ABRUPTO

18.5.12


LOURENÇO E O PESSOA 

Pouca gente mereceria mais o Prémio Pessoa do que Eduardo Lourenço. Devo muito a Eduardo Lourenço, a começar pelo segundo volume de Heterodoxia e pelo ensaio crítico que escreveu sobre a poesia neo-realista, os primeiros textos que li de um português que criticavam a hegemonia cultural do marxismo soviético na sua tradução nacional sem ser possível colocá-lo do lado dos defensores do regime. 

Hoje, livros como o Heterodoxia, parecem coisas simples, mas eram coisa para o gigantesco na altura em que foram feitos. E tão excepcionais eram que foram respondidos pelo silêncio que protege a incomodidade. O livro permanecia, como aliás muitos escritos de Lourenço, num limbo bem afastado da moda corrente, na primeira edição. Escrevi-lhe então uma carta entusiasmada sobre o livro, a que ele retribuiu gentilmente e mais tarde convidou-me para participar na apresentação da segunda edição no Centro Nacional de Cultura. E a partir daí participamos nalguns projectos comuns e temos mantido uma estima pessoal e intelectual que não posso deixar de lembrar com o meu gosto pelo seu prémio. Também eu conheço, como Vasco Graça Moura lembrou recentemente, a sua escrita quase ilegível, quase como se as suas palavras procurassem ser uma espécie de sinal vital essencial, de perturbação humana sobre a linha flat da morte. 

No seu discurso a receber o prémio, Lourenço fez também uma coisa cada vez mais rara: trouxe consigo esse “país estrangeiro” que é o passado, para homenagear, ao receber o Pessoa, o papel dos que ajudaram Pessoa a ser mais do que um grande poeta, um elemento simbólico dos nossos tempos portugueses do século XX. Falou de gente esquecida como Adolfo Casais Monteiro ou João Gaspar Simões, que alguns, poucos, intelectuais recordam e ainda menos lêem. E ao falar sobre eles, falou também sobre si. Falou num momento de consagração pessoal, sobre como é efémera essa glória e como nós temos uma excelente capacidade para esquecer o importante e uma excelente capacidade para perpetuar a trivialidade. As duas coisas juntas foram o seu verdadeiro discurso sobre a crise.

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© José Pacheco Pereira
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