ABRUPTO

11.3.12


DIÁLOGOS DO TEMPO OBSCURO

 
SAGREDO - Para onde é que isto vai?

SALVIATTI - Não vai para lado nenhum.

SIMPLÍCIO - Vai, vai. Estamos a salvar Portugal, a fazer uma revolução silenciosa.

SALVIATTI - Não há revoluções silenciosas. Fazem todas barulho.

SAGREDO - Se fazem barulho não se vê, está tudo calmo...

SIMPLÍCIO - ... não somos como os gregos.

SALVIATTI - Então somos como quem?

SIMPLÍCIO - Como os irlandeses. Vamos lá chegar como na Irlanda, vais ver como os pessimistas vão ficar todos com ar de "velhos do Restelo", na praia a vociferar contra os barcos que vão ao largo para as Índias.

SALVIATTI - Mas que bonito! Só que o "velho do Restelo" tinha razão. Convinha ler Os Lusíadas melhor, não ler à moda do Estado Novo, com Índias a mais. Camões dizia que o "velho", quando levantou a voz "pesada", falava "c"um saber de experiências feito", ou seja, sabia o que dizia. Não ia nesses romantismos voluntaristas de fazer um "Portugal diferente". O que está a fazer um "Portugal diferente" é a pobreza, é a guerra social em curso, é a maciça transferência de recursos entre pessoas, grupos sociais, portugueses e estrangeiros, pobres e ricos.

SAGREDO - O "velho do Restelo" não queria que os portugueses se lançassem nos Descobrimentos. Ficávamos assim sem "épica" nacional. Não me parece um bom exemplo. Do que precisamos é gente que se arrisque, os "empreendedores competitivos", como diz o nosso Primeiro-Ministro.

SIMPLÍCIO - Exactamente... Os que não são preguiçosos. Os que são dinâmicos, que se arriscam...

SALVIATTI - Pois, pois. O "velho" fala contra o quê? Contra o "fraudulento gosto que se atiça". Fala contra essa mentalidade de confundir habilidosos espertos com heróis, fala contra a facilidade da "fama". Não é contra quem constrói, é contra quem confunde "honra" com "fama". Ouçam a "voz pesada":

"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça

Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

C"uma aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!"

SAGREDO - Ele não está a falar de facilidades, mas do risco. Temos de reconhecer aos que iam nos barcos o mérito de que se arriscavam, não se acomodavam. Não é um bom exemplo para os dias de hoje?

SIMPLÍCIO - Tens razão. O risco é bom, sem o risco as sociedades morrem. É por isso que vale a pena emigrar, se não se arranja emprego cá. Vale a pena arriscar mudar de emprego. Vale a pena ir para outra terra, para a província, se não há emprego na cidade. Vale a pena, se se está desempregado, pegar nas poupanças e abrir uma empresa, ser-se senhor do seu destino, patrão de si mesmo. Ir para o privado, em vez de esperar que o Estado resolva todos os meus problemas. Mexer-se, ter mobilidade, arriscar.

SALVIATTI - Sim, sim. Tretas. Valer a pena vale, quando há oportunidades que o permitam. O que se passa é que ao mesmo tempo que se faz este discurso, está-se a destruir essas oportunidades, está-se a tornar a sociedade mais rígida, menos plástica, mais agarrada ao pouco que tem...

SIMPLÍCIO - Mas há os que fazem as oportunidades e há aqueles que ficam à espera delas.

SAGREDO - Mas Salviatti tem razão num ponto, tudo funciona em círculo vicioso. O que é preciso fazer, quanto mais é preciso, menos é possível. Tu, Simplício, não me vais dizer que há crédito na banca para criar empresas, que há empregos disponíveis em Freixo de Espada à Cinta, que só não se arranja emprego porque não se procura e se prefere o subsídio...

SIMPLÍCIO - Há para médicos...

SALVIATTI - Talvez, mas não estou certo. Mas o que não há é para carpinteiros, nem montadores, nem operários têxteis, nem electricistas, nem padeiros, nem empregadas de limpeza, nem mecânicos de automóveis. Muito menos para professores, historiadores, biólogos, licenciados em comunicação social. Isto para te dar de bandeja...

SIMPLÍCIO - Ninguém os mandou tirar cursos sem "empregabilidade". Tivessem estudado mandarim...

SAGREDO - ... e os outros de que fala o Salviatti, os operários... não deves pensar que podem todos estudar mandarim?

SIMPLÍCIO - Esses terão de ir trabalhar com salário mais baixo, para tornar a nossa indústria mais competitiva e esquecer direitos e sindicatos, essa tralha do passado. Têm de viver com as suas posses. Ou então arriscam-se lá fora, em Angola, na Suíça, seja lá onde for. Não é o que fizeram os moldavos e os ucranianos? Arrisquem...

