Numa
suprema ironia e crueldade, o Estado chinês faz as famílias dos
condenados à morte pagar a bala da sua execução. Portugal comprou esta
semana a bala da sua execução, com alguma pompa, circunstância e uma
gigantesca cegueira e subserviência aos poderosos da Europa. Refiro-me à
assinatura do texto do novo "tratado" cisionista da UE, que deixa de
fora o Reino Unido e a República Checa. A assinatura por si só não
significa a ratificação do tratado, que tem que ir aos Governos, aos
Parlamentos nacionais, passar nos tribunais constitucionais onde é caso
disso, e, no caso irlandês, a referendo. Mas conhecendo os nossos
costumes, para Portugal, é como se já fosse de pedra e cal, perante a
subserviência de Governo, do PSD e do PS, a complacência presidencial, o
olhar para o lado do Tribunal Constitucional, e a abulia da opinião
pública. Mais uma vez, fomos colocados sob o signo da nova lei da
inevitabilidade, para aprovar a "regra de ouro", de que é feita a bala
que, destruindo tecido, osso e massa encefálica, deu a outros o
instrumento para a nossa execução.
Essa execução pode assumir
três formas, todas mortíferas para muitos e bons anos: uma, a de o novo
tratado, assinado de cruz, ser o instrumento para nos obrigar a sair do
euro; outra, a de servir para nos expulsar como incumpridores da UE e,
por último, a de nos condenar a uma longa recessão e estagnação na cauda
da Europa. O que assinamos de cruz é o instrumento que vai dar
legalidade e legitimidade à nossa marginalização, submissão, dependência
e mediocridade. Por uma razão, que entra pelos olhos dentro de todos,
mas que ninguém verdadeiramente discute tão mergulhados num curto prazo
acéfalo como estamos: é que as regras que assinamos são impossíveis de
cumprir por Portugal e, por isso, aconchegamos bem de mais a cabeça à
pistola do executor, com a bala que compramos. O chamado, em
perfeito burocratês, Tratado Sobre a Estabilidade, Coordenação e
Governação na União Económica e Monetária impõe como obrigação,
desejavelmente vertida nas constituições nacionais, um limite de 0,5% de
défice estrutural e uma dívida pública que não pode ultrapassar os 60%
do PIB. No primeiro caso, estamos a falar da diferença entre as receitas
e as despesas públicas, não comportando expedientes como as receitas
extraordinárias. Praticamente todos os países da Europa estiveram longe
destes objectivos na última década e Portugal ainda mais. Embora o nosso
ministro das Finanças (e o FMI) considere que em matéria de défice
estrutural Portugal vá estar próximo da Alemanha e da Finlândia entre
2012 e 2016, exactamente porque Portugal não é a Alemanha e a Finlândia é
que o outro objectivo, a redução da dívida, neste momento de 110% do
PIB, para quase metade é uma absoluta impossibilidade. A dívida subiu,
aliás, em 2011, já em pleno programa do memorando da troika. As
duas coisas juntas, défice e dívida, são, para Portugal, do domínio do
milagre. E na Europa, serão também do domínio do milagre para vários
países signatários do tratado. Por isso, ou se aplica e será uma
contínua guerra na Europa, ou não se aplica e será mais um passo na
descredibilização da UE. Já sabemos que o seu pretendido efeito nos
mercados tem sido nulo. Tenho poucas dúvidas de que os membros
do Governo conhecedores destas matérias, em particular o ministro das
Finanças, sabem bem como em teoria se pode chegar aos números exigidos
pelos tratados. Há receitas by the book que os bons técnicos conhecem, mas duvido que percebam por que razão os países não podem ser governados by the book. Duvido que saibam o que é o "ruído" de que sociólogos como Weber teorizaram. É que se os países fossem governados by the book,
seria fácil governá-los e nada falhava. É aliás esse o mito
tecnocrático, o de que o saber puro, uma espécie de matemática de
soluções interligadas, de modelos, quando aplicadas com rigor, dão os
resultados pretendidos. Esta é, aliás, uma ilusão muito típica dos
economistas que, como agora estamos no tempo deles, arrastam atrás de si
a admiração embasbacada dos comuns mortais. Talvez valha a pena
lembrar que a maioria dos modelos que foram aplicados à economia
mundial e nacional falhou estrondosamente e que na génese de muitos
problemas actuais está uma coligação muito próxima de economistas e
políticos, ambos unidos por essa redução da política ao "economês". Hoje
liga-se uma televisão e comentador atrás de comentador, personalidade
atrás de personalidade repete o seu "economês", dizendo exactamente as
