ABRUPTO

14.4.12


UM LEITOR DE REVISTAS NO PORTO DOS ANOS SESSENTA

  "The past is a foreign country: they do things differently there" (L. P. Hartley)

 Ver UM LEITOR DE JORNAIS NO PORTO DOS ANOS SESSENTA.

Uma das minhas "casas", a Biblioteca Pública Municipal do Porto. No livro de registo de leitores de anos a fio deve estar a minha assinatura, todos os dias, umas vezes de manhã, muitas de tarde e algumas à noite. Nalguns dias de manhã, de tarde e de noite. A Hemeroteca encontrava-se na grande sala do rés-do-chão à esquerda de quem entra pela porta principal. As janelas enormes faziam entrar muita luz, mas também os sons da rua e dos eléctricos que passavam por S. Lázaro, que eram muitos. De vez em quando alguém espreitava da rua para ver esse espectáculo estranho da sala de leitura. Ao fundo da sala estavam os funcionários da Biblioteca, que tinham entrado por uma cunha qualquer, e que detestavam o que faziam. Estes lugares de baixo na cadeia hierárquica da Biblioteca eram todos de cunha, e alguns de cima também. Eram mal educados, preguiçosos, ignorantes e faziam apenas o necessário com o mínimo esforço. Era frequente estarem a dormitar na sala, sentados numa cadeira, à frente das preciosidades mais pedidas: os jornais do dia, histórias aos quadradinhos, e o Diário do Governo. Na sala, os habituais leitores: o meu professor de Filosofia, Cruz Malpique a preparar o enésimo livro, escrevendo página sobre página nas provas do livro anterior. Alguns autores de monografias locais, um deles usando mangas de alpaca para não gastar o casaco. Todos muito velhos. Não havia mulheres, a não ser excepcionalmente, os leitores eram todos homens.

 Continuemos pois a digressão pelo "país estrangeiro" do "passado", onde "as coisas se faziam de modo diferente". Para um leitor do Porto nos anos sessenta (incluindo aqui os quatro anos até ao 25 de Abril dos anos setenta por facilidade), o mundo das bancas ia muito mais para além dos jornais. Digo bancas, mas na verdade, era o mundo das pequenas tabacarias, das lojas de jornais dos cafés, e de alguns ardinas que tinham pouso certo e que, estando bom tempo, estendiam os jornais e revistas em caixas de madeira. Quiosques, essa inovação persa, quase não existiam.  

As revistas que lia eram todas de fora do Porto, por isso, precisavam de ser procuradas com alguma diligência, porque a ideia de um número qualquer estar à minha espera vinte e quatro horas era uma dor de alma. Tudo o que saía tinha de ser consumido de imediato, um vício como outro qualquer, mas que as condições de claustrofobia do Portugal ditatorial acentuavam.


Como era habitual no Porto, as bancas dos jornais estavam junto dos grandes cafés, e, quando digo grandes, são mesmo grandes. O Palladium era um gigante com vários andares, com café, bilhares, jogos de mesa, incluindo um grupo de xadrezistas, e, nos primeiros anos da televisão, uma audiência assegurada todas as noites. O Café do Padrão e o Guarani, ambos ainda existentes, tinham à sua volta várias tabacarias e bancas, assim como o Majestic, e os vários cafés na Praça da Batalha, Avenida dos Aliados e na Praça dos Leões. O Porto vivia e ainda vive de uma cultura de café que não tem paralelo em Lisboa, nem no passado, e muito menos no presente. De manhã, e quando chegavam os jornais de Lisboa, mesa sobre mesa, estavam ocupadas por pessoas a ler. Neste "país estrangeiro", a imprensa não estava em crise.


A minha revista de obrigação e eleição era o Cavaleiro Andante, quando a "banda desenhada" eram apenas as histórias aos quadradinhos e cada "continua" no fim de uma página transportava uma enorme curiosidade pelo que iria sair na semana seguinte. Já escrevi sobre o Cavaleiro Andante, e sobre as histórias de E.P. Jacobs, as minhas favoritas. Se não fosse a revista semanal, não havia outro modo de saber como é que o professor Mortimer e o coronel Blake se safavam da Atlântida ou da máquina do tempo ou das malfeitorias de Olrik n"A Marca Amarela. Não havia então álbuns de banda desenhada à venda, nem "autores", mas séries e histórias, personagens e "paisagens", que tinham um ritmo semanal de suspense e mistério. Eram histórias aos quadradinhos, não eram "banda desenhada" e não eram histórias intelectuais ou de "autor", mas entretenimento e aventura. Eram the real thing.


Na Hemeroteca do Porto, que frequentei desde muito novo, havia um grupo de leitores que aguardavam a abertura para serem os primeiros a chegar às histórias, que nunca abandonavam a sala de leitura de tanta procura que tinham, o Cavaleiro Andante, o Condor, o mais antigo Mundo de Aventuras. Junto com eles, havia os velhos que iam ler o jornal, que não tinham dinheiro para comprar, os que procuravam os anúncios, assim como uma fauna constante de leitores do Diário do Governo, o antepassado do Diário da República, que procuravam referências oficiais que precisavam para a sua carreira de funcionários ou para conhecerem a legislação que lhes dizia respeito, arrendamentos, licenças, etc. Também aqui se está num "país estrangeiro", porque tudo isto acabou.

