ABRUPTO

29.4.12


OS DONOS DO 25 DE ABRIL

 Já o disse e repito: o 25 de Abril foi o dia mais importante da minha vida. Conhecendo na primeira pessoa a perseguição antes do 25 de Abril, estou longe de pensar que só “oposicionistas” ou “resistentes” podem compreender o sabor desse dia. Mais importante do que as circunstâncias pessoais, conhecendo a indignidade do medo colectivo que a PIDE, em particular, gerava na sociedade portuguesa, política (uma pequena minoria) e apolítica (uma enorme maioria), sei muito bem o que significou esse dia sem qualquer ambiguidade. 

O mundo que a minha geração foi a última a viver pode ser personificada nesta história vulgar. Um dia, nos idos de setenta (ou ainda nos de sessenta, já não sei), fui com um grupo de amigos – quatro num Renault 4L – numa viagem para levar um deles ao Colégio de Bragança, onde ia dar aulas. Este era o pretexto, mas na realidade havia outra intenção: reconhecer uma zona de passagem na fronteira livre de PIDE e da Guardia Civil para a usar para fugas, deserções e passagens ilegais. Pelo caminho gozava-se Trás-os-Montes, onde sempre me senti muito em casa. Terra brava, terra fria, terra quente, terra nossa. Era uma viagem nesses anos muito complicada, demorada, trabalhosa, que durava um dia por estradas tão más quanto belas, na dura paisagem dessa parte de Portugal. 

Até Chaves não houve problema, a não ser uma arriscada subida pela parede de uma barragem de que restam umas fotografias que mostram até que ponto havia bravado e irresponsabilidade adolescente em colocar-se numa situação de enorme risco dependurados no precipício. Também as barragens no Norte são bem pouco meigas no seu enorme declive sobre o vazio. Com estas distracções pelo caminho, chegámos a Chaves tarde e cheios de fome. Estava tudo fechado menos um pequeno tasco, onde comemos sopa e broa. De repente, entraram dois homens e o ambiente jocoso da tasca, silenciou-se. Comecei a achar estranha a reacção e ainda mais estranho quando um miúdo, filho do dono do tasco, perguntou ao pai: “o que é que eles querem?” O pai deu-lhe uma bofetada mandou-o calar e sair dali. A violência da cena, de puro medo, ensinou-me mais sobre a ditadura do que qualquer livro. Disse aos meus companheiros para pagarmos e irmos embora e logo a seguir fomos presos pelos dois agentes da PIDE, que era o que o miúdo e pai sabiam quem eles eram. 

Os pides, como mais tarde um deles explicou, “estranhou” que gente da nossa condição social estivesse a comer num tasco e concluiu que devíamos estar a preparar-nos para dar o “salto”. Chaves era a poucos quilómetros da fronteira. Ser preso, nestas circunstâncias, fazia parte dos riscos da função, não me “revoltou” especialmente e acabou por não ter nenhumas consequências. Acabámos por encontrar em Guadramil e no trajecto do Rio Manzanas, um excelente local de passagem que mais tarde utilizei, e o nosso colega foi entregue no Colégio onde, já tarde muito escura, um padre tirado a papel químico dos livros de Aquilino nos ofereceu vinho e um queijo curado tão duro que voava pela mesa e pela sala fora. Era um mundo triste e pícaro, o de Bragança, perdido nos limites de Portugal pobre, rude, violento. Mas, a violência desses breves segundos, e mais algumas cenas a que assisti como espectador nesses anos, ensinou-me muito, para perceber que a política não chega para perceber a devastação dos 48 anos seguidos, sem um dia de liberdade e sem medo. Era esse Portugal que deu aquela bofetada do pai ao filho, ambos aterrorizados pela mera presença dos Pides, e que diz muito do que era uma violência inscrita na normalidade, que, felizmente, hoje quem não a viveu, não a compreende. 

Isso acabou de vez logo na tarde do 25 de Abril, e tudo o resto já não dependeu apenas da liberdade, que passou a haver, mas de outros anjos e demónios demasiado humanos. Mas este medo acabou de vez. É também por isso que me inspira repulsa, repulsa mesmo, a transformação do 25 de Abril no “25 de Abril” programático e ideológico, corporativo até dizer chega para certos militares e de que, há muito, uma certa esquerda vive e que agora dá origem a esse gesto absurdo de faltar às cerimónias onde iam sempre, verdade seja dita, comportando-se sempre como “donos” da coisa. Talvez Mário Soares, que levou Passos Coelho nas palminhas e agora considera-o suficiente demónio para fazer aquilo que aliás já fez de outra vez (contra Cavaco), se lembre que, ano após ano, este mesmo “25 de Abril” era feito contra ele, porque também ele tinha “traído os ideais da revolução”.

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© José Pacheco Pereira
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