ABRUPTO

27.2.12


UMA IMENSA IRRITAÇÃO 
E A POLÍTICA DO MEIA BOLA E FORÇA

A expressão "meia bola e força" parece vir do futebol, um mau augúrio. O Ciberdúvidas da Língua Portuguesa remete para o Dicionário de Frases Feitas, de Orlando Neves, que lhe dá o significado de "desajeitadamente; de qualquer maneira". Acrescenta a génese futebolística por comparação com "pontapé para a frente e fé em Deus", e "designa um modo de jogar atabalhoado, sem arte", onde "a técnica da força se sobrepõe à força da técnica". Parece-me bem, estamos no terreno certo do que quero dizer. Mais à frente voltaremos aqui.

Agora vamos a outro lado: a "irritação". Os portugueses ainda não andam na rua a partir coisas e a deitar cocktails Molotov à polícia diante do Parlamento como acontece em Atenas. Sejamos justos, como os portugueses, também a esmagadora maioria dos gregos nunca fizeram tal coisa, obra de pequenos grupos que tomaram o gosto ao dedo da gasolina. Por cá também se estão a formar os mesmos grupos, mas ainda não sabem fazer cocktails Molotov, mas aprenderão porque não é muito complicado.

Mas, seja como for, a conflitualidade portuguesa ainda está longe de ser bem medida pela rua, mas é mais que evidente que existe. Está na fase da zanga e a caminho da imensa irritação. Convém não menosprezar este caminho, porque a zanga pode ser muito passiva, viver com o desespero, a depressão e a impotência, mas a irritação é mais complicada, porque ela transporta uma violência latente muito superior. E os sinais dessa irritação estão por todo o lado e em crescendo.

A vox populi moderna chega hoje ao universo mediático, não tanto na sua forma politizada, mas numa parte mais selvagem, sem regras, nem educação, nem civilidade, nem moderação. Chega aos gritos. Por exemplo, nos fora das rádios e televisões, em que supostamente essa vox populi se faz ouvir, o grau de violência verbal é cada vez maior. Eu sei que é preciso muita prudência para aceitar esses programas como representativos da vox populi, com todas as precauções para depurar a parte de manipulação política desses "locais de fala", onde é habitual alguns militantes partidários mais empenhados organizarem-se para fazer barragens de falsos "ouvintes" a telefonar para defenderem o seu clube político e esmagar os outros. Mas, quando os temas desses fora estão longe da agenda politizada, o que se ouve é a voz dessa imensa irritação, pura e dura e cruel, vociferando contra os "políticos", contra "esta democracia", contra as prepotências dos ricos e poderosos e os "arranjinhos" que fazem em conluio com os "políticos". Propostas: deviam ir todos presos, devia "cortar-se-lhes a cabeça", deviam ser proibidos de falar, deviam viver com salários abaixo do mínimo, deviam ver os seus bens confiscados e "obrigados a trabalhar", etc., etc.

Nos casos "mediáticos" da justiça encontra-se também um crescendo de violência verbal e, embora o terreno pareça diferente, o facto desses casos se passarem no espaço público sob o megafone de jornais, rádios e televisões, torna o discurso nestes casos também um discurso sobre o país e a política. Duas características manifestam-se nestes discursos da vox populi: uma forte identificação com as vítimas, sejam reais, sejam imaginárias, e uma vontade quase física de violência punitiva, muito para além da lei. No caso de Lousada (o desaparecimento de uma criança) e da pedofilia na Casa Pia, pode ouvir-se nos media propostas de pena de morte, de tortura, de mutilação ("deviam-lhe cortar os dedos um a um"), proibição de meios de defesa para os arguidos, censura ("Carlos Cruz devia ser proibido de publicar livros e dar entrevistas"), acompanhadas de tentativas concretas de agressão.

Pode argumentar-se que se trata de casos especiais, mas o contínuo discursivo, a mecânica social e psicológica da descrição das vítimas que não obtêm justiça versus os poderosos que escapam a tudo, são narrativas sobre o Portugal contemporâneo e são, na sua essência, sobre a crise, entendida como uma violência dos "políticos" contra as pessoas comuns, os pobres, os trabalhadores, o povo. É por isso que o pior que se pode fazer na actual situação é provocar esta ira poderosa, mais violenta do que qualquer cocktail Molotov.

Voltemos ao "meia bola e força". Existe na actual governação uma forte dose de "pontapé para a frente e fé em Deus", e de "um modo de jogar atabalhoado, sem arte", onde "a técnica da força se sobrepõe à força da técnica". E há dois aspectos em que este "meia bola e força" resultam numa provocação desnecessária, inútil e perigosa para a irritação que já por aí anda. Um diz respeito à incompetência e impreparação que nos deu a baixa da TSU, as "gorduras do Estado", o "colossal desvio" resolvido apenas por meio subsídio de Natal "irrepetível", a "meia hora de trabalho suplementar", a saga dos feriados agravada pelo modus operandi do Carnaval.