Para além da "banda desenhada", havia uma multidão de revistas, que incluíam aquilo que hoje seriam semanários, para além de revistas mensais, que se encontravam também em banca, embora nalguns casos também nas livrarias. Deixando de lado o Expresso, muito tardio neste mundo, as revistas eram o Século Ilustrado, a Flama, e a Vida Mundial. O Século Ilustrado e a Flama eram revistas que viviam da fotografia, na maioria a preto e branco, e a Vida Mundial, com uma redacção de gente nova, trazia uma informação internacional e nacional muito diferente do habitual. As escassas notícias sobre a guerra do Vietname, alguns artigos reproduzidos da imprensa internacional, faziam da Vida Mundial uma leitura obrigatória.


 
Havia também um público para aquilo que depreciativamente se chamava "revistas de sopeiras", como a Crónica Feminina, e havia algumas revistas populares de cinema como a Plateia, tudo fazendo parte do mundo da Agência Portuguesa de Revistas, um império defunto que publicava mais de um milhão de exemplares mensais, incluindo histórias aos quadradinhos, livros de anedotas e desportivos. No entanto, não havia a multidão de revistas cor-de-rosa, nem do jet-set, que há hoje, em parte porque não havia jet-set (a festa da Quinta Patiño foi a excepção) e os costumes não aconselhavam a exposição de namorados, amantes, "amigos dedicados", e muito menos histórias com pessoas do mesmo sexo, banidos para o submundo que não chegava ao papel. 


Também aqui o "país estrangeiro" do "passado" estava por todo o lado: havia criadas, embora a Crónica Feminina fosse muito para além desse público; um público popular para um cinema popular, e também uma genuína imprensa popular, para gente com muito pouco dinheiro, soldados, operários, empregados, trabalhadores, miúdos mais ou menos da rua, marçanos e comerciantes. Este mundo era tão presente por todo o lado que mesmo um intelectual presumido não podia deixar de o encontrar e de o conhecer.


Depois havia o terreno do "político". A Seara Nova era a principal revista política, quer por tradição quer pelas suas relações com os dois núcleos mais importantes da oposição, os republicanos históricos e os socialistas, na verdade quase a mesma coisa, e os comunistas. A revista ainda mantinha esta aliança tradicional da oposição, embora a hegemonia comunista estivesse muito reforçada nestes anos.



O nome da Seara Nova bastava para significar estar-se contra o regime, e a PIDE procedia em consequência fazendo fichas de todos os seus assinantes. É verdade que a censura retalhava a revista e cortava tudo o que escapava a uma norma mais ou menos consentida de crítica ao regime, mas, com excepção do sábio uso que fazia das citações ridículas do almirante Américo Tomás, que a censura passou também a cortar, a Seara Nova era muito, muito aborrecida. Era pura e simplesmente muito velha e cansada, para as novas gerações que tinham uma maior informação sobre o mundo, para além do universo claustrofóbico do velho republicanismo ou do comunismo pró-soviético. A Seara era muito pouco dinâmica se a compararmos, por exemplo, com OTempo e o Modo, quer antes quer com o MRPP a mandar. A Vértice era ainda pior, coimbrã e "neo-realista" até dizer chega.


Entre os grandes momentos da Seara Nova antes de 25 de Abril, estavam as polémicas, que, em linguagem mais ou menos cifrada, discutiam problemas de orientação política, em que tinha um papel activo o então mais interessante e agressivo jovem intelectual comunista Mário Sottomayor Cardia. Eduardo Prado Coelho acabou por ter um papel semelhante, mas só no imediato pós--25 de Abril, porque nesta altura terçava armas pelo estruturalismo, e travava uma polémica muito dura com Vergílio Ferreira, no Suplemento Literário do Diário de Lisboa. Estas e outras polémicas eram seguidas por um público dedicado, e eram tudo menos mansas. Também aqui, este fôlego polémico do "país estrangeiro" do "passado" desapareceu a favor das águas mais que mornas da actual "crítica".


Cardia em Lisboa e Vital Moreira em Coimbra eram os avançados do PCP na luta contra o esquerdismo. Vital escreveu um pequeno livro contra Marcuse, e alguns textos (na Vértice) patrulhando as edições de Marx, mas Cardia ia à luta contra o "reformismo" e o esquerdismo, brandindo o "pensamento de Ulianov" ou do "autor do Materialismo e Empiriocriticismo", ou seja Lenine, disfarçado para os censores. O Tempo e o Modo, por seu lado, ajustava outras contas publicando uma série muito popular de textos de Paul Sweezy e de Charles Bettelheim sobre a "natureza" do regime chinês, que ajudavam os maoistas a ter a impressão de que tinham teoria e solidez analítica. Mandel, editado nos cadernos da Afrontamento, fez o mesmo para os trotskistas. 


Como disse no primeiro artigo sobre os jornais, longe de mim qualquer nostalgia sobre este passado vigiado pela censura, limitado a uma elite pelo enorme analfabetismo dos portugueses e pela sua pobreza material e periferização intelectual. Não era um mundo bonito de se ver, ainda muito paroquial, pouco cosmopolita, tacanho, provinciano. Mas talvez porque os tempos eram de mudança, poucas esperanças havia de se "fazer carreira", o dinheiro entrava pouco nas considerações quotidianas deste universo fora da "economia" e a convicção entrava mais (a presunção entrava na mesma), havia menos a perder e por isso mais independência e maior agressividade intelectual. E isso faz muita falta.

(Versão do Público, 7 de Abril de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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