ÍNDICE DO SITUACIONISMO (145): ONDE É QUE EU JÁ VI ISTO?
A questão do situacionismo não é de conspiração, é de respiração.
E, nalguns casos, de respiração assistida.
"Ainda não tinha
aberto o DN online de 21 de fevereiro, terça-feira de Carnaval, e já um
leitor "meio ensonado" me alertava para a manchete do jornal:
"Trabalhadores dos transportes não pagam medicamentos e recebem baixa
por inteiro." O leitor, AJF, que me escrevera "às 5 e 43" da manhã,
declarava-se "incrédulo": "Sou funcionário da CP e não tenho essas
benesses (nem outras que alguns jornais têm vindo a anunciar)."
A manchete saía no primeiro dia de uma greve de trabalhadores da CP e do metro de Lisboa.
Pouco
depois, chegava-me outro e-mail: "Os trabalhadores dos transportes nem
têm medicamentos gratuitos nem recebem o salário quando estão de baixa",
escreveu o leitor MH. "Nisso são iguais a todos os restantes
trabalhadores. Não sei quem deu essas informações, o certo é que o DN
não se preocupou sequer em confirmar as mesmas."
Solicitei
esclarecimentos à Direção do DN, que remeteu as explicações para o autor
da notícia, Francisco Almeida Leite, o qual respondeu: "A notícia a que
se refere o provedor é de interesse público manifesto. Nesse dia
realizava-se mais uma greve na CP, daí que o dever de informar os nossos
leitores sobre as regalias e benefícios dos trabalhadores de algumas
empresas de transportes seja mais do que óbvio. [...]"
O
jornalista acrescenta: "Sobre o conteúdo da notícia por mim redigida e
assinada, reafirmo a sua veracidade e faço notar que as queixas ao
provedor são apresentadas através de duas cartas anónimas que pretendem
pôr em causa o trabalho de um jornalista sénior da casa. Os dados que
constam da notícia fazem parte de um documento interno do Governo, usado
pela tutela no desempenho da sua ação política. A sua divulgação não
era suscetível de obter um contraditório junto dos sindicatos porque a
matéria que ali está vertida faz parte dos acordos de empresa.Quem
tiver dúvidas sobre o assunto, faça o favor de consultá-los. O DN pensa
no interesse dos leitores, milhares dos quais são utentes da CP e de
outras transportadoras também referidas no texto, e têm o direito de
conhecer as regalias e benefícios que ali vigoram e que todos nós
pagamos com os nossos impostos. O dever do jornalista é divulgá-los,
sobretudo num tempo em que, por exemplo, são cortadas isenções de taxas
moderadoras a idosos que têm dificuldades graves no acesso à saúde,
comparticipações em remédios de doentes crónicos em fase terminal ou
prestações sociais como sejam complementos de reforma. Por muito que
isso custe a certos leitores anónimos."
Preciso, desde já,
esclarecer que os dois leitores que citei se identificaram perante mim
de modo suficiente, não podendo ser considerados anónimos. Não dou
atenção a correspondência anónima. No caso, fui eu que guardei a
confidencialidade das suas identidades - e dispenso-me de explicar
porquê.
Confesso que a resposta de Francisco Almeida Leite me
deixou perplexo porque conseguiu a proeza de não me dar um único
argumento jornalístico para a notícia que fez: há trabalhadores que
fazem greve, pelo que é preciso dizer à população as regalias que têm os
que fazem greve e os que a não fazem; há idosos que veem cortadas as
suas taxas moderadoras, daí que seja necessário conhecer as regalias dos
trabalhadores dos transportes. Nada mau para um argumentário
político-partidário, mas que é do jornalismo?
Deixo uma reflexão
sobre o tema do "interesse público" para o outro texto nesta página e
volto à resposta de Francisco Almeida Leite.
Argumentário.
Palavra-chave. É que a notícia em causa foi integralmente baseada num
documento de circulação interna a que o jornalista teve acesso no
ministério de tutela, e que ele próprio descreveu como "relatório
interno que funciona como uma espécie de argumentário do Governo de
resposta à greve". Não há nenhum mal em um jornalista divulgar um
argumentário interno de uma entidade pública. Mas mandariam as regras
básicas do jornalismo que o fizesse de uma de duas maneiras: ou para
denunciar a existência do documento como elemento de propaganda ou
contrapropaganda política; ou para verificar a veracidade e consistência
dos "argumentos". Ora, esta verificação faz-se através de investigação
autónoma, confrontando documentos e informações disponíveis; ou, no
mínimo, estabelecendo o contraditório, ouvindo aqueles contra quem se
dirigem os argumentos.
Francisco Almeida Leite entendeu que não
devia confrontar os sindicatos "porque a matéria que ali está vertida
faz parte dos acordos de empresa". Isso significa que ele próprio se deu
ao trabalho de investigar, ponto por ponto, todos os acordos de empresa
para concluir, por exemplo, que os "trabalhadores DOS transportes não
pagam medicamentos e recebem baixa por inteiro", o que, logo por azar,
tirou da modorra um funcionário da CP às 5 e 43 da manhã! Receio
bem que essa investigação não tenha sido feita e que Francisco Almeida
Leite haja dado como boas as informações que recebeu do Governo. Este
meu receio é convertido em certeza por outro leitor que aqui identifico
como MG: "O DN publica um 'trabalho' sem realizar qualquer investigação,
sem exercício do contraditório, sem sequer tentar esclarecer a
veracidade das informações que dá ou o seu verdadeiro enquadramento.
Como resultado, mente aos seus leitores sempre que a sua fonte - o
Governo - mente ao DN, engana os seus leitores sempre que a sua fonte
enganou o DN. Um exemplo particularmente fácil para ilustrar isto mesmo:
o DN coloca em título que os trabalhadores da Carris têm 30 dias de
férias, contrapondo implicitamente no título e explicitamente no texto
esses 30 dias aos 22 dias dos restantes trabalhadores portugueses -
omite, por falta de profissionalismo ou má-fé, que esses 30 dias são de
calendário (devido ao facto de se tratar de uma empresa com laboração
contínua) e os 22 dias com que compara são dias úteis. Ou seja, um mês
de férias tanto tem 30 dias de calendário como 22 dias úteis!"
O
diretor de serviço naquele dia, subdiretor Nuno Saraiva, informou-me de
que "neste caso, subscreve" a argumentação de Francisco Almeida Leite.
Só me cumpre dizer-lhe que faz muito mal. Como explico no texto em
baixo, invocar o interesse público e não cumprir o dever de lealdade
para com os visados de os ouvir não é jornalismo, é propaganda. Foi
esse, consciente ou inconscientemente, o exercício que o DN fez naquela
manhã de terça-feira de Carnaval." (sublinhados meus)
Este texto de autoria do Provedor do Diário de Notícias Óscar Mascarenhas retrata bem o modo como alguns jornalistas actuam na propaganda governamental. É o retrato do puro situacionismo, antes com o governo PS, agora com o governo PSD-CDS. A "notícia" referida nesta nota era tão evidentemente um "recado" governamental que estava a preparar um comentário meu num "mau trabalho" para o Ponto Contraponto na SICN. Talvez, insisto talvez, já não valha a pena fazê-lo depois deste texto do Provedor. Mas, a seu propósito, fui reler alguns comentários antigos de 2009, ainda na era Sócrates, do "índice do situacionismo" que envolvem o mesmo jornalista. Se tiverem paciência voltem lá, está lá tudo: intenção, métodos, manipulação, "recados" e serviços. É por isso que, ao ler o Óscar Mascarenhas, tenho esta enorme sensação de déja vu.