Um
longo convívio com livros e papéis antigos ensina muito sobre a
natureza da vida, da história, das pessoas. Poucas coisas são mais
loquazes do que os livros, é preciso é saber ouvi-los.
A voz tem
que ser forte porque, para cada livro vivo, há bibliotecas gigantescas
mortas. Aqui há uns tempos, na Hungria, fez-se uma exposição só com os
livros que ninguém tinha consultado desde 1989 nas bibliotecas nacionais
e cemitério mais povoado é difícil. O nome da exposição era Biblioteca Morta.
Mesmo que a data fosse mais longínqua, muito livros lá entrariam. No
entanto, nesta matéria de livros, mesmo os mortos falam, sussurram pelo
menos. Pouco provável que tudo isto seja, nas páginas do Público, alguns
livros dessa Biblioteca Morta vão falar e ser ouvidos.
Entre
as coisas de que falam os livros mortos encontra-se a fama, o desejo
oculto de reconhecimento e glória expresso em toneladas de volumes
esquecidos. A fama é vã, mil e uma citações clássicas dizem o mesmo. A
glória é vã, vanglória é a palavra apropriada. E, no entanto, como o
mundo em que vivemos é bem pouco clássico, a fama tem hoje um
considerável sucesso, boa imprensa e melhor televisão. Por todo o lado,
carreiras baseadas apenas em se ser conhecido seja onde for, seja por
que for, merecem atenção de muitos. É hoje uma indústria vigorosa que
casa bem com o crescendo de espectacularidade na comunicação, e que
depois impregna todo o espaço público.
O desejo de "ser famoso", "ter protagonismo", é transversal a todas as actividades humanas e encontra hoje poucos sic transit gloria mundi no
seu caminho. E uma miríade de pequenas personagens espalha a sua "fama"
muito para além dos quinze minutos a que poderiam ter direito por
qualquer crime hediondo. Heróstrato teve que incendiar o templo de
Artemisa para hoje ainda ser lembrado, o que mostra que não é preciso
ter qualidade nenhuma para ficar na história, de novo uma história sobre
a fama em reverso. E Warhol institucionalizou o direito aos quinze
minutos de fama, o que a tornou ainda mais barata embora mais breve.
Pagou o preço ele próprio com três buracos de bala da fama de Valerie
Solanas, cujo manifesto e movimento SCUM ainda hoje aparecem nas
antologias à sua custa.
Que a coisa é breve, mesmo quando voa
alto e parece indestrutível, os livros mostram-no bem. Na minha
biblioteca familiar, começada ainda no século XIX, há um número
considerável de livros de um autor que desconhecia de todo:
Charles-Antoine-Guillaume Pigault de l"Épinoy, conhecido por
Pigault-Lebrun. A maioria destes livros é do fim do século XVIII e do
início do século XIX e era evidente pelo número de edições que tinham
sido um enorme sucesso, best sellers como o Código Da Vinci.
Ora, mesmo em França, o número de pessoas que conhecem Pigault-Lebrun
fora dos estudiosos de literatura, é escassíssimo, e muito menos serão
os que se lançam na aventura de o ler.
Lista (incompleta) de 71 volumes de obras de Pigault-Lebrun.
O homem tem uma biografia
curta na Wikipedia, sinal seguro de esquecimento, mas nem por isso
menos interessante. Era um libertino divertido, aventureiro, actor,
encenador, funcionário das alfândegas e bibliotecário de um dos
príncipes Bonaparte, com um historial de prisões por questões de saias,
uma das quais a pedido do pai. Andou por Inglaterra a seduzir senhoras,
teve que fugir, e veio para França fazer o mesmo. Era um pouco mais novo
do que o Marquês de Sade, mas apanhou o mesmo período turbulento da
História francesa, a Revolução do princípio ao fim, Terror, Directório e
Império. Aos quarenta anos, resolveu escrever e os seus livros e as
suas peças de teatro são, como se imagina, intragáveis, mas foram um
grande sucesso.
O apogeu e a queda de Pigault-Lebrun não
passaram despercebidos aos seus leitores mais ilustres, porque
Pigault-Lebrun não tinha apenas um sucesso popular, mas era considerado
por homens como Stendhal e Flaubert. E foi também com surpresa que
descobri que Flaubert já se tinha interrogado em 1852 sobre o mesmo que
quase duas filas de estante me tinham "dito" sobre o pobre autor (já não
se consegue dizer nada de novo sobre nada, que é outra lição de
vanglória que os livros ensinam...). Numa carta, Flaubert diz a uma
amiga que lera, imagine-se, Pigault-Lebrun e Paul de Kock, e que essas
leituras o tinham deixado numa "atroz melancolia". E continua: "O que é
que é a glória literária?" Nada, como se vê, porque Pigault-Lebrun já
estava esquecido poucos anos depois da sua morte.
Obras de Paul de Kock traduzidas em português.
Curioso, e de
novo nada de novo sobre a terra, o segundo autor de que queria falar
hoje, ligado à voz sussurrante dos livros, era esse mesmo... Paul de
Kock. Como com Pigault-Lebrun, Paul de Kock está super-representado na
biblioteca familiar. Literalmente mais de cem títulos, incluindo alguns
com vários volumes, como também acontecia com Pigault-Lebrun, que
parecem ter sido avidamente lidos e depois, nada. Edições baratas a
desfazerem-se e volumes encadernados a rigor, Paul de Kock estava por
todo o lado. Tinha porém na biblioteca familiar, a dúbia honra de também
ter alguns dos seus volumes no móvel que era conhecido como "inferno",
onde, fechados à chave, havia alguns volumes considerados impróprios
para menores, ou perigosos para maiores. Renan, Karl Marx, Guerra
Junqueiro e Paul de Kock, supostamente por ser brejeiro.
Se a
Pigault-Lebrun ainda tentei ler para perceber a fama, desistindo
rapidamente, a Paul de Kock nem essa tentativa fiz, o que pode
significar que estou aqui a dizer monumentais asneiras sobre um génio
ignorado. Penso que não, mas outra coisa que os livros dizem é que é
melhor não os enterrar de vez na classificação de menores ou de
esquecidos, porque um dia um cineasta faz um filme, ou alguém publica um
ensaio de sucesso e eis que o meu autor ignorado volta como "autor de
culto". Como os intelectuais, debaixo deste rótulo, são capazes de
louvar e até de ler, as coisas mais absurdas de más, pode ser que Kock
se levante do túmulo do esquecimento. Duvido. Mas enfim...
Outro
esquecido representado em robustos volumes é Alexis Piron, mais velho do
que os outros dois. Piron sobrevive hoje quase só pelo seu epitáfio; "Ci-gît Piron qui ne fut rien / Pas même académicien",
que, convenhamos, não é má maneira de sobreviver. Mas os seus versos e
peças de teatro, que enchem uma fila de estante, mesmo assim muito menos
que Pigault-Lebrun e muitíssimo menos que Paul de Kock, também têm lá
pousada a mosca que nas naturezas-mortas lembrava a fragilidade dos bens
da vida.
Nestes tempos complicados, cheios de ruído e nada, os
velhos livros lá estão para nos ensinar alguma coisa. Essa coisa é muito
simples: quem os viu e quem os vê.