice of life, uma fatia da vida comum. Ora essa slice of life diz-nos muito sobre o nosso Portugal.

Um dos aspectos mais significativos era o papel do favor, da cunha, do empenho, do clientelismo e do patrocinato. Os "conhecimentos" e as "protecções" eram fundamentais para quem não fazia parte dos de cima, e isso introduzia uma relação clientelar habitual na sociedade. A nobreza actuava assim, embora haja uma observação cruel sobre os nossos nobres num apontamento dos papéis do conde da Carreira, que também estão no leilão: "Que cousa é um titular portuguez? É uma espécie de animal vil, ignorante, orgulhoso e caloteiro. Há porem alguas raras, excepçoens, mas talvez não haja um só titular ou individuo da raça titular portugueza, aquém não convenha uma das qualidades da definição, entretanto que todas as quatro assentão perfeitamente na generalidade."

Porém, quando o marquês de Abrantes escreve ao Barão de Quintela, em 1805, para favorecer um canteiro seu afilhado que "se valle de mim para eu rogar a V. Srª o favor de lhe dar de empreitada a cantaria da sua obra (...) por isso pesso a V. Srª (...) me fassa o obsequio de preferir o meu afilhado"; ou quando o marquês de Angeja, em 1791, pede a Pina Manique o favor "de mandar admitir no [Recolhimento do] Castello, hum minino para nelle aprender a ler, escrever, e depois ser instruído na arte que lhe for mais útil e da sua inclinação"; ou o quando o duque de Cadaval pede ao mesmo Pina Manique para libertar um preso dizendo que "tenho no meo serviço um Muzico chamado Vipe e querendo eu oje divertir-me fazendo huma pouca de Muzica"(...) mas não o acharão em Caza e agora me dizem fora prezo a Ordem de V. Srª, queria então dever a V. srª o obezequio de mo mandar soltar ó omenos dizer-me arrazão porque está Prezo"; todos estão a fazer algo de absolutamente normal na sociedade da época. Cento e cinquenta anos depois, nos anos vinte do século XX, a escritora Branca de Gonta Colaço, filha de inglesa, faz o mesmo tipo de empenhos: "O portador da presente chama-se Adriano Esteves. É bom rapaz, honrado, trabalhador, sabe ler e escrever. Eu gostava tanto de o ajudar a empregar-se!.. No arsenal como servente, ou ajudante de caldeireiro, - não seria possível? Elle é noivo da minha cozinheira, que está anciosa por casar-se, e que, quando a questão do emprego do Adriano Estêves córre mal, nos queima todos os guizados".

Todos pedem a todos: o marquês do Alegrete, em "huma grande vexação", "a pedirlhe que ou por si ou por algum amigo me empreste dezaseis moedas, as quaes eu satisfaso athe o dia vinte de Janeiro"; o marquês de Alorna, o envio de um italiano especialista em bichos-da-seda , agradecendo "pelo socorro que me derão para a restauração d"esta fabrica de seda, que se achava em grande decadéncia, pelo descuido e falta de exacção do Capitão Mor de Avis, que (...) me deixou sem a semente dos bixos que lhe entreguei"; o conde de Aurora, que pede a Jorge de Faria "interesse e amiga camaradagem no caciquismo para o Grand-Prix do S.P. N. (...) Por acaso sei que o ultimo (...) agradou geralmente. - inclusive ao Ferro e mulher." Lá ganhou o prémio Eça de Queirós.

Os pedidos ao intendente são reveladores do seu poder, que era um foco de atracção para as cunhas e favores, e por todo o lado aparecem cartas pedindo desde coisas sérias a triviais. Há denúncias várias, outra constante da vida portuguesa, e perigosas pelo homem a quem eram dirigidas, como esta do conde de Redondo sobre um caso de violência doméstica: "A Srª Marqueza de Angeija D. Francisca mandou pedir a V. Srª quisesse mandar prender hum homem chamado Luiz [?] pelo motivo da má vida que este dava a sua Molher fazendo-lhe as maiores tiranias que pode aver querendoa matar por muitas vezes e ultimamente mettendo-lhe em caza huma Amiga com quem trata há muitos annos e ate querendo que sua Molher andasse inculcando huma filha sua a qual obrigava a andar em trages de Meretriz." Mas há também a mais absoluta trivialidade das coisas de todos os dias, como o pedido da marquesa do Lavradio, em 1789, aborrecida com a demora na Alfândega em lhe chegar um caixote de tabaco e por isso "pesso a V. Srª me queira fazer o favor deme mandar entregar esse caixotinho de Tabaco Rape (...) que eu mandei vir para mim" porque lhe "custa a tomar o Tabaco de cá (...) Avizo ainda que me faz bem falta porque absolutamente já não tenho nenhum". O intendente recebe também presentes pelos seus serviços. O duque de Northumberland, em 1792, escreve-lhe oferecendo "hum barril de Cidra de Inglaterra, que mando no Navio, The Seven do Capitão Shore. Espero quer seja do gosto de V. Srª e que me fará a honra de acceitallo como hum sincero sinal da minha amizade."

O problema não está em observar a predominância destas práticas na sociedade portuguesa do século XVIII e XIX, mas sim em perceber por que é que elas mudaram tão pouco, mesmo com o aparecimento de burocracias modernas e com o fim do antigo regime. Antes da existência de uma burocracia moderna, supostamente alicerçada no mérito, na carreira, nos títulos escolares e académicos e na competência profissional, era natural este mecanismo de troca de favores, entre todos os que acediam ao poder, que intercediam por si e pelos debaixo de si. Mas é impossível deixar de encontrar um espelho dos costumes pátrios que continua a existir, agora sem serem postos no papel e de forma mais sofisticada, mais cara e... ilegal.


(Versão do Público de 12 de maio de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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