mesmas coisas num solilóquio que bem merece a classificação de
"pensamento único". O pequeno e imenso problema é o "ruído" do
mundo. As acções humanas, sejam na economia, na sociedade, na cultura,
na política, estão cheias de "ruído", que gera um enorme fosso entre as
intenções proclamadas e os resultados obtidos. Quase que se pode dizer
que a regra é os resultados serem muito diferentes das intenções. É a
regra que Weber lembrava aos políticos de que a maioria das suas acções
tem resultados exactamente opostos ao pretendido. Aplica-se também aos
economistas a fazer política. No caso português, o mesmo se
passa, embora os governantes sejam os últimos a sabê-lo. Assiste-se no
actual Governo a uma mescla interessante de um discurso tecnocrático,
que ninguém melhor do que o ministro das Finanças desenvolve, mas que
também impregna o primeiro-ministro, e um discurso messiânico e
profético, com laivos de um certo revolucionarismo voluntarista, em que
os propagandistas e legitimadores do actual poder participam. Ora isto é
uma excelente demonstração do efeito do "ruído" porque estes discursos,
combinados um com o outro, autodestroem-se a prazo. O ministro das
Finanças diz-nos que se fizermos isto e isto e isto, conseguiremos
cumprir o "ajustamento" pretendido e desse "ajustamento" resultará a
prazo um boom de crescimento económico do país. Ele actua
conforme uma vulgata económica, conhecida e, em si, tão legítima como
qualquer outra, de que ele possui a utensilagem técnica. Ele não é
keynesiano nem krugmaniano, e por isso pensa, fala e actua assim. Por
outro lado, a legitimação política do Governo necessita de preencher
este esqueleto com uma qualquer carne política e diz-nos que depois de o
país ter sido colocado nos eixos do défice e da dívida, acordará um dia
renovado, "magro", quando não atlético, mais rico e melhor. O boom é para o ministro das Finanças o resultado de uma equação dentro de um modelo; o boom para os políticos da situação é uma regeneração moral feita pela pobreza.
Não estão a falar do mesmo, mesmo quando parece. O ministro das
Finanças está a falar das finanças e, em menor grau, da economia; os
políticos do Governo estão a falar do estado, da sociedade e das
pessoas. Os segundos serão o "ruído" do primeiro, porque estão a dar uma
cobertura utópica, moralista e messiânica aos modelos das finanças, o
que o ministro sabe muito bem que é perigoso. Ele não quer saber de
atavios políticos, mas do cumprimento linear do rigor orçamental. A
última coisa que pretende é separar os "preguiçosos" dos "competitivos"
como estandarte moralista, ou fazer um Portugal "melhor", porque sabe
que esse caminho é perigoso para a eficácia. Os propagandistas do actual
poder, pelo contrário, têm-se em tão alta noção de si próprios que
acham que estão a "mudar Portugal", a "fazer um país diferente", um
típico revolucionarismo messiânico, em versão chã. O ministro
das Finanças acredita na eficácia do tratado e quer cumpri-lo, os
propagandistas do Governo vêem-no como um instrumento para uma
contra-revolução social, que crie o mundo simples que eles acham ser bom
para as "empresas", para os "jovens competitivos e descomplexados" e
para o "futuro", que é, no fundo, o que eles acham que são. O resto se
verá a seu tempo, porque mais do que tudo precisam de comprar tempo,
mesmo assinando de cruz uma sentença de morte a prazo. Cada um tem a sua
ilusão, cada um despreza o seu "ruído", ambos serão o "ruído" uns dos
outros.
(Versão do Público de 3 de Março de 2012.)
*
Apesar de ler com regularidade o seu bloigue não costumo
normalmente fazer comentários, mas achei piada à referência sobre o
"ruído" que afecta a implementação dos planos.
Eu conhecia um outro conceito, criado também por um alemão (ou
mais correctamente prussiano) chamado von Clausewitz, chamado "fricção" -
é uma analogia mecânica, produto do século em que o Sr Von Clausewitz
viveu. Como decerto reconhecerá von Clausewitz foi um dos grandes
estrategas do exército alemão (prussiano!) após as guerras napoleónicas e
no seu tratado seminal "Sobre a Guerra" ele explica a influência que a
"fricção" tem nos melhores planos desenhados pelos generais, em que os
resultados diferem das intenções...
Não sei se Weber, sendo posterior, conhecia "Sobre a Guerra" e pegou nestas mesmas ideias mas não deixa de ser curioso.
Um livro recente sobre isto, fácil de ler, caso esteja interessado,
é: The Art of Action - How Leaders Close the Gaps Between Plans,
Actions and Results