SALVIATTI - Quem te ouvir falar, tem pelo menos a certeza de que não falas de ti. O risco é bom quando são os outros que pagam o seu custo. Há excepções, mas na maioria dos casos esta conversa sobre o risco é puramente abstracta, destina-se a dar uma cobertura ideológica à condenação da grande maioria de pessoas que estão agarradas ao que têm e não o querem perder. Ficam conservadoras à força da míngua. Tu devias gostar disto, ó Simplício.

SIMPLÍCIO - Mas esses conservadores dependentes do estado, vivendo numa sociedade assistencialista, agarrados ao que acham ser "direitos adquiridos", é o pior que há, são a força reaccionária contra a mudança, contra o "Portugal diferente" que o Governo quer fazer.

SALVIATTI - Mas em que país pensas tu que vives? Em que tempo pensas que vives? Poupanças? Quem as tem não as arrisca, a maioria nunca as teve, e se as teve já as gastou para sobreviver. É compreensível que actuem assim. É como quem tem emprego e alguns direitos, não os dá por uma mão-cheia de nada, de promessas ideológicas sobre um futuro utópico.

SIMPLÍCIO - Então tu não cumprias o programa da troika, és contra a austeridade. Queria-te ver a não ter dinheiro para pagar salários aos funcionários públicos daqui a um mês.

SALVIATTI - Tu achas que o mundo se divide entre os cumpridores da troika e os incumpridores? Estás enganado, acho mesmo que é preciso cumprir, acho mesmo que é preciso austeridade, se é isso que queres ouvir...

SIMPLÍCIO - Sim, mas depois criticas todas as medidas concretas do Governo para a garantir.

SALVIATTI - Olha que não, olha que não. O que acho é que há mais do que uma maneira de lá chegar. Não há muitas maneiras, mas há algumas. E vale a pena discuti-las. E tu achas sempre tudo bem o que o Governo faz...

SAGREDO - O Governo sempre está a fazer alguma coisa. Se lá chegar tem mérito.

SALVIATTI - Mas mesmo dentro dos seus objectivos tem feito muita asneira, que funciona contra os resultados que pretende. Nesta altura as asneiras são muito caras, para muita gente caríssimas.

SAGREDO - A que atribuis as asneiras?

SALVIATTI - A uma combinação entre ideias preconcebidas sobre o Estado, a sociedade e a economia, muito "economês" e pouca economia política. E a desconhecimento concreto sobre o país, ignorância da sociedade, do país onde se vive. E aos interesses nele representados. Há muitos interesses...

SAGREDO - Mas que interesses? Corrupção?

SALVIATTI - Interesses mesmo no sentido clássico, grupos sociais que beneficiam desta política, desde uma parte da burocracia político-partidária, a grupos económicos. Vê como eles se uniram à volta do Ministro da Economia, com mais força até do que se uniram ao Ministro das Finanças. Não é por ele... A junção destas coisas é muito poderosa e tem uma tradição política antiga. O resultado traduzido em blá-blá é uma espécie de milenarismo social, uma crença na engenharia utópica de uma sociedade. Depois soma-se uma forte tradição de consenso no pior sentido, de subserviência face ao poder, de situacionismo. O situacionismo é o lubrificante, como já era com o governo anterior.

SIMPLÍCIO - Isso é comigo. Dá lá exemplos?

SALVIATTI - Começou com o abaixamento da TSU [taxa social única]. Bateste palmas. Continuou com o seu abandono, bateste palmas. Continuou com a demagogia dos superministérios agregados que seriam mais baratos, bateste palmas. A coisa está a dar para o torto, e está-se a tentar dar a volta sem perder a face com comissões e altos consultores, bateste palmas. Depois foi a meia hora de trabalho diário, bateste palmas. Depois a meia hora regressou ao limbo, bateste palmas. Tudo é bom, tudo é inevitável, tudo não tem alternativas. Tudo é apresentado como sendo de impossível discussão, senão lá vai o plano da troika... Depois vê-se...

SIMPLÍCIO - O Governo está a aprender, a fazer o trabalho de casa.

SALVIATTI - Volta ao Camões, meu bom Simplício. Deixa lá a "fama" e a "glória" de pensar que estás a mudar tudo, confundindo necessidade com vontade, confundindo o desespero da obrigação com escolha livre, confundindo a bancarrota com alguma catarse salvífica do "Estado gordo". Deixa lá de usar "nomes com quem o povo néscio se engana" De lhes pregar virtudes no empobrecimento, como se no fim o país se reencontrasse "magro" e ágil, produzindo dinamismo e mobilidade social, terra do leite e do mel, sem classe média, com um milhão de desempregados, sem tecido produtivo, com a competitividade assente em salários baixos.

Volta ao Camões, presta atenção ao "velho do Restelo", lembra-te do ouro do Brasil, lê o "outro lado" na Peregrinação, faz o pouco que podes fazer e não lhes chames "trabalho de casa", como se fosses uma eterna criança de bibe. Volta a Camões:

"A que novos desastres determinas

De levar estes reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos, e de minas

D"ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?"
 
(Versão do Público de 10 de Março de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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