Quanto a isto há pouco a fazer, há quem o atribua a um plano ideológico "neoliberal" e há quem o atribua à ignorância do país. Existem as duas coisas, mas eu tendo a hesitar em dar grandes roupagens ideológicas, aquilo que me parece mais fácil de explicar por uma combinação de ideias na moda (e aí de facto e pela primeira vez a sério, essas ideias correspondem à caricatura do liberalismo que faz a esquerda) e falta de experiência e competência, salvo excepções que nem precisam de ser nomeadas porque são auto-evidentes.

Mas há um outro aspecto, mais "politiqueiro" nas provocações, que também tem a ver com o tipo de formação política do topo da governação, que é comum à liderança do PS, e que faz e pode vir a fazer estragos consideráveis, corroendo o que de positivo existe em muitas medidas tomadas recentemente. Voltemos, por comparação, à fase "boa" de José Sócrates, os seus primeiros três anos, 2005-2008. O "boa" está entre aspas, porque, do meu ponto de vista, sempre a achei péssima, embora saiba que muita gente do PSD está hoje esquecida de a louvar. Nos seus primeiros anos, a narrativa de Sócrates foi muito parecida com a actual: recebeu o país com um "défice colossal", convenientemente cozinhado pelo Banco de Portugal, e com esse pretexto, abandonou todas as promessas eleitorais e lançou-se no controlo do défice. A comparação com a situação actual é legítima visto que as promessas eleitorais do PSD fizeram-se já no contexto da intervenção da troika e não antes, pelo que, como em 2005, a "surpresa" pelo que se "encontra" é fictícia.

Sócrates obteve alguns resultados no controlo do défice, não aqueles de que se gabou, mas alguns; reformou a Segurança Social e iniciou um conjunto de medidas de "reformas" com muitas parecenças com a luta actual contra as "gorduras do Estado". A retórica política é muito semelhante. Começou a utilizar os argumentos do populismo e da inveja social, que são sempre eficazes. Dois casos são exemplares: atacou os juízes e magistrados e em seguida os professores. Fez o mesmo com os farmacêuticos e os médicos. Em todos os casos, o discurso foi o mesmo, trata-se de grupos profissionais privilegiados, com regalias inaceitáveis e pela primeira vez havia um político com "coragem" para defrontar estes grupos.

Os resultados estão à vista: alienando todos os aliados que podia encontrar nesses grupos profissionais para fazer reformas, uniu-os como nunca se uniram, e acabou por perder quase tudo, reforçando o sentimento corporativo e bloqueando por muitos anos qualquer mudança nessas áreas. Quando os ventos mudaram, e Sócrates começou a tombar do seu pedestal, recebeu em dobrado o preço das irritações que tinha semeado, numa fúria nacional que o correu do poder e de que o PSD beneficiou eleitoralmente.

Ora discursos como o do "piegas", a interpretação do país do Carnaval como opondo diligentes formigas poupadas e trabalhadoras às cigarras municipais com milhões de dívidas, o apontar dos funcionários públicos como privilegiados face aos privados, o modo como os militares profissionais foram convidados a irem-se embora se não concordavam com o ministro e mais mil e um exemplos são versões actuais do mesmo moralismo social que pode começar por ter resultados, mas que depois se transforma numa fúria colectiva que volta para trás com raiva.

A combinação do "meia bola e força" com um contexto de irritação nacional, cada vez mais recebido pelos governantes como uma afronta aos seus desígnios "revolucionários" de mudar o país de alto a baixo (e este revolucionarismo verbal tem também um papel na retórica governamental), pode levar a uma certa forma de autoritarismo político, num contexto de grande crise social, o mais perigoso caminho no meio de uma crise profunda. Há sinais, como no tempo de Sócrates, mas podem ser epifenómenos e não the real thing. Benevolamente ainda me fico pelo "meia bola e força", porque me parece uma explicação mais simples, económica e, acima de tudo, mais portuguesa. Mas o terreno está a ficar movediço. 

(Versão do Público de 25 de Fevereiro de 2012.) 

*

A expressão "meia bola e força" não vem do futebol, vem do bilhar. "Meia bola" usa-se para definir a quantidade de efeito imprimido à bola. Assim temos bola cheia (para tacada no meio da bola), bola fina (para tacada num dos lados da bola) e meia bola (tacada entre o meio e o lado da bola). Meia bola e força é a técnica básica utilizada para as jogada directas, em que a nossa bola bate na primeira e directamente na segunda sem uso das tabelas.
 
(José Cavaco)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]